segunda-feira, 2 de agosto de 2021

Liturgia no Diretório para a Catequese (2020) - Parte 07

“Em sua história, a Igreja comunicou a fé por meio da Sagrada Escritura (linguagem bíblica), dos símbolos e ritos litúrgicos (linguagem simbólico-litúrgica)...” (Diretório para a Catequese, n. 205).

No mês de julho iniciamos aqui em nosso blog uma série sobre a Liturgia no novo Diretório para a Catequese, publicado pelo Pontifício Conselho para a Promoção da Nova Evangelização em março de 2020 [1].

Após uma Introdução, apresentando o documento, seguiram-se seis postagens nas quais analisamos o Diretório sob a perspectiva da Liturgia, dos sacramentos e da piedade popular, desde sua Apresentação até a terceira seção do capítulo VII.

Nesta postagem concluiremos a análise desse capítulo com suas últimas três seções.

Capítulo VII: A metodologia da catequese

7.4 A linguagem (nn. 204-217)

Como vimos em nossa postagem anterior, o capítulo VII é dedicado à “pedagogia catequética”, isto é, o modo próprio com o qual a Catequese transmite o Evangelho.

Após destacar a importância da “memória” na seção n. 3, o Diretório prossegue sua reflexão na seção n. 4 com o “veículo” fundamental da transmissão da fé: a linguagem. A Constituição Dogmática Dei Verbum recorda que “na Sagrada Escritura Deus falou por meio dos homens e à maneira humana” (n. 12). Da mesma forma, Paulo afirma que “a fé vem pela escuta” (fides ex auditu; Rm 10,17).

Jesus pregando a seus Apóstolos (Fra Angelico)

Citando o Catecismo da Igreja Católica (n. 170), o Diretório atesta que as formulações da fé em linguagem humana “nos permitem expressar e transmitir a fé, celebrá-la em comunidade, assimilá-la e vivê-la cada vez mais intensamente” (n. 204).

Porém no mesmo parágrafo e ainda citando o n. 170 do Catecismo, adverte: “Não cremos em fórmulas, mas sim nas realidades que elas expressam e que a fé nos permite ‘tocar’”. Podemos fazer uma comparação aqui com a veneração às imagens: contemplando uma imagem de Cristo, nosso culto não se dirige à imagem em si, mas sim Àquele que ela representa.

Prosseguindo a reflexão, o Diretório para a Catequese recorda no n. 205 as principais linguagens da fé da Igreja, dentre as quais está a linguagem própria da Liturgia:

“Em sua história, a Igreja comunicou a fé por meio da Sagrada Escritura (linguagem bíblica), dos símbolos e ritos litúrgicos (linguagem simbólico-litúrgica), dos escritos dos Padres, Símbolos da fé, formulações do Magistério (linguagem doutrinal) e do testemunho de Santos e Mártires (linguagem performativa). Essas são as linguagens principais da fé eclesial” (n. 205).

Junto a essas “linguagens principais da fé”, “a catequese assume criativamente as linguagens das culturas dos povos” (n. 206). Nesse sentido, propondo o diálogo entre fé e cultura, os parágrafos seguintes destacam: a linguagem narrativa (nn. 207-208); a linguagem da arte (nn. 209-212); e as linguagens e ferramentas digitais (nn. 213-217).

Em relação à linguagem da arte, já o capítulo II havia elencado a via pulchritudinis (caminho da beleza) entre as fontes da Catequese (nn. 106-109). A mensagem do Evangelho, com efeito, não é apenas bondade e verdade, mas também beleza.

Ao refletir sobre as diversas linguagens das artes, o parágrafo n. 209 inicia com as “artes visuais” ou “artes plásticas”, como a pintura ou a escultura:

“As imagens da arte cristã, quando autênticas, por meio da percepção sensível, sugerem que o Senhor está vivo, presente e atuante na Igreja e na história (cf. João Paulo II, Carta Apostólica Duodecimum saeculum sobre a veneração das imagens, 1987). Elas constituem, portanto, uma verdadeira linguagem da fé. Célebre é o ditado: ‘Se um pagão lhe pedir: ‘Mostra-me a tua fé’ (...), tu o levarás a uma igreja e o colocarás diante dos ícones sagrados’ (Adversus Constantinum Caballinum, 10). Esse repertório iconográfico, apesar da grande e legítima variedade de estilos, foi, no primeiro milênio, um tesouro comum da Igreja indivisa e desempenhou um papel importante na evangelização, uma vez que, pela mediação de símbolos universais, tocou os mais profundos desejos e afetos capazes de operar uma transformação interior. Em nosso tempo, portanto as imagens cristãs podem ajudar a fazer a experiência do encontro com Deus por meio da contemplação dessa beleza. Com efeito, essas são imagens que trazem para aqueles que as contemplam o olhar de um ‘Outro’ invisível, dando acesso à realidade do mundo espiritual e escatológico” (n. 209).

