quinta-feira, 26 de agosto de 2021

Catequeses sobre os Salmos (31): Introdução às Vésperas

Dando início à segunda parte das Catequeses do Papa João Paulo II sobre os salmos e cânticos da Liturgia das Horas, dedicada às Vésperas (oração da tarde), propomos hoje as duas Catequeses introdutórias, proferidas nos dias 08 e 15 de outubro de 2003.

88. Introdução à Liturgia das Vésperas
08 de outubro de 2003

1. Dado que “peregrinos neste mundo (...) recebemos, todos os dias, as provas do amor do Pai” (Prefácio dos Domingos do Tempo Comum VI), a Igreja sentiu sempre a exigência de dedicar ao louvor divino os dias e as horas da existência humana. Assim, a aurora e o pôr-do-sol, típicos momentos religiosos de todos os povos, que já se tornaram sagrados na tradição bíblica da oferta matutina e vespertina do holocausto (cf. Ex 29,38-39) e do incenso (cf. Ex 30,6-8), representam para os cristãos, desde os primeiros séculos, dois momentos particulares de oração.
O surgir e o pôr-do-sol não são momentos insignificantes do dia. Assumem uma fisionomia inconfundível: a beleza radiante de um alvorecer e o esplendor triunfal de um pôr-do-sol marcam os ritmos do universo, nos quais está profundamente envolvida a vida do homem. Além disso, o mistério da salvação, que se realiza na história, tem os seus momentos relacionados com diversas fases do tempo. Por isso, juntamente com a celebração das Laudes no começo do dia, foi-se consolidando na Igreja a celebração das Vésperas ao cair da tarde. As duas horas litúrgicas possuem uma carga evocativa que recorda os dois aspectos fundamentais do Mistério Pascal: “À noite o Senhor está na Cruz, de manhã ressuscita... À noite eu narro os sofrimentos por Ele suportados na morte; de manhã anuncio a sua vida que ressuscita” (Santo Agostinho, Exposições sobre os Salmos, XXVI, Roma, 1971, p. 109).
Precisamente porque estão relacionadas com a memória da Morte e da Ressurreição de Cristo, as duas Horas, das Laudes e das Vésperas, devem considerar-se “como os dois polos do Ofício quotidiano” (Constituição Sacrosanctum Concilium, n. 89).


2. Na antiguidade, depois do pôr-do-sol, com o acender da lâmpada levava-se às casas uma característica de alegria e de comunhão. Também a comunidade cristã, acendendo a lâmpada ao anoitecer, invocava com o coração agradecido o dom da luz espiritual. Era o chamado “lucernário”, isto é, o acender ritual da lâmpada, cuja chama é símbolo de Cristo, “Sol que não conhece ocaso”.
De fato, ao cair das trevas os cristãos sabem que Deus ilumina também a noite obscura com o esplendor da sua presença e com a luz dos seus ensinamentos. Devemos recordar, a este propósito, o antiquíssimo hino lucernal Phôs hilarón, acolhido nas Liturgias bizantina, armênia e etíope: “Luz jubilosa da santa glória do Pai imortal, celeste, santo, bem-aventurado, ó Jesus Cristo! Tendo chegado o pôr-do-sol e, vendo a luz vespertina, cantamos hinos ao Pai, ao Filho e ao Espírito Santo, Deus. É digno cantar-te em todos os tempos com vozes harmoniosas, ó Filho de Deus, tu que nos deste a vida: por isso o universo proclama a tua glória”. Também o Ocidente criou muitos hinos para celebrar Cristo-luz.
Inspirando-se no simbolismo da luz, a oração das Vésperas desenvolveu-se como um sacrifício vespertino de louvor e de reconhecimento pelo dom da luz física e espiritual e pelos demais dons da criação e da redenção. São Cipriano escreve: “Tendo-se posto o sol e tendo desaparecido o dia, devemos necessariamente rezar de novo. De fato, dado que Cristo é o sol verdadeiro, ao ocaso do sol e do dia deste mundo nós rezamos e pedimos que venha de novo sobre nós a luz e invocamos a vinda de Cristo que nos trará a graça da luz eterna” (De oratione dominica, 35:  PL 4, 560).

