Dando
continuidade às suas Catequeses sobre os salmos e cânticos das Laudes, o Papa
João Paulo II refletiu sobre os textos da terça-feira da IV semana do Saltério nos
dias 30 de abril (Sl 100), 14 de maio (Dn 3,26-27.29.34-41) e 21 de maio de
2003 (Sl 143).
72. Propósitos de um rei justo: Sl 100(101),1-8
30 de abril de 2003
1. Depois das duas catequeses
dedicadas ao significado das celebrações pascais, retomamos a nossa reflexão
sobre a Liturgia das Laudes. Ela
propõe-nos o Salmo 100, que acabamos de ouvir, para a terça-feira da IV semana.
Trata-se de uma meditação
que traça o retrato do homem político ideal, cujo modelo de vida deveria ser o
agir divino no governo do mundo: um agir regido por uma integridade moral
perfeita e por um compromisso enérgico contra as injustiças. Este texto é
proposto agora de novo como um programa de vida para o fiel que começa o seu
dia de trabalho e de relações com o próximo. É um programa de “amor e justiça”
(v. 1), que se desenvolve em duas grandes orientações morais.
2. A primeira é chamada
“caminho da inocência” e está orientada para a exaltação das opções pessoais de
vida, feitas “na pureza do coração”, isto é, com uma consciência perfeitamente
reta (v. 2).
Por um lado, fala-se de
maneira positiva das grandes virtudes morais que tornam luminosa a “casa”, ou
seja, a família do justo (v. 2): a sabedoria que ajuda a compreender bem e a
julgar; a inocência que é pureza de coração e de vida; e, por fim, a integridade
da consciência que não tolera compromissos com o mal.
Por outro lado, o salmista
introduz um compromisso negativo. Trata-se da luta contra qualquer forma de
maldade e de injustiça, de maneira que se possa afastar da própria casa e das
opções pessoais qualquer forma de perversão da ordem moral (vv. 3-4).
Como escreve São Basílio,
grande Padre da Igreja do Oriente, na sua obra O Batismo, “nem sequer o prazer momentâneo que
possa contaminar o pensamento deve perturbar aquele que se configurou com Cristo
numa morte semelhante à sua” (Obras ascéticas, Turim, 1980, p. 548).
3. A segunda orientação é
desenvolvida na parte final do Salmo (vv. 5-8) e esclarece a importância dos
dotes mais tipicamente públicos e sociais. Também neste caso se enumeram os
pontos fundamentais de uma vida que deseja recusar o mal com rigor e decisão.
Antes de tudo a luta contra
a calúnia e a denúncia secreta, um compromisso básico numa sociedade com
tradições orais, que atribuía particular relevo à função da palavra nas
relações interpessoais. O rei, que exerce também a função de juiz, anuncia que
nesta luta usará a mais rigorosa severidade: exterminará o caluniador (v. 5).
Depois, é recusada qualquer forma de arrogância e soberba; são recusados a
companhia e os conselhos de quem age sempre com o engano e com a mentira. Por
fim, o rei declara de que forma escolherá os seus “servos” (v. 6), ou seja, os
seus ministros. Terá a preocupação de escolhê-los entre “os fiéis desta terra”
(ibid.). Deseja rodear-se de povo
íntegro e recusar o contato com “aquele que mente e que faz injustiça” (v. 7).
"Eu quero cantar o amor e a justiça" (Sl 100,1) (Cristo entre a misericórdia e a justiça - Pietro Perugino) |
4. O último versículo do Salmo
é particularmente enérgico. Pode causar perplexidade no leitor cristão: “Em
cada manhã haverei de acabar com todos os ímpios que vivem na terra; farei
suprimir da cidade de Deus a todos aqueles que fazem o mal” (v. 8). Mas é
importante recordar-se de uma coisa: aquele que assim fala não é um indivíduo
qualquer, mas o rei, responsável supremo da justiça no país. Com esta frase ele
exprime de maneira hiperbólica o seu implacável compromisso de luta contra a
criminalidade, um compromisso obrigatório, partilhado por todos os que têm
responsabilidades na gestão pública.
