Prosseguindo
com a série de Catequeses do Papa João Paulo II sobre os salmos e cânticos da Liturgia das Horas, propomos hoje suas reflexões sobre as Laudes da quinta-feira
da IV semana do Saltério, proferidas nos dias 09 de julho (Sl 142), 16 de julho
(Is 66,10-14a) e 23 de julho de 2003 (Sl 146).
78. Prece na aflição: Sl 142(143),1-11
09 de julho de 2003
1. Acaba de ser proclamado o
Salmo 142, o último dos chamados “Salmos penitenciais”, série de sete súplicas
distribuídas no Saltério (cf. Sl 6; 31; 37; 50; 101; 129; 142). A
tradição cristã utilizou-os todos para invocar do Senhor o perdão dos pecados.
O texto que hoje queremos aprofundar era particularmente caro a São Paulo, que a
partir dele reconheceu uma pecaminosidade radical em cada criatura humana: “Diante
da vossa presença não é justo nenhum dos viventes (ó Senhor)” (v. 2). Esta
frase é assumida pelo Apóstolo como a base do seu ensinamento sobre o pecado e
a graça (cf. Gl 2,16; Rm 3,20).
A Liturgia
das Laudes propõe-nos esta
súplica como um propósito de fidelidade e pedido de socorro divino no despontar
do dia. Com efeito, o Salmo faz-nos dizer a Deus: “Fazei-me cedo sentir vosso
amor, porque em vós coloquei a esperança” (v. 8).
2. O Salmo começa com uma
intensa e insistente súplica dirigida a Deus, fiel às promessas de salvação
oferecidas ao povo (v. 1). O orante reconhece que não tem qualquer mérito para
fazer valer e, portanto, pede humildemente a Deus que não o julgue (v. 2).
Em seguida, ele fala sobre a
situação dramática, semelhante a um pesadelo mortal, na qual se está debatendo:
o inimigo, que é a representação do mal da história e do mundo, levou-o até ao
limiar da morte. Com efeito, eis que está prostrado no pó da terra, que já é
uma imagem do sepulcro; eis as trevas, que constituem uma negação da luz, sinal
divino de vida; eis, por fim, “aqueles que há muito morreram” (v. 3), ou seja,
os que morreram para sempre, entre os quais ele parece ter sido relegado.
3. A própria existência do salmista
está ameaçada: já lhe falta a respiração e o seu coração parece um bloco de
gelo, incapaz de continuar a bater (v. 4). O fiel, prostrado por terra e
espezinhado, só tem as mãos livres, que se elevam para o céu num gesto que é,
ao mesmo tempo, de pedido de ajuda e de procura de socorro (v. 6).
Efetivamente, o seu pensamento corre ao passado, em que Deus realizou prodígios
(v. 5).
Esta centelha de esperança
aquece o gelo do sofrimento e da provação, em que o orante se sente mergulhado,
prestes a desfalecer (v. 7). Em todo o caso, a tensão é sempre forte; mas um
raio de luz parece vislumbrar-se no horizonte. Assim, passamos à outra parte do
Salmo (vv. 7-11).
"Vossa vontade ensinai-me a cumprir..." (Sl 142,10) (Mosaico da Agonia de Cristo no Getsêmani - Basílica de Lourdes) |
4. Ela começa com uma nova e
urgente súplica. Sentindo que a vida quase lhe escapa, o fiel lança o seu
clamor a Deus: “Escutai-me depressa, Senhor, o espírito em mim desfalece!” (v.
7). Aliás, ele teme que Deus tenha escondido o seu rosto, afastando-se,
abandonando-o e deixando sozinha a sua criatura.
O desaparecimento do rosto
divino faz com que o homem caia na desolação, aliás, na própria morte, porque o
Senhor é a fonte da vida. É precisamente neste tipo de fronteira extrema que
floresce a confiança no Deus que não abandona. O orante multiplica as suas
invocações, sustentando-as com declarações de confiança no Senhor: “Porque em vós
coloquei a esperança... a vós eu elevo a minha alma... sois meu refúgio... sois
o meu Deus e Senhor”. Ele pede para ser salvo dos seus inimigos (vv. 8-10) e
libertado da angústia (v. 11), mas faz continuamente um pedido, que manifesta
uma profunda aspiração espiritual: “Vossa vontade ensinai-me a cumprir, porque
sois o meu Deus e Senhor!” (v. 10a; cf.
vv. 8b.10b). Temos o dever de fazer nosso este pedido admirável. Devemos
compreender que o nosso maior bem é a união da nossa vontade à vontade do nosso
Pai celestial, porque é somente assim que podemos receber em nós todo o seu
amor, que nos traz a salvação e a plenitude da vida. Se não for acompanhada de
um forte desejo de docilidade a Deus, a confiança n’Ele não será autêntica.