3. O fim da tarde é um tempo propício para considerar diante de Deus, em oração, o dia transcorrido. É o momento “para dar graças por quanto nos foi concedido ou que cumprimos com retidão” (São Basílio, Regulae fusius tractatae, Resp. 37, 3:  PG 3, 1015). É também o tempo propício para pedir perdão por tudo o que cometemos de mal, implorando da misericórdia divina que Cristo volte a resplandecer nos nossos corações.
Contudo, o chegar da noite recorda também o mysterium noctis”. As trevas são sentidas como a ocasião de frequentes tentações, de particular debilidade, de cessão às incursões do maligno. Com as suas insídias, a noite apresenta-se como o símbolo de todas as perversidades de que Cristo nos veio libertar. Por outro lado, em cada anoitecer a oração torna-nos partícipes do Mistério Pascal, no qual “a noite resplandece como o dia” (Exsultet). Assim a oração faz ressurgir a esperança na passagem do dia transitório para o dies perenis, da luz tênue da lâmpada para a lux perpetua, da expectativa vigilante do alvorecer para o encontro com o Rei da glória eterna. 

4. Para o homem antigo, ainda mais do que para nós, a sucessão da noite e do dia regulava a existência, originando a reflexão sobre os grandes problemas da vida. O progresso moderno alterou em grande parte a relação entre a vida humana e o tempo cósmico. Mas o ritmo denso das atividades humanas não libertou totalmente os homens de hoje dos ritmos do ciclo solar.
Por isso, os dois fulcros da oração quotidiana conservam todo o seu valor, estando ligados a fenômenos imutáveis e a simbolismos imediatos. A manhã e a tarde constituem momentos sempre oportunos para se dedicar à oração, tanto comunitária como individual. Relacionadas com momentos importantes da nossa vida e dos nossos compromissos, as horas das Laudes e das Vésperas revelam-se, assim, um meio eficaz para orientar o nosso caminho quotidiano e para dirigi-lo a Cristo, “Luz do mundo” (Jo 8,12).

89. Estrutura da Liturgia das Vésperas
15 de outubro de 2003

1. Sabemos por numerosos testemunhos que, a partir do século IV, as Laudes e as Vésperas já eram uma instituição estável em todas as grandes Igrejas orientais e ocidentais. Como, por exemplo, Santo Ambrósio testemunha: “Dado que todos os dias, indo à igreja ou dedicando-nos à oração em casa, começamos de Deus e n’Ele terminamos, também o dia todo da nossa vida aqui na terra e o decurso de cada dia individualmente, tem sempre o seu começo n’Ele e n’Ele termina” (De Abraham, II, 5, 22).
Assim como as Laudes se situam ao amanhecer, assim também as Vésperas têm o seu lugar ao pôr-do-sol, no momento em que, no templo de Jerusalém, era oferecido o holocausto com o incenso. Naquele momento Jesus, depois da sua morte na Cruz, repousava no sepulcro, tendo-se oferecido a Si mesmo ao Pai pela salvação do mundo.
As várias Igrejas, seguindo as respectivas tradições, organizaram de acordo com uma ritualidade própria o Ofício Divino. Tomemos aqui em consideração o Rito Romano.

2. Abre a oração a invocação Deus in adiutorium (Vinde, ó Deus, em meu auxílio), segundo versículo do Salmo 69, que São Bento prescreve para cada Hora. O versículo recorda que unicamente de Deus podemos receber a graça de louvá-lo dignamente. Segue-se o “Glória ao Pai”, porque a glorificação da Trindade exprime a orientação essencial da oração cristã. Por fim, excluindo a Quaresma, acrescenta-se o Aleluia, expressão hebraica que significa “louvai ao Senhor”, e que se tornou, para os cristãos, uma jubilosa manifestação de confiança na proteção que Deus reserva para o seu povo.
O cântico do hino faz ressoar os motivos do louvor da Igreja em oração, evocando com inspiração poética os mistérios realizados para a salvação do homem na hora vespertina, sobretudo no sacrifício realizado por Cristo na Cruz.

