Em
sua série de Catequeses sobre os salmos e cânticos da Liturgia das Horas, o Papa João Paulo II
refletiu sobre os textos das Laudes da sexta-feira da IV semana do Saltério nos
dias 30 de julho (Sl 50), 13 de agosto (Tb 13,8-11.13-14ab.15-16ab) e 20 de agosto
de 2003 (Sl 147).
81. Tende piedade, ó meu Deus: Sl 50(51),3-21
30 de julho de 2003
1. É a quarta vez que ouvimos, durante estas nossas reflexões sobre a Liturgia das Laudes, a proclamação do Salmo 50, o célebre Miserere (cf. Catequeses nn. 18, 39 e 60). De fato, ele é reproposto na sexta-feira de cada semana, para que se torne um oásis de meditação onde descobrir o mal que se esconde na consciência e invocar do Senhor a purificação e o perdão. Com efeito, como confessa o salmista noutra súplica, “nenhum vivente é justo na vossa presença”, ó Senhor (Sl 142,2). No Livro de Jó lê-se: “Como, pois, pode justificar-se o homem diante de Deus? Como será puro o homem nascido da mulher? Até a própria luz não brilha e as estrelas não são puras aos seus olhos! Quanto menos o homem, simples verme, e o filho do homem, mero vermezinho!” (Jó 25,4-6).
Estas são frases fortes e dramáticas, que querem mostrar em toda a seriedade e gravidade o limite e a fragilidade da criatura humana, a sua capacidade perversa de semear o mal e a violência, a impureza e a mentira. Contudo, a mensagem de esperança do Miserere, que o Saltério coloca nos lábios de Davi, pecador convertido, é esta: Deus pode “purificar, lavar, apagar” a culpa confessada com o coração contrito (vv. 2-3). Diz o Senhor através da voz de Isaías: “Mesmo que os vossos pecados fossem como escarlate, tornar-se-iam brancos como a neve” (Is 1,18).
2. Desta vez nos deteremos brevemente
no fim do Salmo 50, um fim cheio de esperança porque o orante é consciente de
ter sido perdoado por Deus (vv. 17-21). Agora, os seus lábios preparam-se para
proclamar ao mundo o louvor ao Senhor, confirmando desta forma a alegria que
experimenta a alma purificada do mal e, por isso, libertada do remorso (v. 17).
O orante testemunha de modo claro outra convicção, relacionando-se com o ensinamento reiterado pelos profetas (cf. Is 1,10-17; Am 5,21-25; Os 6,6): o sacrifício mais agradável que se eleva ao Senhor como perfume e fragrância agradável (cf. Gn 8,21) não é o holocausto de touros ou de cordeiros mas, antes, a “alma penitente” e o “coração arrependido” (v. 19).
A Imitação de Cristo, texto tão querido à tradição espiritual cristã, repete a mesma admoestação do salmista: “A humilde contrição dos pecados é um sacrifício que te é agradável, um perfume muito mais suave do que o fumo do incenso... Ali purifica-se e lava-se qualquer iniquidade” (III, 52, 4).
Cristo com um grupo de santos penitentes (Gerard Seghers) À esquerda de Cristo está o rei Davi, a quem se atribui o Sl 50 |
3. O Salmo conclui-se de
maneira inesperada, com uma perspectiva completamente diferente, que até parece
contraditória (vv. 20-21). Da última súplica de um só pecador passa-se a uma
oração pela reconstrução de toda a cidade de Jerusalém, o que nos leva da época
de Davi à da destruição da cidade, alguns séculos mais tarde. Por outro lado,
depois de ter expresso no v. 18 a recusa divina das imolações de animais, o Salmo
anuncia no v. 21 que estas mesmas imolações serão agradáveis a Deus.
É evidente que esta passagem final é um acréscimo posterior, feito no tempo do exílio, que quer, num certo sentido, corrigir ou pelo menos completar a perspectiva do Salmo de Davi. E isto, sob dois aspectos: por um lado, não se quis que todo o Salmo se limitasse a uma oração individual; era necessário pensar também na situação piedosa de toda a cidade. Por outro lado, quis-se reduzir a recusa divina dos sacrifícios rituais; esta recusa não podia ser completa nem definitiva, porque se tratava de um culto prescrito pelo próprio Deus na Torá. Quem completou o Salmo teve uma intuição válida: compreendeu a necessidade em que se encontravam os pecadores, a necessidade de uma mediação sacrifical. Os pecadores não são capazes de se purificar sozinhos; não bastam bons sentimentos. É preciso uma mediação externa eficaz. O Novo Testamento revelará o sentido pleno desta intuição, mostrando que, com a oferta da sua vida, Cristo realizou uma mediação sacrifical perfeita.
