“Há um momento
oportuno para tudo que acontece debaixo do céu” (Ecl 3,1)
Em nossa série de postagens sobre a leitura litúrgica dos livros da Sagrada Escritura, já analisamos a presença nas celebrações do Rito Romano de dois livros bíblicos pertencentes ao bloco dos escritos sapienciais: o Livro da Sabedoria e o Livro dos Provérbios.
Nesta postagem gostaríamos de dar continuidade à
proposta com outro texto sapiencial: o Livro do Eclesiastes (Ecl), também conhecido como Qohelet ou Coélet.
1. Breve introdução
ao Livro do Eclesiastes
A palavra grega ekklesiastes
(de ekklesia, assembleia) traduz o
hebraico qohelet (de qahal), significando “aquele que fala na
assembleia” ou “aquele que convoca uma assembleia”. Este é o título que o autor
do livro usa: “Palavras de Qohelet, filho de Davi, rei em Jerusalém” (Ecl 1,1). Não confundir com o Livro do Eclesiástico ou Sirácida.
A identificação do autor como filho de Davi, isto é, Salomão
(Ecl 1,13–2,11) é simbólica (pseudonímia), uma vez que esse rei é o modelo de
homem sábio. O mesmo acontece nos outros livros sapienciais: Provérbios,
Cântico dos Cânticos e Sabedoria.
"Salomão" (Gustave Doré - séc. XIX) |
A obra foi escrita no período helenístico (séc. IV-I a. C.), mais provavelmente no século III a. C., época em que a sabedoria grega sofreu tanto
aceitação quanto resistência em Israel. O Livro
do Eclesiastes adota uma posição
intermediária, com certa dose de pessimismo ("crise da sapiência"), reagindo ante um “otimismo
ingênuo” da sabedoria que julga tudo conhecer, mostrando seus limites.
Destaque também para a ênfase dada ao indivíduo (porém sem cair no
individualismo) e não tanto na comunidade, como na maioria dos escritos do
Antigo Testamento (AT), aspecto acolhido da filosofia grega.
Devido ao seu estilo peculiar, é difícil estabelecer uma
estrutura para a obra, embora a maioria dos estudiosos costume dividi-la em duas grandes
partes:
a) capítulos 1–6: um “exame da vida humana” ou “investigação”;
b) capítulos 7–12: as “consequências” ou “conclusões”.
Os gêneros literários também são diversos. Porém, diferentemente
de outros escritos sapienciais, onde a poesia é predominante, aqui o autor
recorre mais à prosa. Destacam-se também os temas que se repetem várias vezes
ao longo do texto, como a “vaidade”, a inexistência da novidade “debaixo do
sol” e a inevitabilidade da morte.
É razoável supor, por fim, que, por sua preocupação central
pelo humano, provavelmente foram acrescentados à obra alguns versículos sobre o
temor de Deus, para dar-lhe um tom mais “teológico” (como o epílogo em Ecl
12,13-14).
Para saber mais, confira a bibliografia indicada no final da
postagem [1].
2. Leitura litúrgica
do Eclesiastes: Composição harmônica
Devido a seu caráter “pessimista”, representando a “crise da
sapiência”, o Livro do Eclesiastes é
lido poucas vezes nas celebrações litúrgicas do Rito Romano. Seguindo o
critério da composição harmônica, isto é, da escolha do texto por sua sintonia
com o tempo ou a festa litúrgica [2], nosso livro aparece apenas uma vez.
A única ocorrência de Ecl
em composição harmônica, com efeito, encontra-se no XVIII
Domingo do Tempo Comum do ano C, quando se lê Ecl 1,2; 2,21-23 [3].
Nos
domingos do Tempo Comum as leituras do AT foram selecionadas em “relação às
perícopes evangélicas” [4]. Assim, a reflexão do Qohelet sobre a fugacidade das preocupações humanas ilumina aqui a
parábola do rico insensato de Lc 12,13-21.
