“Em sua história, a
Igreja comunicou a fé por meio da Sagrada Escritura (linguagem bíblica), dos
símbolos e ritos litúrgicos (linguagem simbólico-litúrgica)...” (Diretório para
a Catequese, n. 205).
No mês de julho iniciamos aqui em nosso blog uma série sobre
a Liturgia no novo Diretório para a Catequese, publicado pelo Pontifício Conselho
para a Promoção da Nova Evangelização em março de 2020 [1].
Após uma Introdução, apresentando o documento, seguiram-se
seis postagens nas quais analisamos o Diretório sob a perspectiva da Liturgia, dos
sacramentos e da piedade popular, desde sua Apresentação até a terceira seção do capítulo VII.
Nesta postagem concluiremos a análise desse capítulo com suas últimas três
seções.
Capítulo VII: A
metodologia da catequese
7.4 A linguagem (nn. 204-217)
Como vimos em nossa postagem anterior, o capítulo VII é
dedicado à “pedagogia catequética”, isto é, o modo próprio com o qual a
Catequese transmite o Evangelho.
Após destacar a importância da “memória” na seção n. 3,
o Diretório prossegue sua reflexão na seção n. 4 com o “veículo” fundamental da transmissão da fé: a linguagem. A Constituição
Dogmática Dei Verbum recorda que “na
Sagrada Escritura Deus falou por meio dos homens e à maneira humana” (n. 12).
Da mesma forma, Paulo afirma que “a fé vem pela escuta” (fides ex auditu; Rm
10,17).
Jesus pregando a seus Apóstolos (Fra Angelico) |
Citando o Catecismo da
Igreja Católica (n. 170), o Diretório
atesta que as formulações da fé em
linguagem humana “nos permitem expressar e transmitir a fé, celebrá-la em comunidade, assimilá-la e
vivê-la cada vez mais intensamente” (n. 204).
Porém no mesmo parágrafo e ainda citando o n. 170 do Catecismo, adverte: “Não cremos em
fórmulas, mas sim nas realidades que elas expressam e que a fé nos permite
‘tocar’”. Podemos fazer uma comparação aqui com a veneração às imagens:
contemplando uma imagem de Cristo, nosso culto não se dirige à imagem em si,
mas sim Àquele que ela representa.
Prosseguindo a reflexão, o Diretório para a Catequese recorda no n. 205 as principais linguagens
da fé da Igreja, dentre as quais está a linguagem própria da Liturgia:
“Em sua história, a Igreja comunicou a fé por meio da
Sagrada Escritura (linguagem bíblica),
dos símbolos e ritos litúrgicos (linguagem simbólico-litúrgica), dos
escritos dos Padres, Símbolos da fé, formulações do Magistério (linguagem doutrinal) e do testemunho de
Santos e Mártires (linguagem performativa).
Essas são as linguagens principais da fé eclesial” (n. 205).
Junto a essas “linguagens principais da fé”, “a catequese
assume criativamente as linguagens das culturas dos povos” (n. 206). Nesse
sentido, propondo o diálogo entre fé e cultura, os parágrafos seguintes
destacam: a linguagem narrativa (nn.
207-208); a linguagem da arte (nn.
209-212); e as linguagens e ferramentas digitais
(nn. 213-217).
Em relação à linguagem
da arte, já o capítulo II havia elencado a via pulchritudinis (caminho da beleza) entre as fontes da Catequese (nn. 106-109). A
mensagem do Evangelho, com efeito, não é apenas bondade e verdade, mas
também beleza.
Ao refletir sobre as diversas linguagens das artes, o parágrafo n. 209 inicia com as “artes visuais” ou “artes plásticas”, como a pintura ou a
escultura:
“As imagens da arte cristã, quando
autênticas, por meio da percepção sensível, sugerem que o Senhor está vivo,
presente e atuante na Igreja e na história (cf.
João Paulo II, Carta Apostólica Duodecimum
saeculum sobre a veneração das imagens, 1987). Elas constituem, portanto,
uma verdadeira linguagem da fé. Célebre é o ditado: ‘Se um pagão lhe pedir: ‘Mostra-me
a tua fé’ (...), tu o levarás a uma igreja e o colocarás diante dos ícones sagrados’
(Adversus Constantinum Caballinum, 10).
Esse repertório iconográfico, apesar da grande e legítima variedade de estilos,
foi, no primeiro milênio, um tesouro comum da Igreja indivisa e desempenhou um
papel importante na evangelização, uma vez que, pela mediação de símbolos
universais, tocou os mais profundos desejos e afetos capazes de operar uma
transformação interior. Em nosso tempo, portanto as imagens cristãs podem
ajudar a fazer a experiência do encontro com Deus por meio da contemplação dessa
beleza. Com efeito, essas são imagens que trazem para aqueles que as contemplam
o olhar de um ‘Outro’ invisível, dando acesso à realidade do mundo espiritual e
escatológico” (n. 209).