4. Nas suas Homilias sobre Ezequiel, São Gregório Magno compreendeu bem a diferença de perspectiva que existe entre os vv. 19 e 21 do Miserere. Ele propõe uma interpretação da mesma, que podemos acolher também, concluindo assim a nossa reflexão. São Gregório aplica o v. 19, que fala de espírito contrito, à existência terrena da Igreja e o v. 21, que fala de holocausto, à Igreja no céu.
Eis as palavras daquele grande Pontífice: “A santa Igreja tem duas vidas: uma que conduz no tempo, outra que recebe eternamente; uma com a qual fadiga na terra, outra que é recompensada no céu; uma com a qual reúne os méritos, outra que já goza dos méritos recolhidos. E tanto numa como noutra vida oferece o sacrifício: aqui o sacrifício da contrição e lá no céu o sacrifício do louvor. Está escrito acerca do primeiro sacrifício: ‘O meu sacrifício, Senhor, será o meu espírito contrito’ (Sl 50,19); acerca do segundo está escrito: ‘Então agradecereis as ofertas puras, sacrifícios e holocaustos’ (Sl 50,21). Os dois oferecem a carne, porque aqui a oblação da carne é a mortificação do corpo, no céu a oblação da carne é a glória da ressurreição no louvor a Deus. No céu se oferecerá a carne como que em holocausto quando, transformada na incorruptibilidade eterna, não haverá mais conflito algum e nada será mortal, porque perdurará totalmente acesa de amor por ele, no louvor sem fim” (Homilias sobre Ezequiel/2, Roma, 1993, p. 271).
82. Ação de graças pela libertação do povo: Tb 13,8-11.13-14ab.15-16ab
13 de agosto de 2003
1. A Liturgia das Laudes inclui entre os seus cânticos o fragmento de um hino, colocado como selo da história narrada pelo livro bíblico de Tobias: o escutamos há pouco. O hino, bastante amplo e solene, é uma expressão típica da oração e da espiritualidade judaica, que se inspira em outros textos já presentes na Bíblia.
O cântico desenvolve-se através de uma dupla invocação. Sobressai em primeiro lugar um convite reiterado a louvar Deus (vv. 3-4.7) pela purificação que Ele está realizando com o exílio. Os “filhos de Israel” são exortados a aceitar esta purificação com uma conversão sincera (v. 6.8). Se a conversão florescer nos corações, o Senhor fará surgir no horizonte o alvorecer da libertação. É precisamente neste clima espiritual que se situa o início do cântico que a Liturgia tirou do hino mais amplo do capítulo 13 de Tobias.
2. A segunda parte do texto, entoada pelo idoso Tobit, protagonista de todo o livro com o filho Tobias, é uma verdadeira e própria celebração de Sião. Ela reflete a nostalgia apaixonada e o amor ardente que o hebreu da Diáspora sente em relação à cidade santa (vv. 9-17). Este aspecto brilha no âmbito do trecho que foi escolhido como oração matutina da Liturgia das Laudes. Detenhamo-nos nestes temas, ou seja, na purificação do pecado através da prova e da expectativa do encontro com o Senhor, à luz de Sião e do seu templo santo.
3. Tobit dirige um apelo
caloroso aos pecadores para que se convertam e pratiquem a justiça: este é o
caminho que se deve empreender para reencontrar o amor divino que dá serenidade
e esperança (v. 6).
A própria história de
Jerusalém é uma parábola que ensina a todos que opção fazer. Deus castigou a
cidade porque não podia permanecer indiferente perante o mal perpetrado pelos
seus filhos. Mas agora, vendo que muitos se converteram e se transformaram em
filhos justos e fiéis, ele manifestará de novo o seu amor misericordioso (v.
10).
Ao longo de todo o cântico do capítulo 13 de Tobias repete-se com frequência esta convicção: o Senhor “castiga e compadece-se... castiga por causa das nossas iniquidades mas, a seguir, compadece-se de nós... Ele castigou-te por causa das tuas obras... os filhos dos justos serão congregados e louvarão o Senhor” (vv. 2.5.10). Deus recorre ao castigo e outras admoestações como meio para congregar no caminho reto os pecadores surdos a outros apelos. A última palavra do Deus justo é, contudo, a do amor e do perdão; o seu desejo profundo é poder abraçar de novo os filhos rebeldes que voltam para Ele com o coração arrependido.
