“Vós nós resgatastes,
Senhor, pelo vosso Sangue...” (Ap 5,9).
Com estas palavras do Apocalipse
de João tem início a Missa votiva do Preciosíssimo Sangue de Nosso Senhor
Jesus Cristo (cf. Missal Romano, p.
945).
Em nossa postagem anterior já apresentamos brevemente o histórico dessa devoção, desde suas origens na Idade Média, passando pela
contribuição de São Gaspar de Búfalo, até os nossos dias. Cabe-nos agora
refletir um pouco sobre seus fundamentos bíblicos e teológicos.
O simbolismo do
sangue na Bíblia
Na Sagrada Escritura, o sangue é antes de tudo símbolo da
vida, da alma enquanto “força vital”: Deus pedirá contas pelo sangue derramado,
pois nele está a “vida” do homem (Gn
9,4-6). O binômio “carne e sangue”, por sua vez, designa o homem em sua
natureza perecível (Eclo 14,18; Mt 16,17).
As proibições ligadas ao sangue no Antigo Testamento,
declarando “impuro” quem nele toca, visam condenar a violência: o sangue de
Abel, derramado ao solo por seu irmão, “clama a Deus” por justiça (Gn 4,10-11).
O sangue também está diretamente relacionado com os temas da
aliança, do sacrifício, do êxodo e da páscoa. O sangue dos cordeiros sobre as
portas é o sinal que salva o povo hebreu da passagem do anjo da morte (Ex 12).
Assim, os sacrifícios da primeira aliança comportavam sempre
a oferta do sangue de animais, aspergido sobre o altar e sobre o povo, como
sinal de comunhão com Deus (cf. Ex 24,3-8; várias passagens do Levítico).
No Novo Testamento esse duplo simbolismo do sangue, vida e
aliança, é levado por Cristo à perfeição na instituição do sacramento da
Eucaristia e na oferta sacrifical da própria vida na cruz.
No vinho eucarístico, Ele oferece o seu sangue como bebida
aos discípulos, comunicando-lhes a sua própria “força”: “Tomai, todos, e bebei:
este é o Cálice do meu Sangue, o Sangue da nova e eterna aliança, que será
derramado por vós e por todos, para remissão dos pecados. Fazei isto em memória
de Mim” (Mt 26,27-28; Mc 14,23-24; Lc 22,20; 1Cor 11,25-26; Jo 6,53-56).
Última Ceia de Antoni Estruch (Note-se o cálice ao centro e a sombra de Cristo anunciando a Paixão) |
Na cruz estas palavras são levadas a pleno cumprimento, na
qual o sangue de Cristo é efetivamente derramado para nossa salvação. A
temática do sacrifício expiatório será, com efeito, desenvolvida nas Cartas
Paulinas (cf. Rm 3,25; 5,9; Ef 1,7;
2,13; Cl 1,20), na Carta aos Hebreus (sobretudo Hb 9–10), nas Cartas Católicas (1Pd 1,2.18-19; 1Jo 1,7) e no Apocalipse
(Ap 1,5; 5,9; 7,14; 12,11) [1].
Fundamentos
teológicos da devoção
Nessa seção utilizaremos sobretudo os nn. 175-179 do Diretório sobre Piedade Popular e Liturgia
[2], que destaca: “o mistério do Sangue de Cristo está no centro da fé e da
salvação”.
