quinta-feira, 8 de julho de 2021

Catequeses sobre os Salmos (24): Laudes da segunda-feira da IV semana

Os salmos e o cântico das Laudes da segunda-feira da IV semana do Saltério foram apresentados pelo Papa João Paulo II em sua série de Catequeses nos dias 26 de março (Sl 89), 02 de abril (Is 42,10-16) e 09 de abril de 2003 (Sl 134).

69. O esplendor do Senhor esteja sobre nós: Sl 89(90),1-17
26 de março de 2003

1. Os versículos que agora ressoaram aos nossos ouvidos e aos nossos corações constituem uma meditação sábia que tem, contudo, também uma entoação de súplica. De fato, o orante do Salmo 89 coloca no centro da sua oração um dos temas mais explorados da filosofia, mais cantados pela poesia, mais sentidos pela experiência da humanidade de todos os tempos e de todas as regiões do nosso planeta: a caducidade humana e a fluência do tempo.
Pensamos em certas páginas inesquecíveis do Livro de Jó nas quais é focada a nossa fragilidade. De fato, nós somos como “os que habitam moradas de barro e que têm sua origem no pó! São esmagados como um verme, entre a noite e a manhã são aniquilados. Desaparecem para sempre e ninguém se recorda deles” ( 4,20-21). A nossa vida na terra é “como uma sombra” ( 8,9). É ainda Jó quem confessa: “os meus dias passaram mais rápidos que um corcel, fugiram sem terem visto a felicidade. Passaram como barcas de junco. Como a águia que se precipita sobre a presa” ( 9,25-26).

2. No começo do seu cântico, que se parece com uma elegia (Sl 89,2-6), o salmista opõe com insistência a eternidade de Deus ao tempo efêmero do homem. Eis a declaração mais explícita: “Mil anos para vós são como ontem, qual vigília de uma noite que passou” (v. 4).
Como consequência do pecado original, de uma ordem divina, o homem volta a cair no pó do qual foi tirado, como já se afirma na narração do Gênesis: “Recorda-te que és pó e em pó te tornarás!” (Gn 3,19; cf. 2,7). O Criador, que dá forma em toda a sua beleza e complexidade à criatura humana, é também aquele que “reduz o homem ao pó” (Sl 89,3). E “pó” na linguagem bíblica é expressão simbólica também da morte, do inferno, do silêncio sepulcral.

3. Nesta súplica é forte o sentido da limitação humana. A nossa existência tem a fragilidade da erva que brota ao alvorecer; imediatamente ouve o barulho da foice que a reduz a um feixe de erva. Muito depressa, o viço da vida é substituído pela aridez da morte (vv. 5-6; cfIs 40,6-7;  14,1-2; Sl 102,14-16).
Como acontece com frequência no Antigo Testamento, a esta debilidade radical o salmista associa o pecado: existe em nós a limitação, mas também a culpa. Por isso, a cólera e o juízo do Senhor parecem ameaçar também a nossa existência: “Por vossa ira perecemos realmente, vosso furor nos apavora e faz tremer; pusestes nossa culpa à nossa frente... Em vossa ira se consomem nossos dias” (vv. 7-9).

"Ensinai-nos a contar os nossos dias, e dai ao nosso coração sabedoria!" (Sl 89,12)
(Mosaico de Cristo, Senhor do tempo, ladeado pelos doze meses do ano - Catedral de Aosta)

4. Com o aparecimento do novo dia, a Liturgia das Laudes desperta-nos, com este salmo, das nossas ilusões e do nosso orgulho. A vida humana é limitada: “Pode durar setenta anos nossa vida, os mais fortes talvez cheguem a oitenta” afirma o orante. Além disso, o passar das horas, dos dias e dos meses é marcado pela “ilusão e sofrimento” (v. 10) e os mesmos anos revelam-se ser semelhantes a “um sopro” (v. 9).
Eis, então, a grande lição: o Senhor ensina-nos a “contar os nossos dias” porque, aceitando-os com realismo sadio, alcançaremos a sabedoria do coração (v. 12). Mas o orante pede a Deus algo mais: a sua graça ampare e dê alegria aos nossos dias, apesar de serem escassos e marcados pelas provações. Faça com que saboreemos a esperança, mesmo se o passar do tempo parece arrastar-nos. Só a graça do Senhor pode dar consistência e perenidade às nossas ações quotidianas: “Que a bondade do Senhor e nosso Deus repouse sobre nós e nos conduza! Tornai fecundo, ó Senhor, nosso trabalho, fazei dar frutos o labor de nossas mãos!” (v. 17).
Pedimos a Deus com a oração que um reflexo da eternidade penetre a nossa vida breve e as nossas ações. Com a presença da graça divina em nós, uma luz brilhará com o passar dos dias, a miséria se tornará glória, o que parece estar privado de sentido adquirirá significado.