Jesus Cristo, o "belo pastor" (Imagem das Catacumbas de São Calisto, Roma - séc. III) |
Esse denso parágrafo começa com uma afirmação importante: “As
imagens da arte cristã, quando autênticas...”. Ou seja, nem
toda imagem da arte cristã é autêntica. Por exemplo, uma imagem que
transmitisse uma ideia estranha à fé cristã não poderia ser considerada
autêntica. É preciso tomar cuidado, portanto, para que as imagens articulem
beleza, bondade e verdade.
Prosseguindo, o parágrafo cita a Carta Apostólica Duodecimum saeculum, promulgada pelo
Papa João Paulo II em 1987, por ocasião dos 1200 anos do II Concílio de Niceia
(787). Esse Concílio, o último dos sete Concílios Ecumênicos aceitos tanto pela
Igreja Católica quanto pela Igreja Ortodoxa Bizantina [2], definiu a doutrina
da veneração das imagens (iconodulia).
As imagens sagradas não são ídolos, tantas vezes condenados
no Antigo Testamento, pois os ídolos são objetos a serem adorados em si: são
“deuses”. Parafraseando a expressão do Catecismo (n. 170), que vimos acima,
“não cremos nas imagens”, mas nas realidades que elas representam. Como indicou
o Diretório, as imagens nos apontam
para Deus, nos lembram do seu olhar, Ele que é o “inteiramente Outro”, ao mesmo
tempo “tremendo” e “fascinante” [3].
Além disso, como também ressaltou o parágrafo n. 209 do Diretório, as imagens tocam “os desejos
e afetos”. Como vimos no cap. II, “o encontro com Cristo envolve a pessoa em
sua totalidade: coração, mente, sentidos” (n. 76). Se a pregação da Palavra de
Deus é “a fé que entra pelos ouvidos”, as imagens são “a fé que entra pelos olhos”
e chega à mente (razão) e ao coração (sentimentos), tema que será desenvolvido
a seguir, no parágrafo n. 210:
“A valorização das imagens na catequese retoma uma antiga sabedoria
da Igreja. As imagens, dentre outras coisas, ajudam a conhecer e a memorizar os
eventos da história da salvação de modo mais rápido e imediato. A chamada biblia pauperum (bíblia dos pobres), um
conjunto ordenado, visível a todos, de episódios bíblicos representados em
várias expressões artísticas nas
catedrais e nas igrejas, ainda hoje é uma verdadeira catequese. Quando as obras de arte são escolhidas de
maneira cuidada, elas podem ajudar a mostrar, de modo imediato, os múltiplos
aspectos das verdades da fé, tocando o coração e ajudando na interiorização da
mensagem” (n. 210).
Aprofundando a reflexão sobre o valor das imagens na
Catequese, o n. 210 destaca que essas podem ajudar a “memorizar” (tema tratado
na seção anterior, nn. 201-203) “os eventos da história da salvação”
(recordando a importância da linguagem narrativa, indicada nos nn. 207-208).
No início do cristianismo a maioria das pessoas era
analfabeta e o acesso a livros era muito difícil, uma vez que esses eram copiados a mão. Assim, as imagens sacras representadas de diversas formas nas
igrejas - pinturas, esculturas, mosaicos, vitrais - eram a “Biblia
pauperum”, a “Bíblia dos pobres”, escrita não com palavras, mas com cores e
formas.
E mesmo hoje, quando temos fácil acesso à palavra escrita, a
iconografia continua sendo de grande ajuda, não apenas para as crianças e
analfabetos, mas para todos, pois a beleza da arte “toca o coração e ajuda na
interiorização da mensagem”.
Sobre as imagens sacras, cf.
Catecismo da Igreja Católica, nn. 1159-1162. Para acessar nossa série de postagens sobre os ícones bizantinos, clique aqui.
Cappella degli Scrovegni - Pádua, Itália Os afrescos de Giotto são um resumo de todo o Evangelho |
Prosseguindo com as linguagens das artes, o Diretório dedica o n. 211 à música:
“Também o patrimônio musical da Igreja, de
inestimável valor artístico e espiritual, é veículo da fé e constitui um bem
precioso para a evangelização, pois suscita no espírito humano o desejo do
infinito. O poder da música sacra é bem descrito por
Santo Agostinho: ‘Quanto chorei ao ouvir, profundamente comovido, teus hinos e
cânticos, que ressoavam suavemente em tua Igreja! Penetravam aquelas vozes em
meus ouvidos, e destilavam a verdade em meu coração. Acendia-se em mim um afeto
piedoso, corriam-me lágrimas dos olhos, e o pranto me consolava’ (Confissões, 9,6,14). Os cânticos litúrgicos possuem também uma
riqueza doutrinal que, transmitida com o som da música, entra mais facilmente
na mente e se imprime de modo mais profundo no coração das pessoas” (n. 211).