4. Em relação ao povo
eleito, a misericórdia divina se manifestará com a reconstrução do templo de
Jerusalém, realizada pelo próprio Deus: “Dá louvor ao teu Senhor... para que Ele,
novamente, arme em ti a sua tenda” (v. 10). Desta forma, começa o segundo tema,
o de Sião, como lugar espiritual para o qual deve convergir não só a volta dos
hebreus, mas também a peregrinação dos povos que procuram Deus. Desta forma,
abre-se um horizonte universalista: reconstruído, o templo de Jerusalém, sinal
da palavra e da presença divina, resplandecerá com uma luz planetária que dissipará
as trevas, para que possam pôr-se a caminho “nações de longe, dos lugares mais
distantes” (v. 11), trazendo oferendas e cantando a sua alegria por participar
na salvação que o Senhor concede a Israel.
Por conseguinte, os israelitas
e todos os povos estão a caminho juntos, rumo a uma única meta de fé e de
verdade. O cantor deste hino faz descer sobre eles uma bem-aventurança repetida,
dizendo a Jerusalém: “Haverão de ser ditosos todos quantos te amarem, encontrando
em tua paz sua grande alegria” (v. 14). A felicidade é autêntica quando se
encontra a luz que resplandece no céu sobre todos os que procuram o Senhor com
o coração purificado e com o anseio da verdade.
5. É a esta Jerusalém, livre e gloriosa, sinal da Igreja na meta derradeira da sua esperança, prefigurada pela Páscoa de Cristo, que Santo Agostinho se dirige com fervor no livro das Confissões.
Referindo-se à oração que ele deseja realizar no seu “quarto secreto”, descreve-nos aquelas “canções de amor entre os gemidos, os inarráveis gemidos que durante a minha peregrinação suscita a recordação no coração orientado para o alto em direção a ela, Jerusalém, a minha pátria, Jerusalém, a minha mãe, e para Ti, o seu soberano, o seu iluminador, o seu pai, tutor e esposo, as suas castas e grandes delícias, a sua sólida alegria e todos os seus bens inefáveis”. E conclui com uma promessa: “Não me afastarei de ti, enquanto na paz daquela mãe caríssima, onde se encontram as primícias do meu espírito, de onde me vêm estas certezas, Tu não tiveres reunido tudo o que eu sou a partir desta dispersão desvirtuada, para conformá-lo definitivamente na eternidade, ó meu Deus, minha misericórdia” (Confissões, 12, 16, 23, Roma 1965, pp. 424-425).
83. Restauração de Jerusalém: Sl 147(147B),12-20
20 de agosto de 2003
1. O Salmo que agora foi proposto à nossa meditação constitui a segunda parte do precedente Salmo 146 (cf. Catequese n. 80). As antigas traduções grega e latina, seguidas pela Liturgia, consideraram-no, ao contrário, como um cântico separado, porque o seu começo se distingue totalmente da parte anterior. Este começo tornou-se célebre também porque com frequência é usado na música latina: Lauda, Jerusalem, Dominum. Estas palavras iniciais constituem o típico convite dos hinos sálmicos para celebrar e louvar o Senhor: agora Jerusalém, personificação do povo, é interpelada para que exalte e glorifique o seu Deus (v. 12).
Imediatamente se menciona o
motivo pelo qual a comunidade orante deve elevar ao Senhor o seu louvor. Este é
de índole histórica: foi Ele, o Libertador de Israel do exílio na Babilônia, que
deu segurança ao seu povo, “reforçou com segurança as portas” da cidade (v.
13).
Quando Jerusalém tinha sucumbido sob o assalto do exército do rei Nabucodonosor, em 586 a. C., o Livro das Lamentações apresentou o próprio Senhor como juiz do pecado de Israel, enquanto demolia “os muros da filha de Sião... jazem sob os escombros as suas portas; quebrou-as, partindo as trancas” (Lm 2,8.9). Agora, ao contrário, o Senhor volta a ser o construtor da cidade santa; no templo reconstruído Ele abençoa de novo os seus filhos. Desta forma, é mencionada a obra realizada por Neemias (cf. Ne 3,1-38), que tinha restabelecido os muros de Jerusalém, para que voltasse a ser um oásis de serenidade e de paz.
