“Eu sei que meu
Redentor está vivo” (Jó 19,25)
Na última postagem da nossa série sobre a leitura litúrgica dos livros da Sagrada Escritura analisamos o Eclesiastes, um dos escritos sapienciais que traz a
autocrítica da sabedoria, demonstrando seus limites.
Esta crítica prossegue no Livro de Jó, ao qual dedicaremos esta
postagem, buscando identificar sua presença nas atuais celebrações litúrgicas do Rito Romano.
1. Breve introdução
ao Livro de Jó
“O que o sábio não sabe? Ele não sabe por que o justo
sofre”. Esta é a grande questão que permeia o Livro de Jó, obra-prima da literatura sapiencial.
"Jó" (Léon Bonnat - séc. XIX-XX) |
O nome do livro remete ao seu protagonista, um personagem simbólico, que representa o homem justo diante do mistério do sofrimento e do mal (mysterium iniquitatis). Jó expressa a universalidade do tema, presente em todos os tempos e lugares, sendo retratado como um estrangeiro: “da terra de Hus” (Jó 1,1)
Não obstante, como vimos em nossas postagens sobre o culto aos Santos do Antigo Testamento, Jó é comemorado pelo Martirológio Romano no dia 10 de maio.
O livro se situa na "época pós-exílica (entre os séculos VI e III a. C.). Após a experiência do exílio da Babilônia, com efeito, predominava em Israel a chamada “teologia da retribuição”: se eu fiz o
bem, Deus necessariamente vai me abençoar; se eu fiz o mal, Deus
necessariamente vai me castigar. É esta lógica "fechada" que Jó critica: se o mal é sempre castigo pelo pecado, por que o justo
também sofre?
O Livro de Jó
divide-se primeiramente em duas grandes partes: uma moldura em prosa (1–2;
42,7-17) e um corpo poético (3,1–42,6). Porém, uma divisão mais detalhada da
obra identifica oito partes, conforme os diversos diálogos e monólogos:
a) Prólogo em prosa: cap. 1–2;
b) 1º monólogo (lamentação) de Jó: cap. 3;
c) Debate entre Jó e os “três amigos” (Elifaz, Baldad e
Sofar): cap. 4–27;
d) Elogio da sabedoria: cap. 28;
e) 2º monólogo (lamentação) de Jó: cap. 29–31;
f) Discurso de Eliú: cap. 32–37;
g) Diálogo entre Deus e Jó: cap. 38,1–42,6;
h) Epílogo em prosa: 42,7-17.
A moldura em prosa da obra é sua parte mais conhecida e
também a mais antiga, talvez baseada em
lendas mais antigas. Esta parte está mais conforme com a “teologia da
retribuição”, sendo Jó “modelo de paciência” que no final é recompensada.
O corpo da obra, infelizmente menos conhecido - mas de maior
riqueza teológica e poética -, nos mostra outra face do protagonista: não o “Jó
da paciência”, mas sim o “Jó da resistência”. Enquanto sua esposa e seus
“amigos” insistem que confesse seu pecado (pois, para eles, presos à "teologia da retribuição", se Jó está sofrendo é porque pecou), Jó se revolta e critica a teologia estabelecida,
“abrindo um processo” contra Deus.
Os amigos não conseguem convencê-lo, apenas Eliú avança um
pouco, deixando entrever a dimensão “pedagógica” do sofrimento (no sentido de que podemos
aprender algo com ele), mas permanece no horizonte da “teologia da retribuição”.
No final, Deus mesmo intervém, sem dar uma “resposta pronta” ao problema,
demonstrando que a sabedoria humana é limitada e abrindo-nos para o mistério.
Para saber mais, confira a bibliografia indicada no final da
postagem [1].
"O lamento de Jó" (William Blake - séc. XIX) |
2. Leitura litúrgica do Livro de Jó: Composição harmônica
Como temos feito nesta série, analisaremos a leitura litúrgica de Jó a partir dos dois critérios propostos no n. 66 do Elenco das Leituras da Missa: composição harmônica e leitura semicontínua [2]. Começamos pela composição harmônica, isto é, a escolha do texto por sua sintonia com o tempo ou a festa litúrgica.
a) Celebração Eucarística
Segundo esse critério , nosso livro aparece primeiramente em dois domingos do Tempo Comum, nos quais as leituras do Antigo Testamento são escolhidas em “relação às perícopes evangélicas” [3]:
- no V Domingo do Tempo Comum do ano B lemos Jó 7,1-4.6-7 [4], no qual o protagonista lamenta seu sofrimento. O texto é um paralelo antitético ao Evangelho, no qual Jesus alivia o sofrimento da sogra de Pedro e de muitas pessoas, realizando várias curas (Mc 1,29-39).