Evidentemente não compete a
cada cidadão esta tarefa de justiceiro! Por isso, se cada um dos fiéis quer aplicar
a si mesmo a frase do Salmo, deve fazê-lo em sentido analógico, isto é,
decidindo extirpar todas as manhãs do próprio coração e do seu comportamento a erva daninha da corrupção e
da violência, da perversão e da maldade, assim como qualquer forma de egoísmo e
de injustiça.
5. Concluímos a nossa
meditação retomando o primeiro versículo do Salmo: “Eu quero cantar o amor e a
justiça...”. Um antigo escritor cristão, Eusébio de Cesareia, nos seus Comentários aos Salmos, realça a primazia do amor sobre a justiça
extremamente necessária: “Celebrarei a tua misericórdia e o teu juízo,
mostrando a maneira que te é habitual: não, primeiro julgar e depois ter
misericórdia, mas primeiro ter misericórdia e depois julgar, e com clemência e
misericórdia pronunciar sentenças. Para isto, eu mesmo, ao exercer a
misericórdia e o juízo em relação ao próximo, ouso aproximar-me de ti para,
contigo, cantar e honrar. Por conseguinte, consciente de que é preciso agir
assim, conservo os meus caminhos imaculados e inocentes, persuadido de que
desta forma os meus cânticos te serão agradáveis, por meio das boas obras” (PG 23, 1241).
73. Oração de Azarias na fornalha: Dn 3,26-27.29.34-41
14 de maio de 2003
1. O cântico que agora foi
entoado pertence ao texto grego do Livro
de Daniel e apresenta-se como
súplica elevada ao Senhor com fervor e sinceridade. É a voz de Israel que está
vivendo a difícil vicissitude do exílio e da diáspora entre os povos. De fato,
quem entoa o cântico é um hebreu, Azarias, inserido no horizonte babilônico no
tempo do exílio de Israel, depois da destruição de Jerusalém por obra do rei
Nabucodonosor.
Azarias, com outros dois
fiéis hebreus, está “no meio do fogo” (Dn 3,25), como um mártir
pronto a enfrentar a morte para não trair a sua consciência e a sua fé. Foi
condenado à morte por se ter recusado a adorar a estátua imperial.
2. A perseguição é
considerada por este cântico uma pena justa com que Deus purifica o povo
pecador: “Foi por efeito de um juízo equitativo que nos infligistes tudo isto -confessa
Azarias - por causa dos nossos pecados” (v. 28). Estamos assim na presença de
uma oração penitencial, que não termina no desencorajamento ou no medo, mas na
esperança.
Sem dúvida, o ponto de
partida é amargo, a desolação é grave, a prova é pesada, o juízo divino sobre o
pecado do povo é severo: “Já não temos mais nem chefe nem profeta; não há mais
nem oblações nem holocaustos, não há lugar de oferecer-vos as primícias, que
nos façam alcançar misericórdia!” (v. 38). O templo de Sião está destruído e
parece que o Senhor já não habita no meio do seu povo.
3. Na situação trágica do
presente, a esperança procura a sua raiz no passado, ou seja, nas promessas
feitas aos pais. Por conseguinte, remonta-se a Abraão, Isaac e Jacó (v. 35),
aos quais Deus tinha garantido bênçãos e fecundidade, terra e grandeza, vida e
paz. Deus é fiel e nunca faltará às suas promessas. Mesmo se a justiça exige
que Israel seja punido devido às suas culpas, permanece a certeza de que a
última palavra será a da misericórdia e do perdão. Já o profeta Ezequiel referia
estas palavras do Senhor: “Será que tenho prazer na morte do ímpio? - oráculo
do Senhor Deus. Não desejo antes que se ele se converta e viva? (...) Pois Eu
não me comprazo com a morte de quem quer que seja” (Ez 18,23.32). Sem dúvida,
agora é o tempo da humilhação: “Eis, Senhor, mais reduzidos nós estamos do que
todas as nações que nos rodeiam; por nossos crimes nos humilham em toda a terra” (v.