Assim como as imagens, também a música fala ao homem todo:
mente, coração e sentidos. Já no início do cap. II o Diretório havia exortado: “floresçam (...) novos hinos
cristológicos para anunciar a Boa Notícia” (n. 58). Como vimos, trata-se de um
convite a realizar novas composições inspiradas no querigma e, ao mesmo tempo,
revalorizar as já existentes.
É importante distinguir, porém, entre música sacra e música
litúrgica. A música sacra ou música religiosa é toda aquela que tem como tema a
mensagem cristã. A música litúrgica, por sua vez, é aquela composta
especificamente para a Liturgia.
Podemos dizer que toda música litúrgica é música sacra, mas nem toda
música sacra é música litúrgica. A música sacra deve ocupar um lugar
privilegiado na Catequese, mas não na Liturgia, uma vez que esta possui uma
linguagem e uma dinâmica próprias.
Com efeito, nós não cantamos na Liturgia, mas sim cantamos
a Liturgia. Há cantos que são um rito, cujo texto pode ser fixo (Ato Penitencial, Glória,
Santo, Cordeiro) ou próprio para cada celebração (Salmo, versículo de aclamação
ao Evangelho); e há cantos que acompanham um rito (entrada,
apresentação das oferendas, Comunhão), que admitem maior “criatividade”, mas
sempre em consonância com o tempo litúrgico e com o momento celebrativo.
Além disso, o mais
importante na música litúrgica é a
letra. A melodia, a harmonia e o ritmo estão a serviço da mensagem. Por
isso o Diretório recorda que eles
possuem uma “riqueza doutrinal”, uma vez que são a fé cantada. Portanto, não é
qualquer canto que pode ser entoado nas celebrações. A Constituição Sacrosanctum Concilium recomenda, com efeito, “inspirar-se
sobretudo na Sagrada Escritura” (n. 121).
Sobre a música sacra, cf.
Catecismo da Igreja Católica, nn. 1156-1158.
Cristo glorificado entre anjos músicos (Fra Angelico) |
Os parágrafos do Diretório
sobre as linguagens da arte concluem no n. 212 destacando outras expressões
artísticas: literatura, teatro, cinema, etc. Embora essas formas de arte não
encontrem espaço na Liturgia, são um valioso recurso para a Catequese.
Por fim, a seção 7.4, dedicada à linguagem, se conclui com a
reflexão sobre as linguagens e ferramentas digitais.
A pandemia de Covid-19, que teve início no mesmo mês da
publicação do Diretório (março de 2020), só acelerou um processo inevitável: a
urgência da evangelização no meio digital.
A Igreja antes de tudo deve ter a humildade de reconhecer
que não é perita em todos os assuntos. No uso das novas tecnologias, por
exemplo, é preciso buscar a ajuda dos especialistas (jornalistas, designers,
etc.), fortalecendo a Pastoral da Comunicação, a fim de que o anúncio do
Evangelho seja eficaz.
O mundo digital nos repropõe o desafio da esfinge de Tebas:
“Decifra-me ou devoro-te”, ou melhor, “Decifra-me ou sufoco-te” (esfinge
vem do grego sphingo, apertar).
Não obstante, embora o mundo digital seja um “novo areópago”
que não pode ser ignorado, o Diretório
adverte: “a realidade virtual não pode
substituir a realidade espiritual, sacramental e eclesial vivida no
encontro direto entre as pessoas” (n. 217). Ver, neste sentido, a Carta do
Cardeal Robert Sarah, então Prefeito da Congregação para o Culto Divino, “Voltemos com alegria à Eucaristia!”
(setembro de 2020).
7.5 O grupo (nn. 218-220)
Já na sua Apresentação
o Diretório propunha uma formação
para a vida da fé que valoriza a comunidade. Da mesma forma, o capítulo I
destacou que a fé é um ato pessoal que, ao mesmo tempo, possui um caráter
relacional e comunitário (n. 21).
Assim, retoma-se nesta seção 7.5 a importância do grupo na
Catequese, o que se tornou um novo desafio no contexto da pandemia. Não
obstante, é preciso reafirmar a dimensão comunitária da fé que, como indicam os
nn. 219-220, tem sua máxima expressão na Celebração Eucarística dominical:
“O catequista é convidado a, no grupo, fazer viva a
experiência da comunidade como expressão mais coerente da vida da Igreja, que
encontra na celebração da Eucaristia
a sua forma mais visível” (n. 219);
“Cada dinâmica de grupo tem seu ápice na assembleia
dominical, na qual, na experiência do encontro com o Senhor e da
fraternidade com todos os cristãos, o grupo amadurece na disponibilidade ao
serviço, especialmente aos mais pobres, e ao testemunho no mundo” (n. 220).