- no XII Domingo do Tempo
Comum do ano B, por sua vez, lê-se Jó 38,1.8-11 [5], o início dos discursos
de Deus, “do meio da tempestade”, nos
quais proclama seu poder sobre o mar. Aqui o paralelo com o Evangelho é
sintético, uma vez que Jesus acalma a tempestade no mar (Mc 4,35-41).
Ainda no ciclo do Ano Litúrgico temos uma ocorrência de Jó na Comemoração dos Fiéis Defuntos (02 de novembro) que pode ser lida ad libitum (à escolha), uma vez para esta celebração propõem-se várias opções de textos bíblicos (que valem também para as Exéquias).
A perícope sugerida aqui é Jó 19,1.23-27 [6], na qual o protagonista professa sua fé, afirmando que, mesmo depois da sua morte, Deus permanece como seu defensor (go’el), termo traduzido como “redentor” e interpretado à luz do mistério da ressurreição.
Cumpre recordar que o Antigo Testamento não tem uma escatologia bem desenvolvida. A maioria dos seus escritos não faz referência à vida após a morte, tema que aparece apenas nos últimos livros (como Sabedoria e o Segundo Livro dos Macabeus).
Os três "amigos" acusam Jó (William Blake - séc. XIX) |
Por fim, temos um texto do Livro de Jó proposto à escolha para as Missas para diversas necessidades. Trata-se de Jó 31,16-20.24-25.31-32, quando Jó faz sua defesa, indicando que não cometeu pecado, particularmente que não foi insensível ao sofrimento dos pobres.
O texto serve para nós como um exame de consciência (aproximando-se de Mt 25,31-46), sendo indicado para as Missas pela pátria pelos governantes, por um encontro de chefes de Estado, pelo chefe de Estado e pelo progresso dos povos, que compartilham as mesmas opções de leituras [7], e para a Missa em tempo de fome ou pelos que passam fome [8].
b) Sacramentos e sacramentais
Devido à temática central do sofrimento, o Livro de Jó aparece em destaque no sacramento da Unção dos Enfermos, para o qual são propostas ad libitum três perícopes do livro:
- Jó 3,1-3.11-17.20-23: o início do lamento de Jó em seu sofrimento;
- Jó 7,1-4.6-11: Jó reflete sobre a fugacidade da vida;
- Jó 7,12-21: Jó suplica a Deus o fim do seu sofrimento [9];
Para a Encomendação dos Agonizantes, por sua vez, propõe-se o texto de Jó 19,23-27a [10], do qual falamos acima, sobre a esperança de ver a Deus.
Quanto aos sacramentais, encontramos apenas um texto do nosso livro, proposto à escolha para a Bênção de instrumentos de trabalho: Jó 28,1-28 [11], um poema que louva os trabalhos do homem, mas indica que a sabedoria é superior a todos eles.
c) Liturgia das Horas
Por fim, segundo o critério da composição harmônica, encontramos uma leitura de Jó na Liturgia das Horas, como 1ª opção de leitura breve para a Hora Média (9h) do Ofício dos Defuntos. O texto aqui é o núcleo da perícope indicada para a Comemoração dos Fiéis Defuntos: Jó 19,25-26 [12].
3. Leitura litúrgica do
Livro de Jó: Leitura semicontínua
O segundo critério de escolha dos textos bíblicos nas celebrações
é a leitura semicontínua, a proclamação dos principais textos de um livro na
sequência, oferecendo aos fiéis um contato mais amplo com a Palavra de Deus.
A intervenção de Eliú (William Blake - séc. XIX) |
a) Celebração Eucarística
Na Celebração Eucarística a leitura semicontínua do Livro de Jó está distribuída ao longo dos dias de semana (também chamados "dias feriais") da XXVI semana do Tempo Comum do ano par, logo após outros dois textos sapienciais: os Provérbios e o Eclesiastes.