37). Contudo, a expectativa não é a morte, mas uma vida nova, depois da
purificação.
4. O orante aproxima-se do
Senhor oferecendo-lhe o sacrifício mais precioso e agradável: o “espírito
abatido” e o “ânimo contrito” (v. 39; cf. Sl 50,19). É precisamente o centro da
existência, o eu renovado pela prova é oferecido a Deus, para que o receba em sinal
de conversão e de consagração ao bem.
Com esta disposição interior
acaba o receio, terminam a confusão e a vergonha (v. 40), e o espírito abre-se
à confiança num futuro melhor, quando se realizarem as promessas feitas aos
pais.
A frase final da súplica de
Azarias, do modo como é proposta pela Liturgia, é de grande impacto emotivo e
de profunda intensidade espiritual: “De coração vos seguiremos desde agora, com
respeito procurando a vossa face!” (v. 41). Tem-se o eco de outro Salmo: “O
meu coração pressente os teus dizeres: ‘Procurai a minha face!’ É a tua face,
Senhor, que eu procuro” (Sl 26,8).
Já chegou o momento em que o
nosso caminhar está abandonando as vias perversas, as veredas sinuosas e as
estradas tortuosas (cf. Pr 2,15). Encaminhamo-nos para seguir o
Senhor, estimulados pelo desejo de encontrar o seu rosto. E Ele não está irado,
mas cheio de amor, como se revelou no pai misericordioso em relação ao filho
pródigo (cf. Lc 15,11-32).
5. Concluímos a nossa
reflexão sobre o cântico de Azarias com a oração escrita por São Máximo, o
Confessor, no seu Discurso
ascético (37-39), para o qual
se inspira precisamente no texto do profeta Daniel: “Pelo teu nome, Senhor, não
nos abandones para sempre, não disperses a tua aliança e não afastes a tua
misericórdia de nós (cf. Dn 3,34-35) pela tua piedade, Pai
nosso que estás no céu, pela compaixão do teu Filho unigênito e pela
misericórdia do teu Santo Espírito... Ouve a nossa súplica, ó Senhor, e não nos
abandones para sempre. Nós não confiamos nas nossas obras de justiça, mas na
tua piedade, mediante a qual conservas a nossa estirpe... Não desprezes a nossa
indignidade, mas tem compaixão de nós segundo a tua grande piedade, e segundo a
plenitude da tua misericórdia purifica-nos dos nossos pecados, para que, sem
condenações, nos aproximemos da tua santa glória e sejamos considerados dignos
da proteção do teu Filho Unigênito”.
São Máximo conclui: “Sim,
ó Senhor, Pai Onipotente, atende a nossa súplica, porque nós não
reconhecemos nenhum outro além de ti” (Humanidade e divindade de Cristo, Roma, 1979, pp. 51-52).
74. Oração pela vitória e pela paz: Sl 143(144),1-10
21 de maio de 2003
1. Ouvimos agora a primeira
parte do Salmo 143. Ela tem as características de um hino real, enriquecido com
outros textos bíblicos, de forma a dar vida a uma nova composição orante (cf. Sl 8,5; 17,8-15; 32,2-3; 38,6-7).
Quem fala em primeira pessoa é o próprio rei Davi, que reconhece a origem
divina dos seus sucessos.
O Senhor é representado com
imagens marciais, segundo o antigo uso simbólico: de fato, é visto como um
instrutor militar (v. 1), uma fortaleza invencível, um escudo protetor, um
triunfador (v. 2). Desta maneira, pretende-se exaltar a personalidade de Deus,
que se compromete contra o mal da história: Ele não é um poder obscuro ou uma
espécie de destino, nem um soberano impassível e indiferente em relação às
vicissitudes humanas. As citações e as tonalidades desta celebração divina sentem
o efeito do hino de Davi conservado no Salmo 17 e no capítulo 22 do Segundo Livro de Samuel.
