"A Liturgia é uma das
fontes essenciais e indispensáveis da catequese da Igreja” (Diretório para a
Catequese, n. 95)
Dos doze capítulos que compõem o novo Diretório para a Catequese, promulgado
pelo Pontifício Conselho para a Promoção da Nova Evangelização no dia 23 de
março de 2020 [1], o capítulo II - “A
identidade da catequese” (nn. 55-109) - é um dos mais longos e com mais
referências à Liturgia.
Nas postagens anteriores dessa série analisamos sob a
perspectiva da Liturgia, dos sacramentos e da piedade popular as primeiras
quatro seções desse capítulo. Agora concluiremos o capítulo com a quinta seção,
“Fontes da catequese” (nn. 90-109),
que contém alguns dos parágrafos mais importantes do Diretório sobre o nosso tema.
Capítulo II: A
identidade da catequese
2.5. Fontes da catequese (nn. 90-109)
Já na sua Apresentação, citando o Decreto Christus Dominus do Concílio Vaticano II
(n. 14), o Diretório elencava a Liturgia entre as fontes da Catequese, junto à Sagrada
Escritura, a Tradição, o Magistério e a vida da Igreja.
Na quinta seção do capítulo II são elencadas sete fontes ou
“vias” da Catequese: a Palavra de Deus na Sagrada Escritura e na Sagrada
Tradição (nn. 91-92); o Magistério (nn. 93-94); a Liturgia (nn.
95-98); o testemunho dos santos e dos mártires (nn. 99-100); a teologia (n. 101); a cultura (nn. 102-105); a beleza (nn. 106-109).
"Estão em ti as nossas fontes" (Sl 86,7) A cruz, fonte da vida - Arquibasílica do Latrão, Roma |
Antes de tudo o Diretório
exorta que, salvaguardando a preeminência da Palavra de Deus, haja um equilíbrio
entre as várias fontes, “sem a prática de uma catequese unilateral (por
exemplo, uma catequese puramente bíblica, ou somente litúrgica, ou apenas
experiencial)” (n. 90).
A seção inicia com os dois parágrafos dedicados à Palavra de Deus, que
“não se exaure na Sagrada Escritura, porque é uma realidade viva” (n. 91). Mais
do que um livro (ou um conjunto de livros) a Palavra é uma Pessoa: Cristo (cf. Jo 1,1-14; Hb 1,1-2).
Portanto, unida à Sagrada Escritura como fonte primordial da
Catequese está a Tradição, “rio de água viva” que brota do trono do Cordeiro (Ap 22,1) e cuja síntese encontra-se no
Símbolo da Fé (o Creio). “Nas pegadas da Tradição” estão os Padres da Igreja,
grandes teólogos dos primeiros séculos do Cristianismo, e o Magistério (o Papa
e os Bispos), que “conserva, interpreta e transmite o depósito da fé” (n. 93).
[Em nosso blog há diversas postagens com homilias dos Padres da Igreja para os domingos e festas litúrgicas. Para conferi-las, clique aqui]
Passamos agora aos quatro parágrafos sobre a Liturgia como
fonte da Catequese. Reproduziremos cada um deles na íntegra, seguidos de alguns
comentários:
95. “A Liturgia é uma
das fontes essenciais e indispensáveis da catequese da Igreja, não só
porque a partir da Liturgia a catequese pode colher conteúdos, linguagens,
gestos e palavras da fé, mas sobretudo porque elas pertencem reciprocamente uma
à outra no próprio ato de crer. A Liturgia e a catequese, compreendidas à luz
da Tradição da Igreja, embora cada uma tenha sua especificidade, não devem ser
justapostas, mas devem ser compreendidas no contexto da vida cristã e eclesial
e ambas são orientadas a fazer viver a experiência do amor de Deus. O antigo
princípio lex credendi lex orandi
recorda, efetivamente, que a Liturgia é um elemento constitutivo da Tradição”.
O parágrafo começa com uma afirmação fundamental: a Liturgia
é uma fonte indispensável da Catequese. Primeiramente porque a
Catequese pode “colher conteúdos, linguagens, gestos e palavras da fé” da Liturgia.