As seis perícopes escolhidas aqui são:
XXVI semana do Tempo Comum (ano par):
Segunda-feira: Jó 1,6-22;
Terça-feira: Jó 3,1-3.11-17.20-23;
Quarta-feira: Jó 9,1-12.14-16;
Quinta-feira: Jó 19,21-27;
Sexta-feira: Jó 38,1.12-21; 40,3-5;
Sábado: Jó 42,1-3.5-6.12-16 [13].
b) Liturgia das Horas
Na Liturgia das Horas, por sua vez, a leitura do nosso livro estende-se por duas semanas, no Ofício das Leituras da VIII e IX semanas do Tempo Comum, mais uma vez após a leitura dos Provérbios e do Eclesiastes. As perícopes selecionadas aqui são:
Ofício das Leituras da VIII semana do Tempo Comum
Domingo: Jó 1,1-22: Jó é privado dos seus bens;
Segunda-feira: Jó 2,1-13: Coberto de chagas, Jó é visitado pelos amigos;
Terça-feira: Jó 3,1-26: Lamentos de Jó;
Quarta-feira: Jó 7,1-21: O tédio da vida leva Jó a recorrer a Deus;
Quinta-feira: Jó 11,1-20: Discurso de Sofar sobre a opinião corrente;
Sexta-feira: Jó 12,1-25: Jó explica o domínio que Deus exerce sobre a sabedoria humana;
Sábado: Jó 13,13–14,6: Jó apela para o julgamento de Deus [14].
Ofício das Leituras da IX semana do Tempo Comum
Domingo: Jó 28,1-28: Só em Deus está a sabedoria;
Segunda-feira: Jó 29,1-10; 30,1.9-23: Jó lamenta a sua aflição;
Terça-feira: Jó 31,1-8.13-23.35-37: Jó procede sempre segundo a justiça;
Quarta-feira: Jó 32,1-6; 33,1-22: Eliú fala do mistério de Deus;
Quinta-feira: Jó 38,1-30: Deus confunde Jó;
Sexta-feira: Jó 40,1-14; 42,1-6: Jó submete-se à majestade divina;
Sábado: Jó 42,7-16: Deus reabilita Jó diante dos seus adversários [15].
Cumpre notar que na maior parte destes dias a 2ª leitura do Ofício é tomada dos Livros “Moralia” sobre Jó de São Gregório Magno, Papa (séc. VI).
No ciclo bienal do Ofício das Leituras, que não foi traduzido para o Brasil, o Livro de Jó é lido por três semanas, entre a XV e a XVII semanas do Tempo Comum no ano ímpar, igualmente precedido pelos Provérbios.
Indicamos a seguir em negrito as sete leituras “inéditas” em relação ao ciclo anual [16]:
Ofício das Leituras da XV semana do Tempo Comum (Ciclo bienal: ano par)
Domingo a terça-feira: como no ciclo anual (domingo à terça-feira da VIII semana);
Quarta-feira: Jó 4,1-21: Discurso de Elifaz;
Quinta-feira: Jó 5,1-27: Não rejeites a lição do Senhor;
Sexta-feira: Jó 6,1-30: Resposta de Jó, afligido e abandonado por Deus;
Sábado: como no ciclo anual (quarta-feira da VIII semana).
Ofício das Leituras da XVI semana do Tempo Comum (Ciclo bienal: ano par)
Domingo a terça-feira: como no ciclo anual, da quinta-feira ao sábado da VIII semana;
Quarta: Jó 18,1-21: Discurso de Bildad. A luz do malvado se apaga;
Quinta: Jó 19,1-29: Jó, desesperado, renasce para a esperança;
Sexta: Jó 22,1-30: Elifaz exorta Jó a reconciliar-se com Deus;
Sábado: Jó 23,1–24,12: Jó afirma que os malvados não recebem castigo.
Ofício das Leituras da XVII semana do Tempo Comum (ano par)
Como na IX semana do ciclo anual.
Nesse ciclo bienal, além dos Livros “Moralia” sobre Jó de São Gregório Magno, vale destacar, dentre as leituras patrísticas, as Confissões de Santo Agostinho, Bispo (séc. V).
