Os
salmos e o cântico das Laudes da segunda-feira da IV semana do Saltério foram
apresentados pelo Papa João Paulo II em sua série de Catequeses nos dias 26 de março (Sl 89),
02 de abril (Is 42,10-16) e 09 de abril de 2003 (Sl 134).
69. O esplendor do Senhor esteja sobre nós: Sl 89(90),1-17
26 de março de 2003
1.
Os versículos que agora ressoaram aos nossos ouvidos e aos nossos corações
constituem uma meditação sábia que tem, contudo, também uma entoação de
súplica. De fato, o orante do Salmo 89 coloca no centro da sua oração um dos
temas mais explorados da filosofia, mais cantados pela poesia, mais sentidos
pela experiência da humanidade de todos os tempos e de todas as regiões do
nosso planeta: a caducidade humana e a fluência do tempo.
Pensamos
em certas páginas inesquecíveis do Livro de Jó nas quais é
focada a nossa fragilidade. De fato, nós somos como “os que habitam moradas de
barro e que têm sua origem no pó! São esmagados como um verme, entre a noite e
a manhã são aniquilados. Desaparecem para sempre e ninguém se recorda deles” (Jó 4,20-21). A nossa vida na terra é
“como uma sombra” (Jó 8,9). É ainda Jó quem confessa: “os meus dias
passaram mais rápidos que um corcel, fugiram sem terem visto a felicidade.
Passaram como barcas de junco. Como a águia que se precipita sobre a presa” (Jó 9,25-26).
2.
No começo do seu cântico, que se parece com uma elegia (Sl 89,2-6),
o salmista opõe com insistência a eternidade de Deus ao tempo efêmero do homem.
Eis a declaração mais explícita: “Mil anos para vós são como ontem, qual
vigília de uma noite que passou” (v. 4).
Como
consequência do pecado original, de uma ordem divina, o homem volta a cair no pó
do qual foi tirado, como já se afirma na narração do Gênesis: “Recorda-te que és pó e em pó te tornarás!” (Gn 3,19; cf. 2,7). O Criador, que dá forma em toda a sua beleza e
complexidade à criatura humana, é também aquele que “reduz o homem ao pó” (Sl 89,3).
E “pó” na linguagem bíblica é expressão simbólica também da morte, do inferno,
do silêncio sepulcral.
3.
Nesta súplica é forte o sentido da limitação humana. A nossa existência tem a
fragilidade da erva que brota ao alvorecer; imediatamente ouve o barulho da
foice que a reduz a um feixe de erva. Muito depressa, o viço da vida é
substituído pela aridez da morte (vv. 5-6; cf. Is 40,6-7; Jó 14,1-2; Sl 102,14-16).
Como
acontece com frequência no Antigo Testamento, a esta debilidade radical o salmista
associa o pecado: existe em nós a limitação, mas também a culpa. Por isso, a
cólera e o juízo do Senhor parecem ameaçar também a nossa existência: “Por
vossa ira perecemos realmente, vosso furor nos apavora e faz tremer; pusestes
nossa culpa à nossa frente... Em vossa ira se consomem nossos dias” (vv. 7-9).
"Ensinai-nos a contar os nossos dias, e dai ao nosso coração sabedoria!" (Sl 89,12) (Mosaico de Cristo, Senhor do tempo, ladeado pelos doze meses do ano - Catedral de Aosta) |
4.
Com o aparecimento do novo dia, a Liturgia
das Laudes desperta-nos, com este salmo, das nossas ilusões e do
nosso orgulho. A vida humana é limitada: “Pode durar setenta anos nossa vida, os
mais fortes talvez cheguem a oitenta” afirma o orante. Além disso, o passar das
horas, dos dias e dos meses é marcado pela “ilusão e sofrimento” (v. 10) e os
mesmos anos revelam-se ser semelhantes a “um sopro” (v. 9).
Eis,
então, a grande lição: o Senhor ensina-nos a “contar os nossos dias” porque, aceitando-os
com realismo sadio, alcançaremos a sabedoria do coração (v. 12). Mas o orante
pede a Deus algo mais: a sua graça ampare e dê alegria aos nossos dias, apesar
de serem escassos e marcados pelas provações. Faça com que saboreemos a
esperança, mesmo se o passar do tempo parece arrastar-nos. Só a graça do Senhor
pode dar consistência e perenidade às nossas ações quotidianas: “Que a bondade
do Senhor e nosso Deus repouse sobre nós e nos conduza! Tornai fecundo, ó
Senhor, nosso trabalho, fazei dar frutos o labor de nossas mãos!” (v. 17).