O orante está consciente
disto e, por conseguinte, exprime este desejo. Então, a sua é uma verdadeira e
própria confissão de confiança em Deus salvador, que tira da angústia e volta a
dar o gosto da vida, em nome da sua “justiça e clemência” (v. 11), ou seja, da
sua fidelidade amorosa e salvífica. Partindo de uma situação mais angustiante
do que nunca, a oração chegou à esperança, à alegria e à luz, graças a uma
adesão sincera a Deus e à sua vontade, que é uma vontade de amor. Este é o
poder da oração, geradora de vida e de salvação.
5. Fixando o olhar na luz
matutina da bondade (v. 8), São Gregório Magno, no seu comentário aos sete Salmos
penitenciais, descreve desta maneira esse alvorecer de esperança e de júbilo: “É
o dia iluminado por aquele sol verdadeiro que não conhece ocaso, que as nuvens
não tornam tenebroso e que a neblina não obscurece... Quando aparecer Cristo,
nossa vida, e começarmos a ver Deus abertamente, então desaparecerá todo o
vestígio das trevas, esvaecendo-se toda a nuvem da ignorância, dissipando-se
toda a névoa da tentação... Esse será o dia luminoso e maravilhoso, preparado
para todos os eleitos por Aquele que nos tirou do poder das trevas e nos
transferiu para o reino do seu Filho predileto”.
“A manhã desse dia é a
ressurreição futura... Naquela manhã resplandecerá a felicidade dos justos,
aparecerá a glória, se verá a alegria, quando Deus enxugar todas as lágrimas
dos olhos dos santos, quando por fim for destruída a morte, quando os justos
brilharem como o sol no reino do Pai”.
“Naquela manhã, o Senhor
fará experimentar a sua misericórdia... dizendo: ‘Vinde, benditos de meu Pai’ (Mt 25,34). Então, se tornará manifesta a
misericórdia de Deus que, na vida presente, a mente humana não consegue
conceber. Com efeito, para aqueles que o amam, o Senhor preparou aquilo que os
olhos não viram, nem o ouvido ouviu, nem entrou no coração do homem” (PL 79, coll. 649-650).
79. Consolação e alegria na Cidade Santa: Is 66,10-14a
16 de julho de 2003
1. Foi tirado da última
página do Livro de Isaías o hino que acabamos de escutar, um
cântico de alegria dominado pela figura maternal de Jerusalém (v. 11) e, além
disso, pela solicitude amorosa do próprio Deus (v. 13). Os estudiosos da Bíblia
consideram que esta seção final, aberta a um futuro esplêndido e festivo, seja
o testemunho de uma voz posterior, a de um profeta que celebra o renascimento
de Israel depois do intervalo obscuro do exílio na Babilônia. Estamos, pois, no
século VI a. C., dois séculos após a missão de Isaías, o grande profeta sob
cujo nome se encontra toda a obra inspirada.
Nós agora seguiremos o fluir
jubiloso deste breve cântico, que começa com três imperativos que são precisamente
um convite à felicidade: “alegrai-vos”, “exultai” e “tomai parte no seu júbilo”
(v. 10). Trata-se de um fio luminoso que percorre frequentemente as últimas
páginas do Livro de Isaías: os
aflitos de Sião são confortados, coroados e cobertos com o “óleo da alegria” (Is 61,3); o próprio profeta “com grande
alegria rejubila no Senhor, e o seu coração exulta no seu Deus” (Is 61,10); “assim como a esposa faz a
felicidade do seu marido, assim Deus vai alegrar-se” pelo seu povo (Is 62,5). Na página precedente à que
agora é objeto do nosso cântico e da nossa oração, é o próprio Senhor que
participa na felicidade de Israel, que está prestes a nascer como nação: “Antes
se gozará em alegria e felicidade eterna naquelas coisas que vou criar. Olhai,
vou criar uma Jerusalém destinada à alegria, e o seu povo ao júbilo. E
Jerusalém será a minha alegria, e o meu povo o meu júbilo” (Is 65,18-19).
