sexta-feira, 2 de julho de 2021

Teologia da devoção ao Preciosíssimo Sangue de Jesus

“Vós nós resgatastes, Senhor, pelo vosso Sangue...” (Ap 5,9).

Com estas palavras do Apocalipse de João tem início a Missa votiva do Preciosíssimo Sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo (cf. Missal Romano, p. 945).

Em nossa postagem anterior já apresentamos brevemente o histórico dessa devoção, desde suas origens na Idade Média, passando pela contribuição de São Gaspar de Búfalo, até os nossos dias. Cabe-nos agora refletir um pouco sobre seus fundamentos bíblicos e teológicos.

Crucificado com os Anjos recolhendo o Sangue das chagas
(Ilustração de um antigo Missal)

O simbolismo do sangue na Bíblia

Na Sagrada Escritura, o sangue é antes de tudo símbolo da vida, da alma enquanto “força vital”: Deus pedirá contas pelo sangue derramado, pois nele está a “vida” do homem (Gn 9,4-6). O binômio “carne e sangue”, por sua vez, designa o homem em sua natureza perecível (Eclo 14,18; Mt 16,17).

As proibições ligadas ao sangue no Antigo Testamento, declarando “impuro” quem nele toca, visam condenar a violência: o sangue de Abel, derramado ao solo por seu irmão, “clama a Deus” por justiça (Gn 4,10-11).

O sangue também está diretamente relacionado com os temas da aliança, do sacrifício, do êxodo e da páscoa. O sangue dos cordeiros sobre as portas é o sinal que salva o povo hebreu da passagem do anjo da morte (Ex 12).

Assim, os sacrifícios da primeira aliança comportavam sempre a oferta do sangue de animais, aspergido sobre o altar e sobre o povo, como sinal de comunhão com Deus (cf. Ex 24,3-8; várias passagens do Levítico).

No Novo Testamento esse duplo simbolismo do sangue, vida e aliança, é levado por Cristo à perfeição na instituição do sacramento da Eucaristia e na oferta sacrifical da própria vida na cruz.

No vinho eucarístico, Ele oferece o seu sangue como bebida aos discípulos, comunicando-lhes a sua própria “força”: “Tomai, todos, e bebei: este é o Cálice do meu Sangue, o Sangue da nova e eterna aliança, que será derramado por vós e por todos, para remissão dos pecados. Fazei isto em memória de Mim” (Mt 26,27-28; Mc 14,23-24; Lc 22,20; 1Cor 11,25-26; Jo 6,53-56).

Última Ceia de Antoni Estruch
(Note-se o cálice ao centro e a sombra de Cristo anunciando a Paixão)

Na cruz estas palavras são levadas a pleno cumprimento, na qual o sangue de Cristo é efetivamente derramado para nossa salvação. A temática do sacrifício expiatório será, com efeito, desenvolvida nas Cartas Paulinas (cf. Rm 3,25; 5,9; Ef 1,7; 2,13; Cl 1,20), na Carta aos Hebreus (sobretudo Hb 9–10), nas Cartas Católicas (1Pd 1,2.18-19; 1Jo 1,7) e no Apocalipse (Ap 1,5; 5,9; 7,14; 12,11) [1].

Fundamentos teológicos da devoção

Nessa seção utilizaremos sobretudo os nn. 175-179 do Diretório sobre Piedade Popular e Liturgia [2], que destaca: “o mistério do Sangue de Cristo está no centro da fé e da salvação”.