Jesus Cristo, o "belo pastor"
(Imagem das Catacumbas de São Calisto, Roma - séc. III)

Esse denso parágrafo começa com uma afirmação importante: “As imagens da arte cristã, quando autênticas...”. Ou seja, nem toda imagem da arte cristã é autêntica. Por exemplo, uma imagem que transmitisse uma ideia estranha à fé cristã não poderia ser considerada autêntica. É preciso tomar cuidado, portanto, para que as imagens articulem beleza, bondade e verdade.

Prosseguindo, o parágrafo cita a Carta Apostólica Duodecimum saeculum, promulgada pelo Papa João Paulo II em 1987, por ocasião dos 1200 anos do II Concílio de Niceia (787). Esse Concílio, o último dos sete Concílios Ecumênicos aceitos tanto pela Igreja Católica quanto pela Igreja Ortodoxa Bizantina [2], definiu a doutrina da veneração das imagens (iconodulia).

As imagens sagradas não são ídolos, tantas vezes condenados no Antigo Testamento, pois os ídolos são objetos a serem adorados em si: são “deuses”. Parafraseando a expressão do Catecismo (n. 170), que vimos acima, “não cremos nas imagens”, mas nas realidades que elas representam. Como indicou o Diretório, as imagens nos apontam para Deus, nos lembram do seu olhar, Ele que é o “inteiramente Outro”, ao mesmo tempo “tremendo” e “fascinante” [3].

Além disso, como também ressaltou o parágrafo n. 209 do Diretório, as imagens tocam “os desejos e afetos”. Como vimos no cap. II, “o encontro com Cristo envolve a pessoa em sua totalidade: coração, mente, sentidos” (n. 76). Se a pregação da Palavra de Deus é “a fé que entra pelos ouvidos”, as imagens são “a fé que entra pelos olhos” e chega à mente (razão) e ao coração (sentimentos), tema que será desenvolvido a seguir, no parágrafo n. 210:

“A valorização das imagens na catequese retoma uma antiga sabedoria da Igreja. As imagens, dentre outras coisas, ajudam a conhecer e a memorizar os eventos da história da salvação de modo mais rápido e imediato. A chamada biblia pauperum (bíblia dos pobres), um conjunto ordenado, visível a todos, de episódios bíblicos representados em várias expressões artísticas nas catedrais e nas igrejas, ainda hoje é uma verdadeira catequese. Quando as obras de arte são escolhidas de maneira cuidada, elas podem ajudar a mostrar, de modo imediato, os múltiplos aspectos das verdades da fé, tocando o coração e ajudando na interiorização da mensagem” (n. 210).

Aprofundando a reflexão sobre o valor das imagens na Catequese, o n. 210 destaca que essas podem ajudar a “memorizar” (tema tratado na seção anterior, nn. 201-203) “os eventos da história da salvação” (recordando a importância da linguagem narrativa, indicada nos nn. 207-208).

No início do cristianismo a maioria das pessoas era analfabeta e o acesso a livros era muito difícil, uma vez que esses eram copiados a mão. Assim, as imagens sacras representadas de diversas formas nas igrejas - pinturas, esculturas, mosaicos, vitrais -  eram a “Biblia pauperum”, a “Bíblia dos pobres”, escrita não com palavras, mas com cores e formas.

E mesmo hoje, quando temos fácil acesso à palavra escrita, a iconografia continua sendo de grande ajuda, não apenas para as crianças e analfabetos, mas para todos, pois a beleza da arte “toca o coração e ajuda na interiorização da mensagem”.

Sobre as imagens sacras, cf. Catecismo da Igreja Católica, nn. 1159-1162. Para acessar nossa série de postagens sobre os ícones bizantinos, clique aqui.

Cappella degli Scrovegni - Pádua, Itália
Os afrescos de Giotto são um resumo de todo o Evangelho

Prosseguindo com as linguagens das artes, o Diretório dedica o n. 211 à música:

“Também o patrimônio musical da Igreja, de inestimável valor artístico e espiritual, é veículo da fé e constitui um bem precioso para a evangelização, pois suscita no espírito humano o desejo do infinito. O poder da música sacra é bem descrito por Santo Agostinho: ‘Quanto chorei ao ouvir, profundamente comovido, teus hinos e cânticos, que ressoavam suavemente em tua Igreja! Penetravam aquelas vozes em meus ouvidos, e destilavam a verdade em meu coração. Acendia-se em mim um afeto piedoso, corriam-me lágrimas dos olhos, e o pranto me consolava’ (Confissões, 9,6,14). Os cânticos litúrgicos possuem também uma riqueza doutrinal que, transmitida com o som da música, entra mais facilmente na mente e se imprime de modo mais profundo no coração das pessoas” (n. 211).