Pedimos
a Deus com a oração que um reflexo da eternidade penetre a nossa vida breve e
as nossas ações. Com a presença da graça divina em nós, uma luz brilhará com o
passar dos dias, a miséria se tornará glória, o que parece estar privado de
sentido adquirirá significado.
5.
Concluímos a nossa reflexão sobre o Salmo 89 deixando a palavra à antiga
tradição cristã, que comenta o Saltério tendo como base a figura gloriosa de
Cristo. Assim, para o escritor cristão Orígenes, no seu Tratado sobre
os Salmos, que chegou até nós com a tradução latina de São Jerônimo, é
a Ressurreição de Cristo que nos dá a possibilidade, pressentida pelo salmista,
de “exultar de alegria todo o dia” (v. 14). E isto porque a Páscoa de Cristo é
a fonte da nossa vida para além da morte: “Depois de nos termos alegrado com a Ressurreição
de nosso Senhor, mediante a qual já acreditamos que fomos redimidos e que um
dia também nós ressuscitaremos, agora, transcorrendo na alegria os dias da
nossa vida que ainda nos falta viver, exultamos por esta confiança, e com hinos
e cânticos espirituais louvamos a Deus através de Jesus Cristo, nosso Senhor”
(Orígenes-Jerônimo, 74 homilias sobre o Livro dos Salmos, Milão,
1993, p. 652).
70. Hino ao Senhor vencedor e salvador: Is 42,10-16
02 de abril de 2003
1. No livro que tem o nome
do profeta Isaías, os estudiosos identificaram a presença de vozes diferentes,
todas colocadas sob o patrocínio do grande profeta que viveu no século VIII a. C..
É o caso do vigoroso hino de alegria e de vitória que agora foi proclamado como
parte da Liturgia das Laudes da
IV semana. Os exegetas o relacionam com o chamado Segundo Isaías, um profeta
que viveu no século VI a. C., no tempo da vinda dos hebreus do exílio da Babilônia.
O hino abre com um apelo a “cantar ao Senhor um canto novo” (v. 10),
precisamente como acontece noutros Salmos (cf.
Sl 95,1; 97,1).
A “novidade” do cântico para
o qual o profeta convida inspira-se certamente na abertura do horizonte da
liberdade, como mudança radical na história de um povo que conheceu a opressão
e a permanência em terra estrangeira (cf. Sl 136).
2. A “novidade” tem com
frequência na Bíblia o sabor de uma realidade perfeita e definitiva. É quase o
sinal do começo de uma era de plenitude salvífica que sela a história atormentada
da humanidade. O cântico de Isaías apresenta esta nobre tonalidade, que se
adapta bem à oração cristã.
O mundo, na sua globalidade
que inclui a terra, o mar, as ilhas, os desertos e as cidades (vv. 10-12), é convidado
o elevar ao Senhor um “canto novo”. Todo o espaço está envolvido com os seus
extremos confins horizontais, que compreendem também o desconhecido, e com a
sua dimensão vertical, que parte da planície deserta, onde se encontram as
tribos nômades de Cedar (cf. Is 21,16-17), e sobe até os montes:
ali se pode colocar a cidade de Sela, identificada por muitos com Petra, no
território dos edomitas, uma cidade situada entre picos rochosos.
Todos os habitantes da terra
são convidados a formar um coro imenso para aclamar o Senhor com alegria e lhe
dar glória.
3. Depois do solene convite
ao cântico (vv. 10-12), o profeta faz entrar em cena o Senhor, representado
como o Deus do êxodo, que libertou o seu povo da escravidão egípcia: “Eis o
Senhor como um herói que vai chegando, como guerreiro” (v. 13). Ele semeia o
terror entre os adversários, que oprimem os outros e cometem a injustiça.