Após recordar os dados bíblicos, como vimos acima (n. 175), o Diretório relaciona o mistério do sangue com alguns títulos cristológicos (n. 176):

a) Redentor: Cristo, oferecendo livremente e por amor seu sangue inocente na cruz, nos redimiu da escravidão do pecado;

b) Sumo Sacerdote: na cruz Jesus foi ao mesmo tempo a vítima e o sacerdote, realizando de uma vez por todas o sacrifício da nova aliança (Carta aos Hebreus);

c) Testemunha fiel: isto é, “mártir”, que justifica o sangue dos mártires (Ap 1,5; 6,9-10; 7,14; 12,11);

d) Rei: como canta o hino Vexilla regis, de Venâncio Fortunato (séc. VII): Regnavit a ligno Deus, Deus reinou desde o madeiro (da cruz);

e) Esposo: do lado aberto do Cristo-Esposo, novo Adão, nasce a Igreja-Esposa (cf. Ef 5,25-27);

f) Cordeiro de Deus: na imagem do “Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo” (Jo 1,29), “de pé, como que imolado” (Ap 5,6), confluem duas imagens do Antigo Testamento: o “Servo Sofredor” (cf. Is 53) e o “cordeiro pascal” (Ex 12).

Cordeiro de Deus derramando seu Sangue sobre o cálice
(Igreja de Todos os Santos - St Peters, Missouri) 

Sobre a teologia do “sacrifício expiatório”, é preciso tomar cuidado para não enfatizar a imagem do Pai como um Deus cheio de ira, a qual é aplacada pela Morte do Filho. Neste sentido, a coleta da Missa votiva do Preciosíssimo Sangue apresenta o sacrifício de Cristo como “obra da misericórdia” do Pai (opus misericordiae tuae) [3].

Retornando ao texto do Diretório sobre Piedade Popular, este recorda no seu n. 177 a centralidade do mistério do Sangue do Senhor na Liturgia, tanto no cálice da Eucaristia quanto nas diversas celebrações do Ano Litúrgico.

Isto é importante para evitar uma excessiva fragmentação do mistério: o Sangue de Cristo não é uma realidade a ser considerada isoladamente, às vezes como se fosse algo “mágico” (até mesmo dentro de uma escala de “poder”), mas um símbolo a ser lido dentro do mistério do Christus totus, do Cristo total.

A Liturgia não celebra “temas”, que são “estáticos”: ela celebra de maneira pedagógica (ou melhor, mistagógica) a história da salvação, que é “dinâmica”. Por isso é preciso tomar cuidado em não enfatizar meses ou dias “temáticos” em detrimento do Ano Litúrgico (embora esses “temas” possam ser úteis na pastoral, é preciso saber harmonizá-los com a Liturgia).

Ao mesmo tempo, em cada celebração encontramos o mistério todo de Cristo. Assim, como recorda o Diretório, embora a celebração por excelência do sangue de Cristo seja o Tríduo Pascal, podemos encontrar uma referência a ele, por exemplo, no hino das Vésperas (oração da tarde) do Tempo do Natal: “Nos quoque, qui sancto tuo redempti sumus sanguine...”; “E nós, por vosso sangue remidos como povo...” [4].

Da Liturgia passamos a outro locus theologicus (lugar teológico): a piedade popular. O Diretório recomenda particularmente três formas de devoção ao Preciosíssimo Sangue de Jesus (n. 178):

- a Coroa do Preciosíssimo Sangue: como vimos em nossa postagem anterior, sua composição é atribuída ao sacerdote Francesco Albertini (†1819). Consiste em leituras e orações em honra de sete efusões do sangue de Jesus: na circuncisão, na agonia do Getsêmani, na flagelação, na coroação de espinhos, no caminho do Calvário, na crucificação e no golpe da lança.

Coroa do Preciosíssimo Sangue de Jesus

O mesmo Diretório atesta que, sobretudo na África, essas efusões do sangue do Senhor recentemente têm tomado a forma de uma “Via Sanguinis”, com o gesto processional ao longo das sete estações, à semelhança da Via Crucis e da Via Lucis.

- a Ladainha do Preciosíssimo Sangue de Jesus: como também vimos anteriormente, seu formulário foi elaborado pela Congregação dos Ritos em 24 de fevereiro de 1960 e aprovado pelo Papa São João XXIII com a Carta Apostólica Inde a primis, de 30 de junho do mesmo ano, recolhendo várias invocações da Escritura e da Tradição.