3. A salmodia das Vésperas consta de dois Salmos adequados para esta hora e de um cântico tirado do Novo Testamento. A tipologia dos salmos destinados às Vésperas apresenta vários aspectos. Existem salmos das luzes, em que é explícita a menção da noite, da lâmpada ou da luz; salmos que manifestam a confiança em Deus, refúgio estável na precariedade da vida humana; salmos de agradecimento e de louvor; salmos dos quais transparece o sentido escatológico recordado pelo fim do dia, e outros de caráter sapiencial ou de entoação penitencial. Além disso, encontramos os salmos do Hallel, com referência à Última Ceia de Jesus com os discípulos. Na Igreja latina foram transmitidos elementos que favorecem a compreensão dos salmos e a sua interpretação cristã, como os títulos, as orações sálmicas e, sobretudo, as antífonas (cf. Introdução Geral da Liturgia das Horas, nn. 110-120).
Tem um lugar de relevo a leitura breve, que é tirada, nas Vésperas, do Novo Testamento. Ela tem a finalidade de propor com vigor e insistência algumas sentenças bíblicas e imprimi-las nos corações para que sejam transferidas para a vida (cf. ibid., nn. 45.156.172). A fim de facilitar a interiorização de quanto foi ouvido, a leitura é seguida de um silêncio conveniente e de um responsório, que tem a função de “responder”, com o cântico de alguns versículos, à mensagem da leitura, favorecendo o seu acolhimento “de coração” da parte dos participantes na oração.

4. Com grande honra, introduzido pelo sinal da cruz, é entoado o cântico evangélico da Bem-aventurada Virgem Maria (cf. Lc 1,46-55). Tendo sido já confirmado pela Regra de São Bento (cap. 12 e 17), o costume de cantar nas Laudes o Benedictus e nas Vésperas o Magnificat “é confirmado pela tradição secular e popular da Igreja Romana” (Introdução Geral da Liturgia das Horas, n. 50). De fato, estes cânticos são exemplares para exprimir o sentido do louvor e do agradecimento a Deus pelo dom da redenção.
Na celebração comunitária do Ofício Divino, o gesto de incensar o altar, o sacerdote e o povo enquanto se executam os cânticos evangélicos, pode sugerir, à luz da tradição hebraica de oferecer o incenso de manhã e à noite no altar dos perfumes, o caráter oblativo do “sacrifício de louvor” expresso na Liturgia das Horas. Unindo-nos a Cristo na oração, podemos viver pessoalmente quanto está escrito na Carta aos Hebreus: “Por meio d’Ele ofereçamos sem cessar a Deus um sacrifício de louvor, isto é, o fruto dos lábios que confessam o Seu nome” (Hb 13,15; cf. Sl 49,14.23; Os 14,3).

5. Depois do cântico, as intercessões dirigidas ao Pai ou por vezes a Cristo exprimem a voz suplicante da Igreja, lembrada da solicitude divina pela humanidade, obra das suas mãos. Com efeito, a característica das intercessões vespertinas é pedir a ajuda divina para cada categoria de pessoas, para a comunidade cristã e para a sociedade civil. Por fim, encontra-se a recordação dos fiéis defuntos.
A Liturgia das Vésperas tem o seu coroamento na oração de Jesus, o Pai-nosso, síntese de qualquer louvor e súplica dos filhos de Deus regenerados pela água e pelo Espírito. Na conclusão do dia, a tradição cristã relacionou o perdão implorado de Deus no Pai-nosso e a reconciliação fraterna dos homens entre si: que o sol não se ponha sobre a ira de ninguém (cf. Ef 4,26).
A oração vespertina conclui-se com uma oração que, em sintonia com Cristo crucificado, exprime a entrega da nossa existência nas mãos do Pai, conscientes de que a sua bênção nunca há de faltar.

A Paixão e a Ressurreição, núcleos das Vésperas e das Laudes
(Gerard David - Díptico com cenas da Paixão e da Ressurreição)

Fonte: Santa Sé (08 de outubro e 15 de outubro de 2003).

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