2. Diante do poder divino, o
rei hebraico se reconhece frágil e débil, como o são todas as criaturas
humanas. Para exprimir esta sensação, o orante real recorre a duas frases
presentes nos Salmos 8 e 38, e relaciona-as conferindo-lhes uma nova e mais
intensa eficiência: “Que é o homem, Senhor, para vós? Por que dele cuidais
tanto assim, e no filho do homem pensais? Como o sopro de vento é o homem, os
seus dias são sombra que passa” (vv.
3-4). É realçada aqui a firme convicção de que nós somos inconsistentes,
semelhantes a um sopro de vento, se o Criador não nos conserva vivos, Ele que,
como diz Jó, “tem em suas mãos a alma de cada ser vivo e o sopro de cada vida
humana” (Jó 12,10).
Só com o apoio divino
podemos superar os perigos e as dificuldades que nos acompanham todos os dias
da nossa vida. Só contando com a ajuda do céu poderemos comprometer-nos, como o
antigo rei de Israel, em libertar-nos de qualquer forma de opressão e a
caminhar para a liberdade.
3. A intervenção divina é
apresentada com as tradicionais imagens cósmicas e históricas, com a finalidade
de ilustrar o domínio divino sobre a criação e sobre as vicissitudes humanas.
Eis, então, montes que fumegam em erupções vulcânicas (v. 5). Eis que os raios parecem
lanças atiradas pelo Senhor, destinadas a aniquilar o mal (v. 6). Por fim, eis
as “grandes águas” que, na linguagem bíblica, são símbolo da desordem, do mal e
do nada, em síntese, das presenças negativas na história (v. 7). A estas
imagens cósmicas associam-se outras de índole histórica: são “os inimigos” (v.
6), os “estranhos” (v. 7), os mentirosos e quem jura falso, isto é, os
idólatras (v. 8).
Trata-se de uma forma muito
concreta e oriental para representar a maldade, as perversões, a opressão e a
injustiça: realidades tremendas das quais o Senhor nos liberta, enquanto nos
encontramos no mundo.
4. O Salmo 143, que a Liturgia
das Laudes nos propõe,
termina com um breve hino de agradecimento (vv. 9-10). Ele surge da certeza de
que Deus não nos abandonará na luta contra o mal. Por isso o orante entoa uma
melodia, acompanhando-a com a sua harpa de dez cordas, com a certeza de que o
Senhor “dá a vitória aos reis [ao seu
consagrado] e salva seu servo Davi” (vv. 9-10).
A palavra “consagrado” em
hebraico é “Messias”: por conseguinte, estamos na presença de um salmo real que
se transforma, já no uso litúrgico do antigo Israel, num cântico messiânico.
Nós, cristãos, o repetimos tendo o olhar fixo em Cristo, que nos liberta de
qualquer forma de mal e nos ampara na batalha contra os perversos poderes
escondidos. Essa batalha, de fato, não é “contra a carne e o sangue, mas contra
os Principados, Potestades, contra os Dominadores deste mundo de trevas, contra
os espíritos malignos espalhados pelos ares” (Ef 6,12).
5. Concluímos então com uma
consideração que nos é sugerida por São João Cassiano, monge dos séculos IV-V,
que viveu na Gália. Na sua obra A
Encarnação do Senhor, ele, inspirando-se no versículo 5 do
nosso Salmo - “Senhor, inclinai vossos céus e descei” - vê nestas palavras a
expectativa da entrada de Cristo no mundo.
E continua assim: “O salmista
suplicava que... o Senhor se manifestasse na carne, aparecesse visivelmente no
mundo, fosse assumido visivelmente na glória (cf. 1Tm 3,16) e que finalmente os santos
pudessem ver, com os olhos do corpo, tudo o que eles espiritualmente tinham
previsto” (A Encarnação do Senhor, V,
13, Roma, 1991, pp. 208-209). É deste modo que todos os batizados dão
testemunho, na alegria da fé.
"Sede bendito, Senhor Deus de nossos pais!" (Dn 3,26) Os três Patriarcas: Abraão, "vosso amigo"; Isaac, "vosso servo"; e Jacó, "vosso santo" (Dn 3,35) |
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