2. A paz, shalom, de fato é imediatamente evocada, também porque está contida de modo simbólico no próprio nome “Jerusalém”. Já o profeta Isaías prometia à cidade: “Porei por teu governador a paz, por teu magistrado a justiça” (Is 60,17).
Mas, além de fazer
reconstruir os muros da cidade, de abençoá-la e de pacificá-la na segurança,
Deus oferece a Israel outros dons fundamentais: é o que se descreve no fim do Salmo.
De fato, ali são recordados os dons da Revelação, da Lei e das
prescrições divinas: “Anuncia a Jacó sua palavra, seus preceitos e suas leis a
Israel.” (v. 19).
Celebra-se, assim, a eleição de Israel e a sua missão única entre os povos: proclamar ao mundo a Palavra de Deus. É uma missão profética e sacerdotal, porque “qual é o grande povo, que possui mandamentos e preceitos tão justos como esta Lei que hoje vos apresento?” (Dt 4,8). Através de Israel e, por conseguinte, também através da comunidade crista, ou seja, da Igreja, a Palavra de Deus pode ressoar no mundo e tornar-se norma e luz de vida para todos os povos (v. 20).
3. Até agora descrevemos a
primeira razão do louvor que devemos elevar ao Senhor: é uma motivação
histórica, isto é, relacionada à ação libertadora e reveladora a respeito do
seu povo.
Mas existe outra fonte de
exultação e de louvor: ela é de índole cósmica, ou seja, relacionada à ação
criadora de Deus. A Palavra divina irrompe para dar vida ao ser. Semelhante a
um mensageiro, ela corre pelos espaços imensos da terra (v. 15). E
imediatamente se dá um florescimento de maravilhas.
Eis que chega o inverno, que
é descrito nos seus fenômenos atmosféricos com uma tonalidade poética: a neve, devido
à sua pureza, é semelhante à lã, a geada com os seus pingos sutis é como a
poeira do deserto (v. 16), o granizo assemelha-se às migalhas de pão que caem
no chão, o gelo coalha a terra e impede a vegetação (v. 17). É um quadro
invernal que convida a descobrir as maravilhas da criação e que será retomado
numa página muito pitoresca também por um livro bíblico, o Sirácida (Eclo 43,18-20).
4. Mas eis que, sempre pela
ação da Palavra divina, volta a primavera: o gelo derrete-se, o vento quente
sopra e faz fluir a água (v. 18), repetindo assim o ciclo perene e, por
conseguinte, a própria possibilidade de vida para homens e mulheres.
Naturalmente não faltaram
leituras metafóricas destes dons divinos. A “flor do trigo” (v. 14) fez pensar
no grande dom do pão eucarístico. Aliás, o importante escritor cristão do III
século, Orígenes, identificou aquele trigo como sinal do próprio Cristo e, em
particular, da Sagrada Escritura.
Eis o seu comentário: “Nosso Senhor é o grão trigo que cai na terra, e que se multiplica para nós. Mas este grão de trigo é superlativamente abundante... A Palavra de Deus é superlativamente abundante, contém em si todas as delícias. Tudo o que desejas, provém da Palavra de Deus, da mesma forma que os judeus narram: quando comiam o maná, ele, na sua boca, adquiria o gosto daquilo que cada um desejava... Assim, também na carne de Cristo, que é a palavra do ensinamento, ou seja, a compreensão das Sagradas Escrituras, quanto maior for o desejo que dela tivermos, tanto maior será o alimento que dela receberemos. Se és santo, encontras refrigério; se és pecador, encontras o tormento” (Orígenes-Jerônimo, 74 homilias sobre o Livro dos Salmos, Milão, 1993, pp. 543-544).
5. Por conseguinte, o Senhor age com a sua Palavra não só na criação, mas também na história. Ele revela-se com uma linguagem muda (cf. Sl 18,2-7), mas exprime-se de modo explícito através da Bíblia e da sua comunicação pessoal nos profetas e em plenitude no Filho (cf. Hb 1,1-2). São dois dons diferentes, mas convergentes, do seu amor.
Por isso, o nosso louvor
deve elevar-se ao céu todos os dias. É a nossa ação de graças, que floresce no
alvorecer na oração das Laudes para bendizer o Senhor da vida e da liberdade,
da existência e da fé, da criação e da redenção.
"Anuncia a Jacó sua Palavra, seus preceitos e suas leis a Israel" (Sl 147,19) (Jesus faz a leitura na sinagoga de Nazaré - Lc 4,16-21) |
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