Após recordar os dados bíblicos, como vimos acima (n. 175),
o Diretório relaciona o mistério do
sangue com alguns títulos cristológicos (n. 176):
a) Redentor:
Cristo, oferecendo livremente e por amor seu sangue inocente na cruz, nos
redimiu da escravidão do pecado;
b) Sumo Sacerdote:
na cruz Jesus foi ao mesmo tempo a vítima e o sacerdote, realizando de uma vez
por todas o sacrifício da nova aliança (Carta
aos Hebreus);
c) Testemunha fiel:
isto é, “mártir”, que justifica o sangue dos mártires (Ap 1,5; 6,9-10; 7,14; 12,11);
d) Rei: como
canta o hino Vexilla regis, de
Venâncio Fortunato (séc. VII): Regnavit a
ligno Deus, Deus reinou desde o madeiro (da cruz);
e) Esposo: do
lado aberto do Cristo-Esposo, novo Adão, nasce a Igreja-Esposa (cf. Ef 5,25-27);
f) Cordeiro de Deus:
na imagem do “Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo” (Jo 1,29), “de pé, como que imolado” (Ap 5,6), confluem duas imagens do Antigo
Testamento: o “Servo Sofredor” (cf. Is
53) e o “cordeiro pascal” (Ex 12).
Cordeiro de Deus derramando seu Sangue sobre o cálice (Igreja de Todos os Santos - St Peters, Missouri) |
Sobre a teologia do “sacrifício expiatório”, é preciso tomar
cuidado para não enfatizar a imagem do Pai como um Deus cheio de ira, a qual é
aplacada pela Morte do Filho. Neste sentido, a coleta da Missa votiva do
Preciosíssimo Sangue apresenta o sacrifício de Cristo como “obra da
misericórdia” do Pai (opus misericordiae
tuae) [3].
Retornando ao texto do Diretório
sobre Piedade Popular, este recorda no seu n. 177 a centralidade do
mistério do Sangue do Senhor na Liturgia, tanto no cálice da Eucaristia quanto
nas diversas celebrações do Ano Litúrgico.
Isto é importante para evitar uma excessiva fragmentação do
mistério: o Sangue de Cristo não é uma realidade a ser considerada
isoladamente, às vezes como se fosse algo “mágico” (até mesmo dentro de uma
escala de “poder”), mas um símbolo a ser lido dentro do mistério do Christus totus, do Cristo total.
A Liturgia não celebra “temas”, que são “estáticos”: ela
celebra de maneira pedagógica (ou melhor, mistagógica) a história da salvação,
que é “dinâmica”. Por isso é preciso tomar cuidado em não enfatizar meses ou
dias “temáticos” em detrimento do Ano Litúrgico (embora esses “temas” possam
ser úteis na pastoral, é preciso saber harmonizá-los com a Liturgia).
Ao mesmo tempo, em cada celebração encontramos o mistério
todo de Cristo. Assim, como recorda o Diretório,
embora a celebração por excelência do sangue de Cristo seja o Tríduo Pascal,
podemos encontrar uma referência a ele, por exemplo, no hino das Vésperas
(oração da tarde) do Tempo do Natal: “Nos
quoque, qui sancto tuo redempti sumus sanguine...”; “E nós, por vosso sangue
remidos como povo...” [4].
Da Liturgia passamos a outro locus theologicus (lugar teológico): a piedade popular. O Diretório recomenda particularmente três
formas de devoção ao Preciosíssimo Sangue de Jesus (n. 178):
- a Coroa do
Preciosíssimo Sangue: como vimos em nossa postagem anterior, sua composição
é atribuída ao sacerdote Francesco Albertini (†1819). Consiste em leituras e
orações em honra de sete efusões do sangue de Jesus: na circuncisão, na agonia
do Getsêmani, na flagelação, na coroação de espinhos, no caminho do Calvário,
na crucificação e no golpe da lança.
Coroa do Preciosíssimo Sangue de Jesus |
O mesmo Diretório
atesta que, sobretudo na África, essas efusões do sangue do Senhor recentemente
têm tomado a forma de uma “Via Sanguinis”,
com o gesto processional ao longo das sete estações, à semelhança da Via Crucis e da Via Lucis.
- a Ladainha do
Preciosíssimo Sangue de Jesus: como também vimos anteriormente, seu
formulário foi elaborado pela Congregação dos Ritos em 24 de fevereiro de 1960
e aprovado pelo Papa São João XXIII com a Carta Apostólica Inde a primis, de 30 de junho do mesmo
ano, recolhendo várias invocações da Escritura e da Tradição.
