quinta-feira, 12 de agosto de 2021

Catequeses sobre os Salmos (29): Laudes do sábado da IV semana

Quase concluindo a primeira parte das suas Catequeses sobre os salmos e cânticos da Liturgia das Horas, o Papa João Paulo II refletiu sobre os textos das Laudes do sábado da IV semana do Saltério nos dias 03 de setembro (Sl 91), 10 de setembro (Ez 36,24-28) e 24 de setembro de 2003 (Sl 8).

84. Louvor ao Deus Criador: Sl 91(92),2-16
03 de setembro de 2003

1. O cântico que acaba de nos ser proposto é o cântico de um homem fiel a Deus. Trata-se do Salmo 91 que, como sugere o título da composição, era usado pela tradição judaica “para o dia do sábado” (v. 1; cf. Catequese n. 42). O hino abre com um amplo apelo a celebrar e a louvar o Senhor com o canto e a música (vv. 2-4). É um movimento de oração que parece nunca ser interrompido, porque o amor divino deve ser exaltado de manhã, quando se começa o dia, mas deve ser também proclamado durante o dia e no decurso das horas noturnas (v. 3). Até a referência aos instrumentos musicais, que o salmista faz no convite introdutório, levou Santo Agostinho a esta meditação no interior da sua Exposição sobre o Salmo 91: “Que significa, irmãos, aclamar com o saltério? O saltério é um instrumento musical dotado de cordas. O nosso saltério é o nosso trabalho. Todo aquele que, com as mãos, realiza obras boas, aclama a Deus com o saltério. Todo aquele que proclama Deus com a boca, canta a Deus. Canta com a boca! Salmodia com as obras! (...) Mas, então, quem são aqueles que cantam? Aqueles que realizam o bem com alegria. O canto, de fato, é sinal de alegria. Que diz o Apóstolo? ‘Deus ama o que dá com alegria’ (2Cor 9,7). Qualquer coisa que tu faças, fá-la com alegria. Então, faz o bem e fá-lo bem. Se, ao contrário, trabalhas com tristeza, mesmo que por teu intermédio se faça o bem, não és tu a fazê-lo: diriges o saltério, não cantas” (Esposizioni sui Salmi, III, Roma, 1976, pp. 192-195).

2. Através das palavras de Santo Agostinho podemos entrar no coração da nossa reflexão e enfrentar o tema fundamental do Salmo: o do bem e do mal. Um e outro são avaliados por Deus justo e santo, “o Excelso eternamente” (v. 9), Aquele que é eterno e infinito, a que não foge nenhuma das ações do homem.
Confrontam-se, assim, de modo renovado, dois comportamentos opostos. A conduta do fiel é dedicada a celebrar as obras divinas, a penetrar na profundidade dos pensamentos do Senhor e, por este caminho, a sua vida irradia luz e alegria (vv. 5-6). Pelo contrário, o homem perverso é descrito na sua insensatez, incapaz de compreender o secreto sentido das vicissitudes humanas. A sorte momentânea torna-o arrogante, mas na realidade, ele é intimamente frágil e está destinado, depois de um sucesso efêmero, à queda e à ruína (vv. 7-8). O salmista, seguindo um modelo interpretativo caro ao Antigo Testamento, o da retribuição, está convencido de que Deus recompensará os justos já neste mundo, dando-lhes uma velhice feliz (v. 15) e depressa castigará os maus.
Na realidade, como afirmará Jó e ensinará Jesus, a história não é interpretável tão linearmente. A visão do salmista torna-se, por isso, uma súplica ao Deus justo e “Excelso” (v. 9), para que entre na série dos acontecimentos humanos para julgá-los, fazendo resplandecer o bem.

"O justo crescerá como a palmeira,
florirá igual ao cedro que há no Líbano" (Sl 91,13)

3. O contraste entre o justo e o ímpio é, depois, retomado pelo orante. Por um lado, eis os “inimigos” do Senhor, os “malfeitores”, mais uma vez destinados à dispersão e à derrota. (v. 10). Por outro lado, os fiéis aparecem em todo o seu esplendor, encarnados pelo salmista que descreve a si mesmo com imagens pitorescas, extraídas da simbologia oriental.
O justo tem a força irresistível de um touro e está pronto para desafiar qualquer adversidade; a sua fronte gloriosa está consagrada com o óleo da proteção divina, que se torna semelhante a um escudo, que defende o eleito tornando-o seguro. (v. 11). Do alto do seu poder e da sua segurança, o orante vê os iníquos a precipitarem-se no abismo da sua ruína (v. 12). 
O Salmo 91 inspira, pois, felicidade, confiança e otimismo: dons que devemos pedir a Deus também no nosso tempo, em que se insinua facilmente a tentação da desconfiança e até do desespero.