Também o cântico de Moisés
descreve o Senhor durante a travessia do Mar Vermelho como um “herói em
guerra”, pronto para estender a sua direita poderosa e aniquilar os inimigos (cf. Ex 15,3-8). Com o regresso dos
hebreus da deportação da Babilônia está para se cumprir um novo êxodo e os
fiéis devem ter a certeza de que a história não está entregue ao destino, ao
caos, ou às potências opressoras: a última palavra compete ao Deus justo e
forte. Cantava já o salmista: “Prestai-nos auxílio na angústia, porque é vão
qualquer socorro humano” (Sl 59,13).
4. Tendo entrado em cena, o
Senhor fala e as suas palavras veementes falam de juízo e salvação (vv. 14-16).
Ele começa por recordar que “durante muito tempo” esteve “em silêncio”, ou
seja, não interveio. O silêncio divino é com frequência, para o justo, motivo
de perplexidade e até de escândalo, como afirma o longo brado de Jó (Jó 3,1-26). Contudo, não se trata de um
silêncio que indica uma ausência, como se a história estivesse abandonada nas
mãos dos perversos e o Senhor permanecesse indiferente e impassível. Na
realidade, aquele silêncio leva a uma reação semelhante à angústia de uma
mulher que está para dar à luz e, ofegante, grita. É o juízo divino sobre o
mal, representado com imagens de aridez, destruição, deserto (v. 15), que tem
como meta um resultado vivo e fecundo.
Com efeito, o Senhor faz
surgir um mundo novo, uma era de liberdade e de salvação. A quem era cego lhe são
abertos os olhos, para que possa gozar da luz resplandecente. O caminho
torna-se plano e a esperança floresce (v. 16), tornando possível continuar a
confiar em Deus e no seu futuro de paz e de felicidade.
5. Todos os dias o crente
deve saber distinguir os sinais da ação divina, mesmo quando ela está escondida
pela passagem, aparentemente monótona e sem meta, do tempo. Como escrevia um apreciado
autor cristão moderno, “a terra está invadida por um êxtase cósmico: existe
nela uma realidade e uma presença eterna que, contudo, normalmente dorme sob o
véu da rotina. A realidade eterna deve revelar-se agora, como numa revelação de
Deus, através de tudo o que existe” (R. Guardini, Sabedoria dos Salmos, Bréscia, 1976, p. 52).
Descobrir com os olhos da fé
esta presença divina no espaço e no tempo, mas também em nós mesmos, é fonte de
esperança e de confiança, mesmo quando o nosso coração está perturbado e
abalado “como se agitam as árvores das florestas impulsadas pelo vento” (Is 7,2). De fato, o Senhor entra
em cena para reger e julgar “o mundo com justiça e todos os povos com verdade”
(cf. Sl 95,13).
71. Louvor ao Senhor por suas maravilhas: Sl 134(135),1-12
09 de abril de 2003
1. A Liturgia
das Laudes, que estamos
seguindo no seu desenvolvimento através das nossas Catequeses, propõe-nos a
primeira parte do Salmo 134, que acabou de ressoar no cântico dos coristas. O
texto revela uma série densa de alusões a outros trechos bíblicos e a atmosfera
que o envolve parece ser pascal. Não é sem motivo que a tradição judaica uniu
este salmo com o seguinte, o 135, considerando o conjunto como o “grande Hallel”, isto é,
o louvor solene e jubiloso que se deve elevar ao Senhor por ocasião da Páscoa.
De fato, o Salmo coloca em
grande relevo o êxodo, com a menção das “chagas” do Egito e com a evocação da
entrada na Terra Prometida. Mas sigamos agora as etapas seguintes, que o Salmo
134 revela no desenvolvimento dos primeiros 12 versículos: é uma reflexão que
queremos transformar em oração.
2. Na abertura, nos deparamos
com o característico convite ao louvor, um elemento dos hinos dirigidos ao
Senhor no Saltério. O apelo a cantar o
“aleluia” é dirigido aos “servos” do Senhor (v.
1), que no original hebraico são apresentados como “ritos” no espaço sagrado do
templo (v. 2), ou seja, na atitude ritual da oração (cf. Sl 133,1-2).
Estão envolvidos no louvor,
antes de tudo, os ministros do culto, sacerdotes e levitas, que vivem e
trabalham nos “átrios de Deus” (v. 2).
Contudo, a estes “servos do Senhor” são associados espiritualmente todos os fiéis.