Para acessar o texto da Ladainha, em latim e em português, clique aqui.
- a Hora Santa:
consiste na adoração ao Sangue de Cristo presente no Sacramento da Eucaristia. Promovida
por Santa Margarida Maria Alacoque, essa prática costuma ter lugar às
quintas-feiras, recordando a hora de oração de Jesus no Getsêmani (cf. Mt 26,38 e paralelos).
Por fim, os parágrafos do Diretório sobre o “Sangue Preciosíssimo de Cristo” concluem
recordando suas duas principais representações na arte sacra (n. 179): o cálice
eucarístico e o Crucificado. Nesta última podem aparecer Anjos que recolhem o
sangue que brota das chagas de Cristo ou mesmo uma mulher, que representa a
Igreja, Esposa do Cordeiro.
Outras representações desse mistério incluem:
- o “Ecce Homo”, isto é, o Cristo flagelado e
coroado de espinhos;
- o “Homem das Dores” (Vir
Dolorum), o Cristo morto ou ressuscitado que exibe suas chagas;
- a videira
que brota do lado aberto de Cristo e derrama o vinho/sangue na “fonte da vida”;
- o Cordeiro "de pé, como que imolado" (Ap 5,6);
- e o “pie pellicane”,
o “piedoso pelicano” que alimenta seus filhotes com o próprio sangue.
O Pelicano alimenta os filhotes com seu próprio sangue (Igreja de Todos os Santos - St Peters, Missouri) |
Conclusão: “Acaso
Cristo está dividido?” (1Cor 1,13)
À guisa de conclusão, gostaríamos de recordar os mesmos
números do Diretório que usamos como
conclusão da nossa postagem sobre o culto às Cinco Chagas do Senhor.
Ao elencar as práticas devocionais ligadas a “aspectos
particulares da Paixão de Cristo” (n. 128), o Diretório coloca o culto ao “sangue vivificador” entre as
expressões de piedade “legítimas”. Porém adverte:
“Para evitar um
fracionamento excessivo na contemplação do mistério da Cruz, é conveniente
que se acentue o conjunto todo do evento da Paixão, segundo a tradição bíblica
e patrística” (n. 129). Além disso, “deve-se mostrar aos fiéis a essencial
referência da Cruz ao evento da Ressurreição: a Morte e a Ressurreição de
Cristo são inseparáveis na narrativa evangélica e no projeto salvífico de Deus”
(n. 128).
Assim, o culto do “Preciosíssimo Sangue” desvinculado do
mistério total de Cristo, e às vezes expresso como um elemento “mágico”,
inclusive dentro de uma “escala de poder”, não está de acordo com a autêntica
fé cristã.
Confira também:
Notas:
[1] Sobre o simbolismo do sangue nas Sagradas Escrituras
utilizamos:
McKENZIE, John Lawrence. Dicionário
Bíblico. São Paulo: Paulus, 2013, pp. 772-773;
LÉON-DUFOUR, Xavier et al. Vocabulário de Teologia Bíblica. 9ª ed. Petrópolis: Vozes, 2008,
pp. 966-969.
LURKER, Manfred. Dicionário
de figuras e símbolos bíblicos. São Paulo: Paulus, 1993, pp. 219-220.
[2] CONGREGAÇÃO PARA O CULTO DIVINO E A DISCIPLINA DOS
SACRAMENTOS. Diretório sobre Piedade
Popular e Liturgia. São Paulo: Paulinas, 2003, pp. 149-154.
[3] Sobre a morte redentora de Cristo, cf. Catecismo da Igreja Católica, nn. 599-618.
[4] OFÍCIO DIVINO. Liturgia
das Horas segundo o Rito Romano. Tradução para o Brasil da segunda edição
típica. São Paulo: Paulus, 1999, v. I, p. 347.
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