Por fim, além das leituras longas do Ofício das Leituras, encontramos duas leituras breves de Jó nas outras Horas, em duas das quatro semanas nas quais está dividida a recitação dos salmos (Saltério):
- na Hora Média (15h) da terça-feira da I semana do Saltério: Jó 5,17-18 [17], uma exortação a acolher as correções que vêm de Deus;
- nas Laudes da quarta-feira da III semana do Saltério: Jó 1,21; 2,10b [18], a afirmação de Jó no prólogo, acolhendo os sofrimentos com espírito de fé.
Vale lembrar que essas leituras são proferidas apenas no Tempo Comum, uma vez que os Tempos do Advento, Natal, Quaresma e Páscoa possuem leituras próprias.
"Agora viram-te meus olhos" (Jó 42,5) (William Blake - séc. XIX) |
Concluímos assim nosso breve percurso pela leitura litúrgica desta obra-prima da literatura sapiencial no Rito Romano. Resta-nos apenas exortar vivamente àqueles que nos acompanham que leiam este escrito na íntegra. Assim, poderemos concluir como Jó: “Conhecia-te só de ouvido, mas agora viram-te meus olhos” (Jó 42,5).
[As próximas postagens desta série, no mês de setembro, serão dedicadas à Carta de São Paulo aos Gálatas, tema do "Mês da Bíblia" da Igreja no Brasil neste ano de 2021]
Notas:
[1] Bibliografia usada para esta postagem:
ASENSIO, Víctor Morla. Livros sapienciais e outros escritos. 3ª ed. São Paulo: Ave Maria,
2008, pp. 125-156. in: Coleção: Introdução ao Estudo da Bíblia, v. 5.
KNAULF, Ernst Axel; GUILLAUME, Phillippe. Jó. in:
RÖMER, Thomas; MACCHI, Jean-Daniel; NIHAN, Christophe [org.]. Antigo Testamento: História, Escritura e
Teologia. 2ª ed. São Paulo: Loyola, 2015, pp. 601-613.
Recomendamos também a leitura da Carta Apostólica Salvifici doloris do Papa João Paulo II,
sobre o sentido cristão do sofrimento humano (11 de fevereiro de 1984). Seu
terceiro capítulo é dedicado ao Livro de
Jó.
[2] ALDAZÁBAL, José. A
Mesa da Palavra I: Elenco das Leituras da Missa - Texto e Comentário. São
Paulo: Paulinas, 2007, p. 76.
[3] ibid., p. 103.
[4] LECIONÁRIO I: Dominical A-B-C. Tradução portuguesa da 2ª
edição típica para o Brasil. São Paulo: Paulus, 1994, p. x.
[5] ibid., p. x.
[6] ibid., p. x.
[7] LECIONÁRIO III: Para as Missas dos Santos, dos Comuns, para
Diversas Necessidades e Votivas. Tradução portuguesa da 2ª edição típica para o
Brasil. São Paulo: Paulus, 1997, p. x.
[8] ibid., p. x.
[9] RITUAL DA UNÇÃO
DOS ENFERMOS E SUA ASSISTÊNCIA PASTORAL. Tradução
portuguesa da edição típica para o Brasil. São Paulo: Paulus, 2000,
pp. 93-95.
[10] ibid., p. 77.
[11] RITUAL DE BÊNÇÃOS. Tradução
portuguesa da edição típica para o Brasil. São Paulo: Paulus, 1990, p. 257.
[12] OFÍCIO DIVINO. Liturgia
das Horas segundo o Rito Romano. Tradução para o Brasil da segunda edição
típica. São Paulo: Paulus, 1999, v. I, p. 1401; v. II, p. 1955; v. III, p.
1779; v. IV, p. 1791. A 2ª opção de leitura é 2Mc 7,9b.
[13] LECIONÁRIO II: Semanal. Tradução portuguesa da 2ª edição
típica para o Brasil. São Paulo: Paulus, 1995, pp. x-x.
[14] OFÍCIO DIVINO, v. III, pp. 227.232.235.239.243.247.251.
[15] ibid., v.
III, pp. 255.261.264.268.272.276.279.
[16] Os títulos das leituras foram traduzidos livremente do
texto espanhol divulgado pelo site Dei Verbum.
[17] OFÍCIO DIVINO, v. III, p. 673; v. IV, p. 627.
[18] ibid., v.
III, p. 961; v. IV, p. 915.
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