2. A fonte e a razão desta
alegria interior estão na reencontrada vitalidade de Jerusalém, renascida das
cinzas da ruína, que se tinha abatido sobre ela quando o exército babilônico a
demoliu. Com efeito, fala-se do seu “luto”, já deixado para trás.
Como acontece com frequência
em várias culturas, a cidade é representada com imagens femininas, aliás,
maternais. Quando uma cidade está em paz, é semelhante a um seio protegido e
seguro; aliás, é como uma mãe que amamenta os seus filhos com abundância e
ternura (v. 11). Nesta perspectiva, a realidade que a Bíblia chama, com uma
expressão feminina, “a filha de Sião”, ou seja, Jerusalém, volta a ser uma
cidade-mãe que acolhe, nutre e alegra os seus filhos, isto é, os seus habitantes.
Em seguida, sobre este cenário de vida e de ternura desce a Palavra do Senhor,
que tem a tonalidade de uma bênção (vv. 12-14).
3. Deus recorre a outras
imagens ligadas à fecundidade: com efeito, fala de rios e de córregos, ou seja,
de águas que simbolizam a vida, da exuberância da vegetação, da prosperidade da
terra e dos seus habitantes (v. 12). A prosperidade de Jerusalém, a sua “paz” (shalom),
dádiva generosa de Deus, assegurará aos seus filhos uma existência rodeada de
ternura maternal: “Vós sereis amamentados e ao colo carregados e afagados com
carícias” (ibid.) e esta ternura maternal será a ternura do próprio
Deus: “Como a mãe consola o filho, em Sião vou consolar-vos” (v. 13). Assim, o
Senhor recorre à metáfora maternal para descrever o seu amor pelas suas
criaturas.
Também antes, no Livro de Isaías, se lê um
trecho que atribui a Deus um perfil maternal: “Acaso pode uma mãe esquecer-se
do menino que amamenta, não ter carinho pelo fruto das suas entranhas? Ainda
que ela se esquecesse dele, Eu nunca te esqueceria” (Is 49,15). No nosso cântico, as palavras do Senhor, dirigidas a
Jerusalém, terminam por retomar o tema da vitalidade interior, expresso com
outra imagem de fertilidade e de energia: a da relva fresca, imagem aplicada
aos ossos, para indicar o vigor do corpo e da existência (v. 14).
4. Nesta altura, diante da
cidade-mãe, é fácil alargar o nosso olhar a ponto de contemplar o perfil da
Igreja, virgem e mãe fecunda. Terminemos a nossa meditação sobre a Jerusalém
renascida com uma reflexão de Santo Ambrósio, tirada da sua obra As virgens: “A
Santa Igreja é imaculada na sua união marital: fecunda pelos seus partos, é
virgem pela sua castidade, mas mãe pelos filhos que gera. Por conseguinte, nós
nascemos de uma virgem, que concebeu não por obra do homem, mas por obra do
Espírito. Portanto, nascemos de uma virgem, não entre as dores físicas, mas no
meio do júbilo dos anjos. Somos alimentados por uma virgem, não com o leite do
corpo, mas com o leite de que fala o Apóstolo, quando diz ter amamentado, na
idade frágil, o adolescente povo de Deus”.
“Que mulher desposada tem
mais filhos do que a Santa Igreja? Ela é virgem pela santidade que recebe nos
sacramentos e é mãe dos povos. A sua fecundidade é confirmada também pelas
Escrituras, que dizem: ‘São mais numerosos os filhos da desamparada, do que os
da mulher casada’ (Is 54,1; Gl 4,27); a nossa mãe não tem marido, mas
um esposo, porque tanto a Igreja nos povos como a alma nos indivíduos imunes a
qualquer infidelidade, fecundas na vida do espírito sem que faltem ao pudor,
desposam o Verbo de Deus como um esposo eterno” (I, 31: Saemo 14/1, pp.
132-133).
80. Poder e bondade de Deus: Sl 146(147A),1-11
23 de julho de 2003
1. O Salmo que acabamos de
cantar é a primeira parte de uma composição que inclui também o salmo seguinte,
o 147, e que o original hebraico conservou na sua unidade. Foram as antigas
versões grega e latina que dividiram o cântico em dois Salmos diferentes.