Assim como as imagens, também a música fala ao homem todo: mente, coração e sentidos. Já no início do cap. II o Diretório havia exortado: “floresçam (...) novos hinos cristológicos para anunciar a Boa Notícia” (n. 58). Como vimos, trata-se de um convite a realizar novas composições inspiradas no querigma e, ao mesmo tempo, revalorizar as já existentes.

É importante distinguir, porém, entre música sacra e música litúrgica. A música sacra ou música religiosa é toda aquela que tem como tema a mensagem cristã. A música litúrgica, por sua vez, é aquela composta especificamente para a Liturgia.

Podemos dizer que toda música litúrgica é música sacra, mas nem toda música sacra é música litúrgica. A música sacra deve ocupar um lugar privilegiado na Catequese, mas não na Liturgia, uma vez que esta possui uma linguagem e uma dinâmica próprias.

Com efeito, nós não cantamos na Liturgia, mas sim cantamos a Liturgia. Há cantos que são um rito, cujo texto pode ser fixo (Ato Penitencial, Glória, Santo, Cordeiro) ou próprio para cada celebração (Salmo, versículo de aclamação ao Evangelho); e há cantos que acompanham um rito (entrada, apresentação das oferendas, Comunhão), que admitem maior “criatividade”, mas sempre em consonância com o tempo litúrgico e com o momento celebrativo.

Além disso, o mais importante na música litúrgica é a letra. A melodia, a harmonia e o ritmo estão a serviço da mensagem. Por isso o Diretório recorda que eles possuem uma “riqueza doutrinal”, uma vez que são a fé cantada. Portanto, não é qualquer canto que pode ser entoado nas celebrações. A Constituição Sacrosanctum Concilium recomenda, com efeito, “inspirar-se sobretudo na Sagrada Escritura” (n. 121).

Sobre a música sacra, cf. Catecismo da Igreja Católica, nn. 1156-1158.

Cristo glorificado entre anjos músicos (Fra Angelico)

Os parágrafos do Diretório sobre as linguagens da arte concluem no n. 212 destacando outras expressões artísticas: literatura, teatro, cinema, etc. Embora essas formas de arte não encontrem espaço na Liturgia, são um valioso recurso para a Catequese.

Por fim, a seção 7.4, dedicada à linguagem, se conclui com a reflexão sobre as linguagens e ferramentas digitais.

A pandemia de Covid-19, que teve início no mesmo mês da publicação do Diretório (março de 2020), só acelerou um processo inevitável: a urgência da evangelização no meio digital.

A Igreja antes de tudo deve ter a humildade de reconhecer que não é perita em todos os assuntos. No uso das novas tecnologias, por exemplo, é preciso buscar a ajuda dos especialistas (jornalistas, designers, etc.), fortalecendo a Pastoral da Comunicação, a fim de que o anúncio do Evangelho seja eficaz.

O mundo digital nos repropõe o desafio da esfinge de Tebas: “Decifra-me ou devoro-te”, ou melhor, “Decifra-me ou sufoco-te” (esfinge vem do grego sphingo, apertar).

Não obstante, embora o mundo digital seja um “novo areópago” que não pode ser ignorado, o Diretório adverte: “a realidade virtual não pode substituir a realidade espiritual, sacramental e eclesial vivida no encontro direto entre as pessoas” (n. 217). Ver, neste sentido, a Carta do Cardeal Robert Sarah, então Prefeito da Congregação para o Culto Divino, “Voltemos com alegria à Eucaristia!” (setembro de 2020).

Cultura digital: desafio e oportunidade para a evangelização

7.5 O grupo (nn. 218-220)

Já na sua Apresentação o Diretório propunha uma formação para a vida da fé que valoriza a comunidade. Da mesma forma, o capítulo I destacou que a fé é um ato pessoal que, ao mesmo tempo, possui um caráter relacional e comunitário (n. 21).

Assim, retoma-se nesta seção 7.5 a importância do grupo na Catequese, o que se tornou um novo desafio no contexto da pandemia. Não obstante, é preciso reafirmar a dimensão comunitária da fé que, como indicam os nn. 219-220, tem sua máxima expressão na Celebração Eucarística dominical:

“O catequista é convidado a, no grupo, fazer viva a experiência da comunidade como expressão mais coerente da vida da Igreja, que encontra na celebração da Eucaristia a sua forma mais visível” (n. 219);

“Cada dinâmica de grupo tem seu ápice na assembleia dominical, na qual, na experiência do encontro com o Senhor e da fraternidade com todos os cristãos, o grupo amadurece na disponibilidade ao serviço, especialmente aos mais pobres, e ao testemunho no mundo” (n. 220).