Ou seja, ao lado da Sagrada Escritura (Bíblia) e do Catecismo da Igreja Católica como
“livros de catequese”, devemos incluir o Missal
Romano e os demais livros litúrgicos. Por exemplo, se um catequista deseja
preparar um encontro sobre o mistério da Trindade, pode encontrar
excelente material nas orações do Missal
Romano para a Solenidade da Santíssima Trindade; nas leituras indicadas
para esse dia no Lecionário; nos salmos, hinos e cânticos da Liturgia das
Horas.
Missal Romano: suas orações são uma rica fonte para a Catequese |
[Para aprofundar: Formações sobre o Missal (4): O Missal, modelo de oração]
E não apenas os textos, mas também os símbolos e gestos
litúrgicos são fonte da Catequese. Por exemplo, um encontro de Catequese sobre
a Ressurreição do Senhor pode comportar uma breve “paraliturgia”, isto é, um
rito adaptado em torno do círio pascal ou do símbolo da água...
Recorda-se aqui a célebre expressão lex orandi lex credendi: a lei da oração é a lei da fé [2].
A Igreja crê aquilo que celebra e celebra aquilo que crê. Catequese e Liturgia
estão orientadas ao mesmo fim: “fazer viver a experiência do amor de Deus”.
Embora sejam “irmãs gêmeas”, pois “pertencem reciprocamente
uma à outra”, porém, “não devem ser
justapostas”, pois cada uma tem sua identidade própria, como será reafirmado no
parágrafo seguinte. Guardadas as devidas proporções, Catequese e Liturgia devem
ser como as duas naturezas de Cristo (divina e humana): “unidas, mas não
misturadas; distintas, mas não contraditórias”.
96. “A Liturgia é ‘o
lugar privilegiado da catequese do Povo de Deus’ (Catecismo da Igreja Católica, n. 1074). Isso não deve ser entendido
no sentido de que a Liturgia deve perder seu caráter celebrativo e ser
transformada em catequese ou que a catequese seja supérflua. Embora seja
correto que as duas mantenham sua especificidade, deve-se reconhecer que a Liturgia é o ápice e a fonte da vida
cristã. A catequese, de fato, tem fundamento a partir de um primeiro
encontro efetivo do catequizando com a comunidade que celebra o mistério, e isso
equivale a dizer que a catequese tem plena realização quando ele participa da
vida litúrgica da comunidade. Portanto, não é possível pensar na catequese
apenas como preparação para os sacramentos, mas ela se compreende em relação à
experiência litúrgica. ‘A catequese está intrinsecamente ligada a toda ação
litúrgica e sacramental, pois é nos Sacramentos, sobretudo na Eucaristia, que
Cristo Jesus age em plenitude na transformação dos homens’ (Exortação
Apostólica Catechesi Tradendae, n.
23). Portanto, a Liturgia e a catequese
são inseparáveis e se alimentam mutuamente”.
Citando o Catecismo,
o Diretório recorda que a Liturgia é
o “lugar privilegiado da catequese do Povo de Deus”, pois é principalmente nas
celebrações litúrgicas que os fiéis se reúnem para ouvir a Palavra de Deus,
para renovar a fé, para alimentar-se dos sacramentos...
A Liturgia, com efeito, é “fonte” e “ápice” de toda a vida
cristã (cf. Sacrosanctum Concilium, n. 10). Vale recordar aqui as “quatro
presenças” de Cristo na Liturgia: na Palavra, nos sacramentos (sobretudo na Eucaristia),
no sacerdote e na assembleia reunida (ibid.,
n. 07).
Cristo e os discípulos de Emaús Itinerário mistagógico centrado na Palavra e na Fração do Pão |
Contudo, como vimos no parágrafo anterior, a Liturgia não
pode “perder seu caráter celebrativo e ser transformada em catequese”. Por
exemplo, em alguns lugares existe o costume de celebrar uma “Missa explicada”,
na qual o sacerdote comenta cada uma das suas partes enquanto essas se
desenrolam. Embora geralmente isso se faça com boa intenção, se perde a
dinâmica própria da celebração e esta acaba se tornando “pesada”.