3. Leitura litúrgica
do Eclesiastes: Leitura semicontínua
Pelo critério da leitura semicontínua (proclamação dos
principais textos de um livro na sequência), o Rito Romano lê dez perícopes do
nosso livro: três na Celebração Eucarística e sete na Liturgia das Horas.
a) Celebração
Eucarística
Na Celebração Eucarística a leitura semicontínua do Eclesiastes está concentrada em três
dias da XXV semana do Tempo Comum do ano
par, logo após a leitura dos Provérbios e
antes do Livro de Jó.
As perícopes
escolhidas aqui são:
Quinta-feira: Ecl
1,2-11;
Sexta-feira: Ecl
3,1-11;
Sábado: Ecl
11,9–12,8 [5].
b) Liturgia das Horas
Na Liturgia das Horas, por sua vez, o
nosso livro encontra-se no Ofício das
Leituras da VII semana do Tempo Comum, mais uma vez entre a leitura dos Provérbios e de Jó. As perícopes selecionadas aqui são:
VII semana do Tempo
Comum:
Domingo: Ecl
1,1-18 - “Insanidade de todas as coisas”;
Segunda-feira: Ecl
2,1-3.12-26 - “Insanidade dos prazeres e
da sabedoria humana”;
Terça-feira: Ecl
3,1-22 - “Diversidade do tempo”;
Quarta-feira: Ecl
5,9–6,8 - “Insanidade das riquezas”;
Quinta-feira: Ecl
6,11–7,28 - “Não queiras saber mais do
que o necessário”;
Sexta-feira: Ecl
8,5–9,10 - “A consolação do sábio”;
Sábado: Ecl
11,7–12,14 - “Sentenças acerca da velhice”
[6].
Cumpre notar que na maior parte destes dias a 2ª leitura do
Ofício é tomada dos comentários ao Eclesiastes
feitos por alguns santos, como Gregório de Nissa (séc. IV), Jerônimo (séc. V) e
Gregório de Agrigento (séc. VI).
No ciclo bienal do Ofício das Leituras, que não foi
traduzido para o Brasil, as mesmas sete perícopes do Qohelet
são lidas na XX
semana do Tempo Comum no ano par, após os profetas Jonas e Zacarias 9–14 e antes das Cartas a Tito e Timóteo.
Qohelet |
Encerramos assim este brevíssimo percurso pelas leituras do Livro do Eclesiastes ou Qohelet nas celebrações litúrgicas do Rito Romano. Na próxima postagem desta série prosseguiremos com a literatura sapiencial analisando a leitura litúrgica do Livro de Jó.
[A postagem sobre o Livro de Jó será publicada na próxima terça-feira, 24 de agosto]
Notas:
[1] ASENSIO, Víctor Morla. Livros sapienciais e outros escritos. 3ª ed. São Paulo: Ave Maria,
2008, pp. 157-187. in: Coleção: Introdução ao Estudo da Bíblia, v. 5.
BUEHLMANN, Alain. Coélet.
in: RÖMER, Thomas; MACCHI,
Jean-Daniel; NIHAN, Christophe [org.]. Antigo
Testamento: História, Escritura e Teologia. 2ª ed. São Paulo: Loyola, 2015,
pp. 653-663.
[2] cf. Elenco das Leituras da Missa, n. 66; ALDAZÁBAL,
José. A Mesa da Palavra I: Elenco das
Leituras da Missa - Texto e Comentário. São Paulo: Paulinas, 2007, p. 76.
[3] LECIONÁRIO I: Dominical A-B-C. Tradução portuguesa da 2ª
edição típica para o Brasil. São Paulo: Paulus, 1994, p. x.
[4] ALDAZÁBAL, op. cit.,
p. 103.
[5] LECIONÁRIO II: Semanal. Tradução portuguesa da 2ª edição
típica para o Brasil. São Paulo: Paulus, 1995, p. x.
[6] OFÍCIO DIVINO. Liturgia
das Horas segundo o Rito Romano. Tradução
para o Brasil da segunda edição típica. São Paulo: Paulus, 1999, v. III,
pp. 198.203.207.210.214.219.223.
Nenhum comentário:
Postar um comentário