7.6 O espaço (nn. 221-223)

Por fim, a última seção do capítulo VII indica que o “espaço” também é uma dimensão importante da “metodologia da catequese”. Assim, unida às linguagens das artes visuais que vimos acima, a linguagem da arquitetura também está a serviço da fé:

“Toda cultura, sociedade ou comunidade dispõe não somente de uma linguagem verbal própria, icônica e gestual, mas também se exprime e se comunica por meio do espaço. Da mesma forma, a Igreja deu significados específicos aos próprios espaços, usando os elementos da arquitetura em função da mensagem cristã. Ao longo dos séculos, criou espaços adequados para acolher as pessoas e realizar suas atividades: celebração dos mistérios divinos, partilha fraterna e ensino. Por exemplo, nos complexos paleocristãos, o nártex (narthex) era um espaço, geralmente situado entre as naves e a fachada principal da igreja, destinado a abrigar penitentes e catecúmenos. Muitas vezes decorado com cenas bíblicas ou representações dos mistérios da fé, o nártex, mediante essas imagens, também se tornou um espaço de catequese. Na vida de uma comunidade, para além do espaço dedicado à Liturgia, são também importantes os lugares para o apostolado e a formação cristã, para a socialização e a caridade” (n. 221).

Deste parágrafo podemos colher primeiramente o valor do espaço litúrgico, isto é, o espaço no qual se realizam as celebrações, cuja teologia é expressa sobretudo no Ritual da Dedicação de Igreja e Altar (presente no Pontifical Romano).

Rito de Admissão de catecúmenos no átrio da Basílica de São Pedro

Do espaço litúrgico, o n. 221 do Diretório destaca o nártex, também chamado de átrio, o espaço da acolhida junto à porta da igreja, que muitas vezes era também o espaço da Catequese.

Fica claro aqui que o espaço da Catequese não deve ser “improvisado”, possuindo tanta importância quanto o espaço litúrgico. No parágrafo seguinte (n. 222), o Diretório adverte que “os ambientes que recordam as estruturas escolares não são os melhores lugares para a realização das atividades catequéticas”.

As nossas “salas de Catequese”, portanto, devem ser adaptadas. O Padre Thiago Faccini Paro, Assessor do Setor Espaço Litúrgico da Comissão Episcopal para a Liturgia da CNBB, em seu livro “Catequese e Liturgia na Iniciação Cristã: O que é e como fazer” (2018), apresenta uma proposta interessante, estruturando o espaço ao redor de duas mesas:
- a mesa da Palavra: uma estante com o livro da Palavra de Deus, que pode ser ladeada por uma ou duas velas e ornada por um frontal com a cor do tempo litúrgico;
- a mesa da partilha: catequista e catequizandos se sentam ao redor de uma grande mesa, para partilhar a mensagem como quem partilha uma refeição.

Sobre o espaço sagrado, confira também:

Antes de concluir, cabe dizer (e esta é a opinião do autor deste blog) que o Diretório perdeu aqui uma grande oportunidade de evidenciar a dimensão do tempo unida ao espaço.

Se uma “sala de aula” não é o espaço adequado para a Catequese, o calendário civil e o calendário escolar não são a melhor forma de organizar o seu tempo. Como temos visto ao longo dessas postagens, a Catequese deveria buscar cada vez mais ordenar-se segundo o ritmo do Ano Litúrgico, itinerário mistagógico que nos leva a uma gradual e progressiva contemplação dos mistérios da fé.

Adequar o calendário da Catequese ao Ano Litúrgico, itinerário mistagógico

[Atualização: Para acessar a oitava parte desta série, com a análise das seções 1-6 do capítulo VIII, clique aqui]

Notas:

[1] PONTIFÍCIO CONSELHO PARA A PROMOÇÃO DA NOVA EVANGELIZAÇÃO. Diretório para a Catequese. Brasília: Edições CNBB, 2020. Coleção: Documentos da Igreja, 61.

[2] Há também as 06 Igrejas Ortodoxas Orientais, que aceitam apenas os três primeiros Concílios Ecumênicos (Niceia, Constantinopla e Éfeso); e a Igreja Assíria do Oriente, que aceita apenas os dois primeiros. Saiba mais clicando aqui.

[3] Expressões utilizadas por Rudolf Otto em sua obra “O Sagrado” (1917).

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