Para acessar o texto da Ladainha, em latim e em português, clique aqui.

- a Hora Santa: consiste na adoração ao Sangue de Cristo presente no Sacramento da Eucaristia. Promovida por Santa Margarida Maria Alacoque, essa prática costuma ter lugar às quintas-feiras, recordando a hora de oração de Jesus no Getsêmani (cf. Mt 26,38 e paralelos).

Por fim, os parágrafos do Diretório sobre o “Sangue Preciosíssimo de Cristo” concluem recordando suas duas principais representações na arte sacra (n. 179): o cálice eucarístico e o Crucificado. Nesta última podem aparecer Anjos que recolhem o sangue que brota das chagas de Cristo ou mesmo uma mulher, que representa a Igreja, Esposa do Cordeiro.

Outras representações desse mistério incluem:
- o “Ecce Homo”, isto é, o Cristo flagelado e coroado de espinhos;
- o “Homem das Dores” (Vir Dolorum), o Cristo morto ou ressuscitado que exibe suas chagas;
- a videira que brota do lado aberto de Cristo e derrama o vinho/sangue na “fonte da vida”;
- o Cordeiro "de pé, como que imolado" (Ap 5,6);
- e o “pie pellicane”, o “piedoso pelicano” que alimenta seus filhotes com o próprio sangue.

O Pelicano alimenta os filhotes com seu próprio sangue
(Igreja de Todos os Santos - St Peters, Missouri)

Conclusão: “Acaso Cristo está dividido?” (1Cor 1,13)

À guisa de conclusão, gostaríamos de recordar os mesmos números do Diretório que usamos como conclusão da nossa postagem sobre o culto às Cinco Chagas do Senhor.

Ao elencar as práticas devocionais ligadas a “aspectos particulares da Paixão de Cristo” (n. 128), o Diretório coloca o culto ao “sangue vivificador” entre as expressões de piedade “legítimas”. Porém adverte:

“Para evitar um fracionamento excessivo na contemplação do mistério da Cruz, é conveniente que se acentue o conjunto todo do evento da Paixão, segundo a tradição bíblica e patrística” (n. 129). Além disso, “deve-se mostrar aos fiéis a essencial referência da Cruz ao evento da Ressurreição: a Morte e a Ressurreição de Cristo são inseparáveis na narrativa evangélica e no projeto salvífico de Deus” (n. 128).

Assim, o culto do “Preciosíssimo Sangue” desvinculado do mistério total de Cristo, e às vezes expresso como um elemento “mágico”, inclusive dentro de uma “escala de poder”, não está de acordo com a autêntica fé cristã.

Cristo, a Videira Verdadeira
(Anônimo do século XVII - Museu Histórico de Sanok)

Confira também:

Notas:

[1] Sobre o simbolismo do sangue nas Sagradas Escrituras utilizamos:
McKENZIE, John Lawrence. Dicionário Bíblico. São Paulo: Paulus, 2013, pp. 772-773;
LÉON-DUFOUR, Xavier et al. Vocabulário de Teologia Bíblica. 9ª ed. Petrópolis: Vozes, 2008, pp. 966-969.
LURKER, Manfred. Dicionário de figuras e símbolos bíblicos. São Paulo: Paulus, 1993, pp. 219-220.

[2] CONGREGAÇÃO PARA O CULTO DIVINO E A DISCIPLINA DOS SACRAMENTOS. Diretório sobre Piedade Popular e Liturgia. São Paulo: Paulinas, 2003, pp. 149-154.

[3] Sobre a morte redentora de Cristo, cf. Catecismo da Igreja Católica, nn. 599-618.

[4] OFÍCIO DIVINO. Liturgia das Horas segundo o Rito Romano. Tradução para o Brasil da segunda edição típica. São Paulo: Paulus, 1999, v. I, p. 347.

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