De fato, imediatamente a seguir é mencionada a eleição de todo o Israel para
que seja aliado e testemunha do amor do Senhor: “Escolheu para si a Jacó, preferiu
Israel por herança” (v. 4). Nesta perspectiva, celebram-se duas qualidades
fundamentais de Deus: ele é “bom”, ele é “amável” [seu “nome” é “suave”] (v. 3). O vínculo que existe entre nós e o
Senhor está marcado pelo amor, pela intimidade, pela adesão jubilosa.
3. Depois do convite ao
louvor, o salmista prossegue com uma solene profissão de fé, que começa com a
expressão típica “Eu sei”, isto é, eu reconheço, eu creio (v. 5). São dois os
artigos de fé proclamados por um solista em nome de todo o povo, reunido em
assembleia litúrgica. Antes de tudo, se exalta a obra de Deus em todo o
universo: Ele é por excelência o Senhor da criação: “Ele faz tudo quanto lhe
agrada, nas alturas dos céus e na terra” (v. 6). Domina também os mares e todos
os abismos que são o emblema da confusão, das energias negativas, das
limitações e do nada.
É sempre o Senhor quem forma
as nuvens, os relâmpagos, a chuva e os ventos, recorrendo aos seus
“reservatórios” (v. 7). Com efeito, o homem antigo do Oriente Próximo imaginava
que os fatores climáticos estivessem conservados em recipientes especiais,
semelhantes a cofres celestes, onde Deus os ia buscar para distribuí-los na
terra.
4. Outro componente da
profissão de fé refere-se à história da salvação. O Deus criador é reconhecido
agora como o Senhor redentor, recordando os acontecimentos fundamentais da
libertação de Israel da escravidão egípcia. O salmista cita antes de tudo o
“flagelo” dos primogênitos (cf. Ex 12,29-30), que resume todos os “sinais
e prodígios” realizados pelo Deus libertador durante a epopeia do êxodo (vv. 8-9).
Imediatamente a seguir desfilam na recordação as clamorosas vitórias que
permitiram que Israel vencesse as dificuldades e os obstáculos encontrados no
seu caminho (vv. 10-11). Por fim, eis que se apresenta no horizonte a terra
prometida, que Israel recebe “em herança” do Senhor (v. 12).
Pois bem, todos estes sinais
de aliança que serão mais amplamente professados no Salmo seguinte, o 135,
confirmam a verdade fundamental, proclamada no primeiro mandamento do Decálogo.
Deus é único e é pessoa que realiza e fala, ama e salva: “Eu bem sei que o
Senhor é tão grande, que é maior do que todos os deuses” (v. 5; cf. Ex 20,2-3; Sl 94,3).
5. Na esteira desta
profissão de fé, também nós elevamos o nosso louvor a Deus. O Papa São Clemente
I na sua Carta aos Coríntios faz-nos este convite: “Olhemos para o
Pai e Criador de todo o universo. Afeiçoemo-nos aos dons e benefícios da paz,
magníficos e sublimes. Contemplemo-lo com o pensamento e olhemos com os olhos
da alma a sua grande bondade! Consideremos como é imparcial em relação a todas
as criaturas. Os céus que se movem segundo a sua ordem obedecem-lhe na
harmonia. O dia e a noite realizam o curso por Ele estabelecido e não são
impedimento um para o outro. O sol e a lua e os coros das estrelas segundo a sua
direção movem-se harmoniosamente, sem desvios nas órbitas que lhe foram
destinadas. A terra, fecunda pela sua vontade, produz alimento abundante para
os homens, para as feras e para todos os animais que vivem nela, sem relutância
e sem nada mudar dos seus ordenamentos” (19, 2-20, 4: Os Padres Apostólicos, Roma, 1984, pp. 62-63). Clemente I
conclui observando: “O Criador e Senhor do universo dispôs que todas estas
coisas acontecessem na paz e na concórdia, bondoso para com tudo e, de modo
particular, para conosco que recorremos à sua piedade por intercessão de nosso
Senhor Jesus Cristo. A Ele seja dada honra e glória por todos os séculos. Amém”
(20, 11-12: ibid., p. 63).
"Ele deu sua terra em herança, em herança a seu povo, Israel" (Sl 134,12) (Passagem do Jordão com a arca da aliança - Benjamim West) |
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