Nesta
postagem propomos as Catequeses do Papa João Paulo II sobre os salmos e o cântico das Laudes da quarta-feira da IV semana do Saltério, proferidas nos
dias 28 de maio (Sl 107), 18 de junho (Is 61,10–62,5) e 02 de julho de 2003 (Sl
145).
75. Louvor a Deus e pedido de
ajuda: Sl 107(108),2-14
28 de maio de 2003
1. O Salmo 107, que agora
nos foi proposto, faz parte da sequência dos salmos da Liturgia
das Laudes, objeto
das nossas Catequeses. Ele apresenta uma característica, à primeira vista,
surpreendente. A composição não é mais do que a fusão de dois fragmentos de
salmos pré-existentes, um tirado do Salmo 56 (vv. 8-12) e outro do Salmo 59
(vv. 7-14). O primeiro fragmento tem uma tonalidade hínica, o segundo uma marca
suplicante, mas com um oráculo divino que confere ao orante serenidade e
confiança.
Esta fusão dá origem a uma
nova oração e isto se torna exemplar para nós. Na realidade, também a Liturgia
cristã muitas vezes funde trechos bíblicos diferentes de maneira que os
transforma num texto novo, destinado a iluminar situações inéditas. Contudo,
permanece o vínculo com a base originária. Na prática, o Salmo 107 (mas não é o
único; veja-se, só para mencionar outro testemunho, o Salmo 143) mostra como já
Israel no Antigo Testamento reutilizava e atualizava a Palavra de Deus
revelada.
2. O Salmo que deriva dessa
combinação é, portanto, algo mais do que a simples soma ou justaposição dos
dois trechos pré-existentes. Em vez de começar com uma humilde súplica, como o
Salmo 56 - “Tende piedade de mim, ó Deus” (v. 2) -, o novo Salmo começa com um
anúncio resoluto de louvor a Deus: “Meu coração está pronto, meu Deus, está
pronto o meu coração! Vou cantar e tocar para vós” (Sl 107,2). Este louvor ocupa o
lugar da lamentação que formava o começo do outro salmo (cf. Sl 59,1-6), e torna-se assim a base
do oráculo seguinte (Sl 59,8-10
= Sl 107,8-10) e da súplica que o
rodeia (Sl 59,7.11-14
= Sl 107,7.11-14).
Esperança e pesadelo
fundem-se e tornam-se substância da nova oração, completamente orientada para
dar confiança também no tempo da prova vivida por toda a comunidade.
3. Por conseguinte, o Salmo
começa com um hino jubiloso de louvor. É um cântico matutino acompanhado da
harpa e da lira (v. 3). A mensagem é límpida e tem no centro o “amor” e a
“verdade” divinos (v. 5): em hebraico, hésed e 'emèt são as palavras típicas para definir a
fidelidade amorosa do Senhor em relação à aliança com o seu povo. Com base
nesta fidelidade, o povo tem a certeza de que nunca será abandonado por Deus no
abismo do nada e do desespero.
A nova leitura cristã
interpreta este Salmo de maneira particularmente sugestiva. No v. 6 o salmista
celebra a glória transcendente de Deus: “Elevai-Vos (ou seja, ‘sê exaltado’), ó
Deus, sobre os céus!”. Ao comentar este Salmo, Orígenes remete para a frase de
Jesus: “E eu, quando for levantado da terra, atrairei todos a mim” (Jo 12,32) que se refere à
crucificação. Ela tem como resultado o que afirma o versículo seguinte: “Sejam
livres os vossos amados” (v. 7). Então Orígenes
conclui: “Que significado maravilhoso! O motivo pelo qual o Senhor é
crucificado e exaltado é que os seus amados sejam livres... Realizou-se tudo o
que pedimos: Ele foi exaltado e nós fomos libertados” (Orígenes-Jerônimo, 74 homilias sobre o Livro dos
Salmos, Milão, 1993, p. 367).
"Elevai-vos, Ó Deus, sobre os céus vossa glória refulja na terra!" (Sl 107,6) |
4. Passamos agora à segunda
parte do Salmo 107, citação parcial do Salmo 59, como foi dito. Na angústia de
Israel, que sente Deus ausente e distante (“vós, Deus, rejeitais vosso povo”:
v. 12), ergue-se a voz do oráculo do Senhor que ressoa no templo (vv. 8-10).