4. O nosso hino, na esteira da profunda serenidade que o invade, lança no final um olhar sobre os dias da velhice dos justos e prevê-os igualmente serenos. Mesmo quando estes dias chegarem, o espírito do orante estará ainda vivaz, alegre e operoso (v. 15). Ele sente-se semelhante às palmeiras e aos cedros, que estão plantados nos átrios do templo de Sião (vv. 13-14).
As raízes do justo fundamentam-se no próprio Deus de quem recebe a linfa da graça divina. A vida do Senhor alimenta-o e transforma-o, tornando-o florido e viçoso, isto é, em posição de dar aos outros e de testemunhar a própria fé. As últimas palavras do salmista, nesta descrição de uma existência justa e operosa e de uma velhice intensa e ativa, estão, de fato, ligadas ao anúncio da perene fidelidade do Senhor (v. 16). Poderemos, por isso, concluir agora com a proclamação do canto que sobe ao Deus glorioso no último livro da Bíblia, o Apocalipse: um livro de luta terrível entre o bem e o mal, mas também de esperança na vitória final de Cristo: “Grandes e maravilhosas são as tuas obras, Senhor Deus, Onipotente! Justos e verdadeiros são os teus caminhos, ó Rei das nações... Porque só Tu és Santo e todas as nações virão prostrar-se diante de Ti, pois os teus juízos foram manifestados. Justo és Tu, ó Senhor, que és e que eras, e és Santo, por assim teres feito justiça. Sim, Senhor, Deus onipotente, os teus juízos são verdadeiros e justos” (Ap 15,3-4; 16,5.7).

85. Deus renovará o seu povo: Ez 36,24-28
10 de setembro de 2003

1. O cântico que agora ressoou aos nossos ouvidos foi composto por um dos grandes profetas de Israel. Trata-se de Ezequiel, testemunha de uma das épocas mais trágicas que o povo hebraico viveu: a época da queda do reino de Judá e da sua capital, Jerusalém, a que se seguiu a amarga vicissitude do exílio na Babilônia (século VI a. C.). É tirado do capítulo 36 de Ezequiel o trecho que passou a fazer parte da oração cristã das Laudes.
O contexto desta página, transformada pela Liturgia em hino, quer captar o sentido profundo da tragédia vivida pelo povo naqueles anos. O pecado de idolatria tinha contaminado a terra dada em herança pelo Senhor a Israel. Ele, mais do que outras causas, é responsável definitivamente pela perda da pátria e da dispersão entre as nações. De fato, Deus não permanece indiferente face ao bem e ao mal; Ele entra misteriosamente em ação na história da humanidade com o seu julgamento que, mais cedo ou mais tarde, há de desmascarar o mal, defender as vítimas e indicar o caminho da justiça.

2. Mas a meta da ação de Deus nunca é a ruína, a condenação pura e simples, a aniquilação do pecador. É o mesmo profeta Ezequiel que refere estas palavras divinas: “Será que tenho prazer na morte do ímpio? (...) Não desejo antes que se converta e viva? (...) Pois eu não me comprazo com a morte de quem quer que seja... Convertei-vos e vivei” (Ez 18,23.32). Nesta perspectiva consegue-se compreender o significado do nosso cântico, repleto de esperança e de salvação. Depois da purificação mediante a prova e o sofrimento, está prestes a surgir o alvorecer de uma nova era, que já o profeta Jeremias tinha anunciado quando falou de uma “nova aliança” entre o Senhor e Israel (Jr 31,31-34). O próprio Ezequiel, no capítulo 11 do seu livro profético, tinha proclamado estas palavras divinas: “Lhes darei um coração novo e infundirei no seu íntimo um espírito novo. Arrancarei da sua carne o coração de pedra e lhes darei um coração de carne, para que caminhem segundo os meus preceitos e observem as minhas leis e as cumpram. Eles serão o meu povo e eu serei o seu Deus” (Ez 11,19-20).
No nosso cântico (Ez 36,24-28) o profeta retoma este oráculo e completa-o com um esclarecimento maravilhoso: o “espírito novo” dado por Deus aos filhos do seu povo será o seu Espírito, o Espírito do próprio Deus (v. 27).