5. Concluímos a nossa reflexão sobre o Salmo 89 deixando a palavra à antiga tradição cristã, que comenta o Saltério tendo como base a figura gloriosa de Cristo. Assim, para o escritor cristão Orígenes, no seu Tratado sobre os Salmos, que chegou até nós com a tradução latina de São Jerônimo, é a Ressurreição de Cristo que nos dá a possibilidade, pressentida pelo salmista, de “exultar de alegria todo o dia” (v. 14). E isto porque a Páscoa de Cristo é a fonte da nossa vida para além da morte: “Depois de nos termos alegrado com a Ressurreição de nosso Senhor, mediante a qual já acreditamos que fomos redimidos e que um dia também nós ressuscitaremos, agora, transcorrendo na alegria os dias da nossa vida que ainda nos falta viver, exultamos por esta confiança, e com hinos e cânticos espirituais louvamos a Deus através de Jesus Cristo, nosso Senhor” (Orígenes-Jerônimo, 74 homilias sobre o Livro dos Salmos, Milão, 1993, p. 652).

70. Hino ao Senhor vencedor e salvador: Is 42,10-16
02 de abril de 2003

1. No livro que tem o nome do profeta Isaías, os estudiosos identificaram a presença de vozes diferentes, todas colocadas sob o patrocínio do grande profeta que viveu no século VIII a. C.. É o caso do vigoroso hino de alegria e de vitória que agora foi proclamado como parte da Liturgia das Laudes da IV semana. Os exegetas o relacionam com o chamado Segundo Isaías, um profeta que viveu no século VI a. C., no tempo da vinda dos hebreus do exílio da Babilônia. O hino abre com um apelo a “cantar ao Senhor um canto novo” (v. 10), precisamente como acontece noutros Salmos (cf. Sl 95,1; 97,1).
A “novidade” do cântico para o qual o profeta convida inspira-se certamente na abertura do horizonte da liberdade, como mudança radical na história de um povo que conheceu a opressão e a permanência em terra estrangeira (cf. Sl 136).

2. A “novidade” tem com frequência na Bíblia o sabor de uma realidade perfeita e definitiva. É quase o sinal do começo de uma era de plenitude salvífica que sela a história atormentada da humanidade. O cântico de Isaías apresenta esta nobre tonalidade, que se adapta bem à oração cristã.
O mundo, na sua globalidade que inclui a terra, o mar, as ilhas, os desertos e as cidades (vv. 10-12), é convidado o elevar ao Senhor um “canto novo”. Todo o espaço está envolvido com os seus extremos confins horizontais, que compreendem também o desconhecido, e com a sua dimensão vertical, que parte da planície deserta, onde se encontram as tribos nômades de Cedar (cf. Is 21,16-17), e sobe até os montes: ali se pode colocar a cidade de Sela, identificada por muitos com Petra, no território dos edomitas, uma cidade situada entre picos rochosos.
Todos os habitantes da terra são convidados a formar um coro imenso para aclamar o Senhor com alegria e lhe dar glória.

3. Depois do solene convite ao cântico (vv. 10-12), o profeta faz entrar em cena o Senhor, representado como o Deus do êxodo, que libertou o seu povo da escravidão egípcia: “Eis o Senhor como um herói que vai chegando, como guerreiro” (v. 13). Ele semeia o terror entre os adversários, que oprimem os outros e cometem a injustiça.
Também o cântico de Moisés descreve o Senhor durante a travessia do Mar Vermelho como um “herói em guerra”, pronto para estender a sua direita poderosa e aniquilar os inimigos (cf. Ex 15,3-8). Com o regresso dos hebreus da deportação da Babilônia está para se cumprir um novo êxodo e os fiéis devem ter a certeza de que a história não está entregue ao destino, ao caos, ou às potências opressoras: a última palavra compete ao Deus justo e forte. Cantava já o salmista: “Prestai-nos auxílio na angústia, porque é vão qualquer socorro humano” (Sl 59,13).