Nesta revelação, Deus apresenta-se como árbitro e senhor de toda a Terra Santa,
da cidade de Siquém ao vale da Transjordânia, Sucot, das regiões orientais de
Galaad e Manassés às centro-meridionais de Efraim e Judá, alcançando também os
territórios vassalos, mas estrangeiros, de Moab, Edom e Filisteia.
Com palavras vivas de
inspiração militar ou com marcas jurídicas proclama-se o domínio divino sobre a
Terra Prometida. Se o Senhor reina, não devemos temer: não somos atirados para cá
e para lá pelas forças obscuras do destino ou da confusão. Há sempre, também
nos momentos tenebrosos, um projeto superior que rege a história.
5. Esta fé acende a chama da
esperança. Contudo, Deus indicará uma solução, ou seja, uma “cidade segura”
colocada na região de Edom. Isto significa que, apesar da prova e do silêncio,
Deus voltará a revelar-se, a apoiar e orientar o seu povo. Só d’Ele pode vir a
ajuda decisiva e não das alianças militares externas, ou seja, da força das
armas (v. 13). E só com Ele se obterá a liberdade e se farão “proezas” (v. 14).
Recordamos com São Jerônimo
a última lição do salmista, interpretada em chave cristã: “Ninguém se deve
perder por este caminho. Tens Cristo e tens receio? Será Ele a nossa força, o
nosso pão, o nosso guia” (Breviarium in Psalmos, Ps. CVII: PL 26, 1224).
76. A alegria do profeta sobre
a nova Jerusalém: Is 61,10–62,5
18 de junho de 2003
1. Abriu-se como um Magnificat o admirável cântico que a Liturgia
das Laudes nos propõe e
que agora foi proclamado: “Eu exulto de alegria no Senhor, e minha alma rejubila
no meu Deus” (v. 10). O texto está inserido na
terceira parte do Livro do Profeta Isaías,
uma parte que os estudiosos enquadram numa época mais tardia, quando Israel,
tendo voltado do exílio na Babilônia (século VI a. C.), recomeça a sua vida
como povo livre na terra dos antepassados e edifica de novo Jerusalém e o
templo. Não é por acaso que a cidade santa, como veremos, está no centro do
cântico e o horizonte que se está a abrir é luminoso e repleto de esperança.
2. O profeta abre o seu
cântico representando o povo renascido, envolvido em maravilhosas vestes, como
um casal de esposos, preparado para o grande dia da celebração nupcial (v. 10).
Imediatamente a seguir é recordado outro símbolo, expressão de vida, de alegria
e de novidade: o símbolo vegetal das sementes (v. 11).
Os profetas recorrem à
imagem das sementes, de formas diferentes, para representar o rei messiânico (cf. Is 11,1; Jr 23,5; Zc 3,8; 6,12). O Messias é uma semente
fecunda que renova o mundo, e o profeta explicita o sentido profundo desta
vitalidade: “o Senhor fará brotar sua justiça” (v.
11). Portanto, a cidade santa se tornará um jardim de justiça, isto é,
de fidelidade e de verdade, de direito e de amor. Como dizia pouco antes o
profeta, “Darás às tuas muralhas o nome de ‘Salvação’, e de ‘Glória’ às tuas
portas” (Is 60,18).
3. O profeta continua a
levantar a sua voz: o cântico é incansável e quer representar o renascimento de
Jerusalém, diante da qual está para começar uma nova era (Is 62,1). A cidade é representada como
uma esposa que se prepara para celebrar as núpcias.
O simbolismo esponsal, que
sobressai com vigor nesta passagem (vv. 4-5), é, na Bíblia, uma das imagens
mais intensas para exaltar o vínculo de intimidade e o pacto de amor
estabelecido entre o Senhor e o povo eleito. A beleza feita de “salvação”, de
“justiça” e de “glória” (vv. 1-2) será tão maravilhosa que ela poderá ser “diadema
régio entre as nãos do teu Senhor” (v. 3). O elemento decisivo será a mudança
do nome, como acontece também nos nossos dias quando a jovem se casa. Assumir
um “nome novo” (v. 2) significa quase revestir uma nova identidade, empreender
uma missão, mudar radicalmente a vida (cf. Gn 32,25-33).