3. Por conseguinte, é anunciada não só uma purificação, expressa através do sinal da água que lava as impurezas da consciência. Não se tem apenas o aspecto, mesmo se é necessário, da libertação do mal e do pecado (v. 25). A mensagem de Ezequiel realça sobretudo outro aspecto muito mais surpreendente. De fato, a humanidade está destinada a nascer para uma nova existência. O primeiro símbolo é o do “coração” que, na linguagem bíblica remete para a interioridade, para a consciência pessoal. Ao nosso peito será arrancado o “coração de pedra”, gelado e insensível, sinal da obstinação no mal. Nele Deus inserirá um “coração de carne”, ou seja, uma fonte de vida e de amor (v. 26). O espírito vital, que na criação nos tinha tornado criaturas vivas (cf. Gn 2,7) será substituído pela nova economia de graça do Espírito Santo que nos ampara, nos move, nos guia para a luz da verdade e derrama “o amor de Deus nos nossos corações” (Rm 5,5).

4. Assim, surgirá aquela “nova criação” que será descrita por São Paulo (cf. 2Cor 5,17; Gl 6,15), quando afirmará a morte em nós do “homem velho”, do “corpo do pecado”, porque “já não somos escravos do pecado” mas criaturas novas, transformadas pelo Espírito de Cristo Ressuscitado: “Vos despistes do homem velho com as suas obras e vos revestistes do novo, que não cessa de se renovar à imagem d’Aquele que o criou” (Cl 3,9-10; cf. Rm 6,6). O profeta Ezequiel anuncia um novo povo, que o Novo Testamento verá convocado pelo próprio Deus através da obra do seu Filho. Esta comunidade com o “coração de carne” e com o “espírito” infundido conhecerá uma presença viva e operante do próprio Deus, que animará os crentes agindo neles com a sua graça eficaz. “Aquele que observa os Seus mandamentos - dirá São João - permanece em Deus e Deus nele. E nisto conhecemos que Ele permanece em nós pelo Espírito que nos deu” (1Jo 3,24).

5. Concluímos a nossa meditação sobre o cântico de Ezequiel ouvindo São Cirilo de Jerusalém que, na sua Terceira Catequese Batismal, entrevê na página profética o povo do Batismo cristão.
Com o Batismo, recorda, são perdoados todos os pecados, até as transgressões mais graves. Por isso, o Bispo se dirige aos seus ouvintes: “Tem confiança, Jerusalém, o Senhor eliminará as tuas iniquidades (cf. Sf 3,14-15). O Senhor lavará as vossas iniquidades...: ‘derramará sobre vós água pura e sereis purificados de todas as manchas e pecados’ (Ez 36,25). Os anjos fazem-vos coroa, exultantes, e depressa cantarão: ‘Quem é esta, que sobe o deserto, apoiada no seu amado?’ (Ct 8,5). Ela, de fato, é a alma, outrora escrava e agora livre de chamar ao seu Senhor irmão adotivo, que acolhendo o seu propósito sincero lhe diz: ‘Ó, como és formosa, minha amada, como és formosa!’ (Ct 4,1)... Assim exclama aludindo aos frutos de uma confissão feita com uma consciência reta... Queira Deus que todos... mantenhais viva a recordação destas palavras e delas tireis benefícios transpondo-as em obras santas para vos apresentardes irrepreensíveis ao Esposo místico e para obterdes do Pai o perdão dos pecados” (n. 16: As catequeses, Roma, 1993, pp. 79-80).

86. Majestade de Deus e dignidade do homem: Sl 8,2-10
24 de setembro de 2003

1. Meditando o Salmo 8 (cf. Catequese n. 44), um admirável hino de louvor, encaminhamo-nos para a conclusão do nosso longo itinerário no âmbito dos salmos e dos cânticos que constituem a alma orante da Liturgia das Laudes. Durante estas Catequeses, a nossa reflexão deteve-se sobre 84 orações bíblicas, das quais procuramos realçar sobretudo a intensidade espiritual, mesmo sem descurar a beleza poética.
De fato, a Bíblia convida-nos a abrir o caminho do nosso dia com um cântico que não proclame apenas as maravilhas realizadas por Deus e a nossa resposta de fé, mas que também as celebre “com arte” (cf. Sl 46,8), isto é, de maneira bonita, luminosa, suave e, ao mesmo tempo, forte.
Maravilhoso entre todos é o Salmo 8, no qual o homem, inserido num quadro noturno, quando na imensidão do céu começam a brilhar a lua e as estrelas (v. 4), sente-se como um grão de areia no infinito e no espaço ilimitado que estão acima dele.