7.6 O espaço (nn. 221-223)
Por fim, a última seção do capítulo VII indica que o
“espaço” também é uma dimensão importante da “metodologia da catequese”. Assim,
unida às linguagens das artes visuais que vimos acima, a linguagem da
arquitetura também está a serviço da fé:
“Toda cultura, sociedade ou comunidade dispõe não somente de
uma linguagem verbal própria, icônica e gestual, mas também se exprime e se
comunica por meio do espaço. Da mesma forma, a Igreja deu significados
específicos aos próprios espaços, usando os elementos da arquitetura em
função da mensagem cristã. Ao longo dos séculos, criou espaços adequados para
acolher as pessoas e realizar suas atividades: celebração dos mistérios divinos, partilha fraterna e ensino. Por
exemplo, nos complexos paleocristãos, o nártex (narthex) era um espaço, geralmente situado entre as naves e a
fachada principal da igreja, destinado a abrigar penitentes e catecúmenos.
Muitas vezes decorado com cenas bíblicas ou representações dos mistérios da fé,
o nártex, mediante essas imagens, também se tornou um espaço de catequese. Na
vida de uma comunidade, para além do espaço
dedicado à Liturgia, são também importantes os lugares para o apostolado e
a formação cristã, para a socialização e a caridade” (n. 221).
Deste parágrafo podemos colher primeiramente o valor do
espaço litúrgico, isto é, o espaço no qual se realizam as celebrações, cuja
teologia é expressa sobretudo no Ritual da
Dedicação de Igreja e Altar (presente no Pontifical Romano).
Rito de Admissão de catecúmenos no átrio da Basílica de São Pedro |
Do espaço litúrgico, o n. 221 do Diretório destaca o nártex, também
chamado de átrio, o espaço da acolhida junto à porta da igreja, que muitas
vezes era também o espaço da Catequese.
Fica claro aqui que o espaço da Catequese não deve ser
“improvisado”, possuindo tanta importância quanto o espaço litúrgico. No
parágrafo seguinte (n. 222), o Diretório
adverte que “os ambientes que recordam as estruturas escolares não são os
melhores lugares para a realização das atividades catequéticas”.
As nossas “salas de Catequese”, portanto, devem ser
adaptadas. O Padre Thiago Faccini Paro, Assessor do Setor Espaço Litúrgico da
Comissão Episcopal para a Liturgia da CNBB, em seu livro “Catequese e Liturgia na Iniciação Cristã: O que é e como fazer”
(2018), apresenta uma proposta interessante, estruturando o espaço ao redor de
duas mesas:
- a mesa da Palavra: uma estante com o livro da Palavra de
Deus, que pode ser ladeada por uma ou duas velas e ornada por um frontal com a
cor do tempo litúrgico;
- a mesa da partilha: catequista e catequizandos se sentam
ao redor de uma grande mesa, para partilhar a mensagem como quem partilha uma
refeição.
Sobre o espaço sagrado, confira também:
Antes de concluir, cabe dizer (e esta é a opinião do
autor deste blog) que o Diretório perdeu aqui uma
grande oportunidade de evidenciar a dimensão do tempo unida ao espaço.
Se uma “sala de aula” não é o espaço adequado para a
Catequese, o calendário civil e o calendário escolar não são a melhor forma de
organizar o seu tempo. Como temos visto ao longo dessas postagens, a Catequese
deveria buscar cada vez mais ordenar-se segundo o ritmo do Ano Litúrgico,
itinerário mistagógico que nos leva a uma gradual e progressiva contemplação
dos mistérios da fé.
[Atualização: Para acessar a oitava parte desta série, com a análise das seções 1-6 do capítulo VIII, clique aqui]
Notas:
[1] PONTIFÍCIO CONSELHO PARA A PROMOÇÃO DA NOVA
EVANGELIZAÇÃO. Diretório para a Catequese.
Brasília: Edições CNBB, 2020. Coleção: Documentos
da Igreja, 61.
[2] Há também as 06 Igrejas Ortodoxas Orientais, que aceitam
apenas os três primeiros Concílios Ecumênicos (Niceia, Constantinopla e Éfeso);
e a Igreja Assíria do Oriente, que aceita apenas os dois primeiros. Saiba mais clicando aqui.
[3] Expressões utilizadas por Rudolf Otto em sua obra “O Sagrado” (1917).
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