4. O novo nome que assumirá
a esposa Jerusalém, destinada a representar todo o povo de Deus, é ilustrado no
contraste que o profeta especifica: “Nunca mais te chamarão ‘Desamparada’, nem
se dirá de tua terra ‘Abandonada’; mas haverão de te chamar ‘Minha querida’, e
se dirá de tua terra ‘Desposada’” (v. 4). Os nomes que indicavam
a situação anterior de abandono e de desolação, ou seja, a devastação da cidade
por obra dos babilônios e o drama do exílio, é agora substituído pelos nomes do
renascimento e são palavras de amor e de ternura, de festa e de felicidade.
Neste ponto toda a atenção
se concentra no esposo. E eis a grande surpresa: o próprio Senhor atribui a
Sião o novo nome nupcial. É maravilhosa, sobretudo, a declaração final, que
resume o tema do cântico de amor que o povo entoou: “Como um jovem que desposa
a bem-amada, teu Construtor, assim também, vai desposar-te; como a esposa é a
alegria do marido, serás assim a alegria do teu Deus” (v. 5).
5. O cântico já não celebra
as núpcias entre um rei e uma rainha, mas celebra o amor profundo que une para
sempre Deus e Jerusalém. Na sua esposa terrena, que é a nação santa, o Senhor
encontra a mesma felicidade que o marido experimenta na esposa amada. O Deus
distante e transcendente, juiz justo, é substituído agora por um Deus próximo e
enamorado. Este simbolismo nupcial se transferirá para o Novo Testamento (cf. Ef 5,21-32) e será retomado e
desenvolvido pelos Padres da Igreja. Por exemplo, Santo Ambrósio recorda que
nesta perspectiva “o marido é Cristo, a esposa é a Igreja, esposa pelo amor,
virgem pela pureza intacta” (Exposições do Evangelho segundo Lucas:
Obras exegéticas X/II,
Milão-Roma, 1978, p. 289).
E prossegue, em outra obra:
“A Igreja é bela. Por isso o Verbo de Deus lhe diz: ‘És toda bela, minha amiga,
e em ti não há motivos de censura’ (Ct 4,7), porque a culpa foi cancelada...
Por isso o Senhor Jesus - levado pelo desejo de um amor tão grande, da beleza
das suas vestes e da sua graça, porque agora naqueles que foram purificados já
não há qualquer mancha de culpa - diz à Igreja: ‘coloca-me como selo no teu
coração, como selo no teu braço’ (Ct 8,6),
ou seja: és bela, minha alma, és toda bela, nada te falta! ‘Coloca-me como selo
no teu coração’, para que através dele a tua fé resplandeça na plenitude do sacramento.
Resplandeçam também as tuas obras e mostrem a imagem de Deus, à semelhança do
qual foste criada” (Os mistérios, n. 49.41: Obras dogmáticas, III, Milão-Roma, 1982, pp. 156-157).
77. Felicidade dos que esperam
no Senhor: Sl 145(146),1-10
02 de julho de 2003
1.
O Salmo 145, que acabamos de escutar, é um “aleluia”, o primeiro dos cinco, que
encerram toda a coleção do Saltério. Já a tradição hebraica utilizava este hino
como cântico de louvor para a manhã: ele tem o seu vértice na proclamação da soberania
de Deus sobre a história humana. Com efeito, no final do Salmo declara-se que “o
Senhor reinará para sempre” (v. 10).
Daqui
segue uma verdade consoladora: não estamos abandonados a nós mesmos, as
vicissitudes dos nossos dias não são dominadas pelo caos ou pelo acaso, os
acontecimentos não representam uma mera sucessão de atos desprovidos de
qualquer sentido e meta. É a partir desta convicção que se desenvolve uma
verdadeira e própria profissão de fé em Deus, celebrado com uma espécie de
ladainha, em que se proclamam os atributos de amor e de bondade que lhe são
próprios (vv. 6-9).
2.