Seria muito mais proveitoso organizar um “ciclo de
catequeses”, no qual a cada domingo o sacerdote comenta uma parte da celebração
com a comunidade (por exemplo, em um domingo se destacaria o sentido da
procissão da entrada; no seguinte o beijo do altar; no outro a incensação...).
Outra sugestão seria realizar “celebrações mistagógicas”
fora da Missa, envolvendo um encontro catequético em uma atmosfera celebrativa.
Por exemplo, para o 34º Encontro Nacional de Pastoral Litúrgica (2008), o
Secretariado Nacional de Liturgia de Portugal preparou uma celebração
mistagógica sobre o sentido de cada elemento do espaço litúrgico com leituras, orações e cantos. No futuro pretendemos realizar uma postagem sobre
essa celebração aqui em nosso blog.
Por fim, o parágrafo 96 reitera ainda que “não é possível
pensar na catequese apenas como preparação para os sacramentos, mas ela se
compreende em relação à experiência litúrgica” como um todo. Na postagem anterior desta série já levantamos o questionamento sobre como estamos
celebrando a Confirmação e a Primeira Comunhão em nossas comunidades, as quais
muitas vezes infelizmente tomam muitos elementos de uma “formatura” escolar...
97. “O caminho formativo do cristão, como é atestado nas Catequeses
mistagógicas dos Padres da Igreja, teve sempre um caráter experiencial,
mas não negligenciando a inteligência da fé. O encontro vivo e persuasivo com
Cristo anunciado por testemunhas autênticas era determinante. Por isso, aquele
que introduz aos mistérios é, antes de tudo, uma testemunha. Esse encontro tem sua fonte e seu ápice na celebração da
Eucaristia e se aprofunda na catequese”.
O parágrafo 97 retoma o tema da mistagogia (iniciação ao
mistério) através da referência às Catequeses mistagógicas dos Padres da Igreja.
Essas catequeses tinham lugar sempre depois da recepção dos sacramentos da
Iniciação Cristã e aprofundavam o sentido dos seus ritos. O ciclo mais famoso
dessas catequeses pertence a São Cirilo de Jerusalém (séc. IV).
São Cirilo de Jerusalém, autor das "Catequeses Mistagógicas" |
Além disso, sem negligenciar a dimensão do conteúdo, ou
melhor, da “inteligência da fé”, o Diretório exorta a uma instrução
litúrgico-catequética que possua também um “caráter experiencial”. Isto
significa que o catequista e toda a comunidade cristã são chamados a dar
testemunho diante dos catequizandos, sobretudo em relação à participação na
Celebração Eucarística dominical da comunidade.
98. “A exigência de um itinerário
mistagógico tem por base essa estrutura fundamental da experiência cristã,
da qual emergem três elementos essenciais (Exortação Apostólica Sacramentum Caritatis, n. 64):
a) a interpretação
dos ritos à luz dos acontecimentos salvíficos, em conformidade com a
Tradição da Igreja, relendo os mistérios da vida de Jesus, particularmente seu Mistério
Pascal, em relação com todo o percurso veterotestamentário;
b) a introdução ao sentido
dos sinais litúrgicos, de modo que a catequese mistagógica desperte e eduque
a sensibilidade dos fiéis à linguagem dos sinais e dos gestos que, unidos à
palavra, constituem o rito;
c) a apresentação do
significado dos ritos para a vida cristã em todas as suas dimensões, para
evidenciar o elo entre a Liturgia e a responsabilidade missionária dos fiéis,
além de fazer crescer a consciência de que a existência dos fiéis é
gradualmente transformada pelos mistérios celebrados.
A dimensão mistagógica da catequese não se reduz, porém, ao
aprofundamento da iniciação cristã após
ter recebido os sacramentos, mas envolve também sua inserção na Liturgia dominical e nas festas do ano
litúrgico, com a qual a Igreja já nutre os catecúmenos e as crianças
batizadas bem antes de poderem receber a Eucaristia ou antes que tenham acesso
a uma catequese orgânica e estruturada”.