2. Com efeito, no centro do Salmo 8 emerge uma dupla experiência. Por um lado, a pessoa humana sente-se quase esmagada pela grandeza da criação, “obra dos dedos” divinos. Esta curiosa expressão substitui a “obra das mãos” de Deus (v. 4), quase para indicar que o Criador traçou um desenho ou um bordado com os astros maravilhosos, lançados na grandeza do cosmos.
Mas, por outro lado, Deus inclina-se sobre o homem e coroa-o como o seu vice-rei: “coroando-o de glória e esplendor” (v. 6). Melhor, a esta criatura tão frágil confia todo o universo, para que o conheça e dele tire o sustento de vida (vv. 7-9).
O horizonte da soberania do homem sobre as outras criaturas é especificado como que a recordar a página de abertura do Gênesis: rebanhos, gado, animais do campo, aves do céu e peixes do mar são confiados ao homem para que, impondo-lhes um nome (cf. Gn 2,19-20), descubra a sua profunda realidade, respeite-a e a transforme com o trabalho e a destine para fonte de beleza e de vida. O Salmo torna-nos conscientes da nossa grandeza, mas também da nossa responsabilidade em relação à criação (cf. Sb 9,3).

3. Lendo de novo o Salmo 8, o autor da Carta aos Hebreus descobriu nele uma compreensão mais profunda do desígnio de Deus em relação ao homem. A vocação do homem não pode ser limitada ao atual mundo terreno; se o salmista afirma que Deus pôs tudo sob o domínio do homem, significa que deseja que ele submeta também “o mundo futuro” (Hb 2,5), “um reino inabalável” (Hb 12,28). Numa palavra, a vocação do homem é uma “vocação celeste” (Hb 3,1). Deus quer “conduzir à glória” celeste “uma multidão de filhos” (Hb 2,10). Para que este projeto divino se realizasse, era necessário que a vida fosse traçada por um “pioneiro” (ibid.), no qual a vocação do homem encontrasse o seu primeiro cumprimento perfeito. Este pioneiro é Cristo.
O autor da Carta aos Hebreus observou a respeito disto que as expressões do Salmo se aplicam a Cristo de maneira privilegiada, ou seja, mais pormenorizada do que para os outros homens. De fato, o salmista usa o verbo “inferiorizar”, dizendo a Deus: “fizeste-o pouco inferior aos anjos, coroando-o de glória e esplendor” (cf. Sl 8,6; Hb 2,6). Para os homens comuns, este verbo não é apropriado; não foram “inferiorizados” em relação aos anjos, dado que nunca foram superiores a eles. Mas para Cristo, o verbo é exato, porque, sendo Filho de Deus, Ele era superior aos anjos e foi diminuído quando se fez homem, sendo depois coroado de glória com a sua Ressurreição. Assim Cristo cumpriu plenamente a vocação do homem e cumpriu-a, explica o autor, “em benefício de todos” (Hb 2,9).

4. Sob esta luz Santo Agostinho comenta o Salmo e aplica-o a nós. Ele parte da frase na qual se delineia a “coroação” do homem: “de glória e esplendor o coroastes” (v. 6). Contudo, naquela glória ele vê o prêmio que o Senhor nos dá quando superarmos a prova da tentação.
Eis as palavras do grande Padre da Igreja na sua Exposição do Evangelho segundo Lucas: “O Senhor coroou o seu dileto também de glória e de magnificência. Aquele Deus que deseja distribuir as coroas, procura as tentações: por isso, quando és tentado, sê consciente de que te é preparada a coroa. Se extingues os combates dos mártires, extinguirás também as suas coroas; se extingues os seus suplícios, também extinguirás as suas bem-aventuranças” (IV, 41: Saemo 12, pp. 330-333).
Deus prepara para nós aquela “coroa de justiça” (2Tm 4,8) que recompensará a nossa fidelidade para com Ele, mantida também no tempo da tempestade, que abala o nosso coração e a nossa mente. Mas Ele está, em todos os tempos, atento à sua criatura predileta e desejaria que nela brilhasse sempre a “imagem” divina (cf. Gn 1,26), para que saiba ser, no mundo, sinal de harmonia, de luz e de paz.

"Haverei de derramar sobre vós uma água pura... e sereis purificados" (Ez 36,25)

Fonte: Santa Sé (03 de setembro, 10 de setembro e 24 de setembro de 2003).

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