4. Tendo entrado em cena, o Senhor fala e as suas palavras veementes falam de juízo e salvação (vv. 14-16). Ele começa por recordar que “durante muito tempo” esteve “em silêncio”, ou seja, não interveio. O silêncio divino é com frequência, para o justo, motivo de perplexidade e até de escândalo, como afirma o longo brado de Jó ( 3,1-26). Contudo, não se trata de um silêncio que indica uma ausência, como se a história estivesse abandonada nas mãos dos perversos e o Senhor permanecesse indiferente e impassível. Na realidade, aquele silêncio leva a uma reação semelhante à angústia de uma mulher que está para dar à luz e, ofegante, grita. É o juízo divino sobre o mal, representado com imagens de aridez, destruição, deserto (v. 15), que tem como meta um resultado vivo e fecundo.
Com efeito, o Senhor faz surgir um mundo novo, uma era de liberdade e de salvação. A quem era cego lhe são abertos os olhos, para que possa gozar da luz resplandecente. O caminho torna-se plano e a esperança floresce (v. 16), tornando possível continuar a confiar em Deus e no seu futuro de paz e de felicidade.

5. Todos os dias o crente deve saber distinguir os sinais da ação divina, mesmo quando ela está escondida pela passagem, aparentemente monótona e sem meta, do tempo. Como escrevia um apreciado autor cristão moderno, “a terra está invadida por um êxtase cósmico: existe nela uma realidade e uma presença eterna que, contudo, normalmente dorme sob o véu da rotina. A realidade eterna deve revelar-se agora, como numa revelação de Deus, através de tudo o que existe” (R. Guardini, Sabedoria dos Salmos, Bréscia, 1976, p. 52).
Descobrir com os olhos da fé esta presença divina no espaço e no tempo, mas também em nós mesmos, é fonte de esperança e de confiança, mesmo quando o nosso coração está perturbado e abalado “como se agitam as árvores das florestas impulsadas pelo vento” (Is 7,2). De fato, o Senhor entra em cena para reger e julgar “o mundo com justiça e todos os povos com verdade” (cf. Sl 95,13).

71. Louvor ao Senhor por suas maravilhas: Sl 134(135),1-12
09 de abril de 2003

1. A Liturgia das Laudes, que estamos seguindo no seu desenvolvimento através das nossas Catequeses, propõe-nos a primeira parte do Salmo 134, que acabou de ressoar no cântico dos coristas. O texto revela uma série densa de alusões a outros trechos bíblicos e a atmosfera que o envolve parece ser pascal. Não é sem motivo que a tradição judaica uniu este salmo com o seguinte, o 135, considerando o conjunto como o “grande Hallel, isto é, o louvor solene e jubiloso que se deve elevar ao Senhor por ocasião da Páscoa.
De fato, o Salmo coloca em grande relevo o êxodo, com a menção das “chagas” do Egito e com a evocação da entrada na Terra Prometida. Mas sigamos agora as etapas seguintes, que o Salmo 134 revela no desenvolvimento dos primeiros 12 versículos: é uma reflexão que queremos transformar em oração.

2. Na abertura, nos deparamos com o característico convite ao louvor, um elemento dos hinos dirigidos ao Senhor no Saltério. O apelo a cantar o aleluia é dirigido aos “servos” do Senhor (v. 1), que no original hebraico são apresentados como “ritos” no espaço sagrado do templo (v. 2), ou seja, na atitude ritual da oração (cf. Sl 133,1-2).
Estão envolvidos no louvor, antes de tudo, os ministros do culto, sacerdotes e levitas, que vivem e trabalham nos “átrios de Deus” (v. 2). Contudo, a estes “servos do Senhor” são associados espiritualmente todos os fiéis. De fato, imediatamente a seguir é mencionada a eleição de todo o Israel para que seja aliado e testemunha do amor do Senhor: “Escolheu para si a Jacó, preferiu Israel por herança” (v. 4). Nesta perspectiva, celebram-se duas qualidades fundamentais de Deus: ele é “bom”, ele é “amável” [seu “nome” é “suave”] (v. 3). O vínculo que existe entre nós e o Senhor está marcado pelo amor, pela intimidade, pela adesão jubilosa.