Por fim, esses parágrafos sobre a Liturgia como fonte da
Catequese concluem com um extraordinário “itinerário mistagógico” proposto pelo
Papa Bento XVI em sua Exortação Apostólica Sacramentum
Caritatis. As três etapas desse processo podem muito bem servir de modelo
para um bom encontro catequético:
a) interpretação dos
ritos à luz dos acontecimentos salvíficos: leitura da Palavra de Deus,
procurando identificar os paralelos entre os mistérios da vida de Cristo e os
acontecimentos do Antigo Testamento;
b) introdução ao
sentido dos sinais litúrgicos: iluminar o conteúdo lido com um símbolo ou
gesto litúrgico, aprofundando seu sentido;
c) apresentação do significado
dos ritos para a vida cristã: “atualizar” o conteúdo lido na Palavra e
celebrado no rito através de um compromisso concreto para a vida.
Por exemplo, um encontro sobre a Ressurreição de Cristo
centrado no tema da luz:
a) recordar o simbolismo da luz no Antigo Testamento
(criação, coluna de fogo no êxodo) e no próprio Mistério Pascal (trevas da
sexta-feira, aurora do domingo);
b) refletir sobre os múltiplos simbolismos do círio pascal;
entoar um refrão que celebre o dom da luz;
c) suplicar ao Espírito Santo para que nos ilumine, a fim de
que sejamos também nós “luz do mundo” (Mt
5,14).
O parágrafo conclui afirmando ainda o valor “pedagógico” ou
“mistagógico” da Liturgia dominical e das festas do Ano Litúrgico, a serem cada
vez mais valorizadas em nossa Catequese e em nossa espiritualidade.
Prosseguindo com a quarta fonte da Catequese, o testemunho
dos santos e dos mártires, os quais também são celebrados ao ritmo da
Liturgia, o Diretório recorda
sobretudo sua presença na arte sacra: “dos afrescos nas igrejas e dos ícones
aos contos edificantes para os pequenos e para os não alfabetizados” (n. 99).
Vale lembrar que a devoção à Virgem Maria e aos santos não
deve ocupar o centro nem da Catequese nem da Liturgia, mas sim apontar para o verdadeiro
centro que é Cristo (cf. Diretório sobre
Piedade Popular e Liturgia, cap. V-VI). Também é importante valorizar
aqueles santos mais diretamente ligados à história da salvação: os Patriarcas e
Profetas do Antigo Testamento, os Apóstolos e Mártires...
Após os parágrafos sobre a teologia e a cultura cristã (nn.
102-105), esta seção - e, por conseguinte, o capítulo II - conclui com uma
reflexão sobre a beleza como fonte da
Catequese (nn. 106-109).
Os primeiros dois parágrafos celebram a beleza da criação e
a beleza de Cristo, “imagem do Deus invisível” (Cl 1,15), enquanto o n. 108 propõe a Catequese através da “via pulchritudinis”, o caminho da
beleza, sempre unida à bondade e à verdade (cf. Exortação Apostólica Evangelii
Gaudium, n. 167).
O n. 109, por sua vez, encerra com o convite a “descobrir e
apreciar o incrível e imenso patrimônio
litúrgico e artístico da Igreja”, uma vez que “a infinita beleza de Deus também
se expressa nas obras humanas (Sacrosanctum Concilium, n. 122)”.
[Para acessar nossa série de postagens sobre os ícones bizantinos das principais festas litúrgicas, clique aqui]
Ícone de Cristo, "o belo pastor" (O Evangelho chama Cristo de "belo pastor", articulando beleza e bondade) |
[Atualização: Para acessar a próxima postagem, com a análise dos capítulos III e IV, clique aqui]
Notas:
[1] PONTIFÍCIO CONSELHO PARA A PROMOÇÃO DA NOVA
EVANGELIZAÇÃO. Diretório para a Catequese.
Brasília: Edições CNBB, 2020. Coleção: Documentos
da Igreja, 61.
[2] A expressão é de autoria de São Próspero de Aquitânia
(séc. VI); cf. Catecismo da Igreja
Católica, n. 1124.
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