Deus é Criador do céu e da terra, é guarda fiel do pacto que o liga ao seu
povo, é Aquele que age com justiça em relação aos oprimidos, dá o pão que
sustenta os famintos e liberta os prisioneiros. É Ele que abre os olhos aos
cegos, ergue quem caiu, ama os justos, protege o estrangeiro e ajuda o órfão e
a viúva. É Ele que transforma o caminho dos ímpios e reina soberano sobre todos
os seres e em todas as épocas.
Trata-se
de doze afirmações teológicas que, com o seu número perfeito, querem exprimir a
plenitude e a perfeição da ação divina. O Senhor não é um soberano distante das
suas criaturas, mas faz parte da sua história, como Aquele que fomenta a
justiça, pondo-se do lado dos últimos, das vítimas, dos oprimidos e dos
infelizes.
3.
O homem encontra-se, assim, diante de uma opção radical, entre duas
possibilidades opostas: por um lado, há a tentação de “confiar nos poderosos”
(v. 3), adotando os seus critérios inspirados no mal, no egoísmo e no orgulho.
Na realidade, este é um caminho ameaçador e traiçoeiro, é “uma senda tortuosa e
uma via oblíqua” (cf. Pr 2,15),
que tem como meta o desespero.
Com
efeito, o salmista recorda-nos que o homem é um ser frágil e mortal, como diz o
próprio vocábulo ‘adam que, em hebraico, remete à terra, à
matéria e ao pó. O homem - repete com frequência a Bíblia - é semelhante a um
edifício que se desfaz (cf. Ecl 12,1-7);
a uma teia de aranha que o vento pode despedaçar (cf. Jó 8,14); a um fio de relva, verdejante na
aurora e seco no crepúsculo (cf. Sl 89,5-6;
102,15-16). Quando a morte se apresenta a ele, todos os seus projetos se
dissipam e ele volta a ser pó: “Ao faltar-lhe o respiro ele volta para a terra
de onde saiu; nesse dia seus planos perecem” (Sl 145,4).
4.
Porém, há também outra possibilidade diante do homem, exaltada pelo salmista
com uma bem-aventurança: “É feliz todo homem que busca seu auxílio no Deus de
Jacó, e que põe no Senhor a esperança” (v. 5). Este é o caminho da confiança no
Deus eterno e fiel. O amen, que é a palavra hebraica da fé,
significa precisamente um fundamentar-se na solidez inabalável do Senhor, na
sua eternidade e no seu poder infinito. Mas significa, sobretudo, compartilhar
as suas opções, realçadas pela profissão de fé e de louvor, como antes
descrevemos. É necessário viver na adesão à vontade divina, oferecer o pão aos
famintos, visitar os prisioneiros, ajudar e confortar os doentes, defender e
acolher os estrangeiros, dedicar-se aos pobres e aos miseráveis. A nível
concreto, é o próprio espírito das bem-aventuranças; é aderir à proposta de
amor que nos salva já nesta vida e, além disso, será o objeto do nosso exame no
juízo final, que selará a história. Então, seremos julgados a partir da opção
de servir Cristo no faminto, no sedento, no forasteiro, na pessoa nua, no
enfermo e no prisioneiro. “Todas as vezes que fizestes isto a um dos menores
dos meus irmãos, foi a mim que o fizestes” (Mt 25,40): então, é
isto que o Senhor dirá.
5.
Concluímos a nossa meditação do Salmo 145, com um ponto de reflexão, que nos é
oferecido pela tradição cristã.
Quando
Orígenes, o grande escritor do século III, chegou ao v. 7 deste Salmo, que diz:
“Ele dá alimento aos famintos, é o Senhor quem liberta os cativos”, viu nisto
uma referência implícita à Eucaristia: “Temos fome de Cristo, e é Ele mesmo que
nos dará o pão do céu: ‘O pão nosso de cada dia nos dai hoje’. Aqueles que
falam assim, são os famintos; quem sente necessidade do pão, é o faminto”. E
esta fome é plenamente saciada pelo sacramento eucarístico, em que o homem se
nutre do Corpo e do Sangue de Cristo (cf.
Orígenes-Jerônimo, 74 omelie sul Libro dei Salmi, Milão, 1993, pp.
526-527).
"O Senhor faz erguer-se o caído" (Sl 145,8) (Cristo e a pecadora - Imagem do filme "A Paixão de Cristo" de 2004) |
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