3. Depois do convite ao louvor, o salmista prossegue com uma solene profissão de fé, que começa com a expressão típica “Eu sei”, isto é, eu reconheço, eu creio (v. 5). São dois os artigos de fé proclamados por um solista em nome de todo o povo, reunido em assembleia litúrgica. Antes de tudo, se exalta a obra de Deus em todo o universo: Ele é por excelência o Senhor da criação: “Ele faz tudo quanto lhe agrada, nas alturas dos céus e na terra” (v. 6). Domina também os mares e todos os abismos que são o emblema da confusão, das energias negativas, das limitações e do nada.
É sempre o Senhor quem forma as nuvens, os relâmpagos, a chuva e os ventos, recorrendo aos seus “reservatórios” (v. 7). Com efeito, o homem antigo do Oriente Próximo imaginava que os fatores climáticos estivessem conservados em recipientes especiais, semelhantes a cofres celestes, onde Deus os ia buscar para distribuí-los na terra.

4. Outro componente da profissão de fé refere-se à história da salvação. O Deus criador é reconhecido agora como o Senhor redentor, recordando os acontecimentos fundamentais da libertação de Israel da escravidão egípcia. O salmista cita antes de tudo o “flagelo” dos primogênitos (cf. Ex 12,29-30), que resume todos os “sinais e prodígios” realizados pelo Deus libertador durante a epopeia do êxodo (vv. 8-9). Imediatamente a seguir desfilam na recordação as clamorosas vitórias que permitiram que Israel vencesse as dificuldades e os obstáculos encontrados no seu caminho (vv. 10-11). Por fim, eis que se apresenta no horizonte a terra prometida, que Israel recebe “em herança” do Senhor (v. 12).
Pois bem, todos estes sinais de aliança que serão mais amplamente professados no Salmo seguinte, o 135, confirmam a verdade fundamental, proclamada no primeiro mandamento do Decálogo. Deus é único e é pessoa que realiza e fala, ama e salva: “Eu bem sei que o Senhor é tão grande, que é maior do que todos os deuses” (v. 5; cf. Ex 20,2-3; Sl 94,3).

5. Na esteira desta profissão de fé, também nós elevamos o nosso louvor a Deus. O Papa São Clemente I na sua Carta aos Coríntios faz-nos este convite: “Olhemos para o Pai e Criador de todo o universo. Afeiçoemo-nos aos dons e benefícios da paz, magníficos e sublimes. Contemplemo-lo com o pensamento e olhemos com os olhos da alma a sua grande bondade! Consideremos como é imparcial em relação a todas as criaturas. Os céus que se movem segundo a sua ordem obedecem-lhe na harmonia. O dia e a noite realizam o curso por Ele estabelecido e não são impedimento um para o outro. O sol e a lua e os coros das estrelas segundo a sua direção movem-se harmoniosamente, sem desvios nas órbitas que lhe foram destinadas. A terra, fecunda pela sua vontade, produz alimento abundante para os homens, para as feras e para todos os animais que vivem nela, sem relutância e sem nada mudar dos seus ordenamentos” (19, 2-20, 4: Os Padres Apostólicos, Roma, 1984, pp. 62-63). Clemente I conclui observando: “O Criador e Senhor do universo dispôs que todas estas coisas acontecessem na paz e na concórdia, bondoso para com tudo e, de modo particular, para conosco que recorremos à sua piedade por intercessão de nosso Senhor Jesus Cristo. A Ele seja dada honra e glória por todos os séculos. Amém” (20, 11-12: ibid., p. 63).

"Ele deu sua terra em herança, em herança a seu povo, Israel" (Sl 134,12)
(Passagem do Jordão com a arca da aliança - Benjamim West)

Fonte: Santa Sé (26 de março, 02 de abril e 09 de abril de 2003).

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