O Salmo começa com um convite a louvar a Deus e depois enumera uma longa série de motivos de louvor, todos expressos no presente. Trata-se de atividades de Deus, consideradas características e sempre atuais; mas são de gêneros muito diferentes: algumas se referem às intervenções de Deus na existência humana (vv. 3.6.11), sobretudo em favor de Jerusalém e de Israel (v. 2); outras se referem ao universo criado (v. 4) e mais especialmente à terra com a sua vegetação e com os animais (vv. 8-9).
Por fim, dizendo de quem o
Senhor se apraz, o Salmo convida-nos a ter uma dupla atitude: de temor
religioso e de confiança (v. 11). Nós não estamos abandonados a nós mesmos ou
às energias cósmicas, mas estamos sempre nas mãos do Senhor, devido ao seu
projeto de salvação.
2. Depois do convite festivo
ao louvor (v. 1), o Salmo desenvolve-se em dois movimentos poéticos e
espirituais. No primeiro (vv. 2-6) introduz-se antes de tudo a ação histórica
de Deus, sob a imagem de um construtor que está edificando novamente Jerusalém,
que recuperou a vida depois do exílio na Babilônia (v. 2). Mas este grande
artífice, que é o Senhor, revela-se também como um pai que se inclina
sobre as feridas, interiores e físicas, presentes no seu povo humilhado e
oprimido (v. 3).
Demos espaço a Santo Agostinho que, na Exposição do Salmo 146, feita em Cartago em 412, comentava do seguinte modo a frase: “O Senhor cura todos os que têm o coração atribulado”: “Quem não tem o coração atribulado não é curado... Quem são aqueles de coração atribulado? Os humildes. E os que não atribulam o coração? Os soberbos. Contudo, o coração atribulado é curado, o coração repleto de orgulho é derrubado. Aliás, provavelmente, se é derrubado é precisamente para que, depois da atribulação, possa ser restabelecido, curado... ‘Ele cura os que têm o coração atribulado, e cura as suas rupturas’ (...) Por outras palavras, cura os humildes de coração, os que confessam, que se punem, que julgam com severidade para poder experimentar a sua misericórdia. Eis quem cura. Mas a saúde perfeita será alcançada no fim do presente estado mortal, quando o nosso ser corruptível for revestido de incorruptibilidade e o nosso ser mortal estiver revestido de imortalidade” (5-8: Exposições sobre os Salmos, IV, Roma, 1977, pp. 772-779).
3. Mas a obra de Deus não se manifesta apenas através da cura dos sofrimentos do seu povo. Ele, que circunda os pobres de ternura e cuidados, eleva-se como juiz severo em relação aos soberbos (v. 6). O Senhor da história não permanece indiferente perante a fúria dos prepotentes, que se julgam os únicos árbitros das vicissitudes humanas: Deus reduz ao pó da terra todos aqueles que desafiam o céu com a sua soberba (cf. 1Sm 2,7-8; Lc 1,51-53).
Mas a ação de Deus não se
esgota no seu senhorio sobre a história; Ele é também o rei da criação, todo o
universo responde à sua chamada de Criador. Ele não só pode contar a grande
quantidade das estrelas, mas é capaz também de chamar cada uma pelo nome,
definindo, por conseguinte, a sua natureza e as suas características (v. 4).
Já o profeta Isaías cantava:
“Levantai os olhos ao céu e olhai: quem criou todos estes astros? Aquele
que os conta e os faz marchar como um exército, e a todos chama pelos seus
nomes” (Is 40,26). Por conseguinte,
os “exércitos” do Senhor são as estrelas. O profeta Baruc continuava
assim: “As estrelas brilham nos seus postos e alegram-se. Ele chama-as e
elas respondem: ‘Aqui estamos’. E, jubilosas, dão luz ao seu Senhor” (Br 3,34-35).
4. Depois de um novo convite jubiloso ao louvor (v. 7), eis que se abre o segundo movimento do Salmo 146 (vv. 7-11). Continua em primeiro plano ainda a ação criadora de Deus no cosmos. Numa paisagem muitas vezes árida, como a oriental, o primeiro sinal do amor divino é a chuva que fecunda a terra (v. 8). Na sequência, o Criador prepara uma mesa para os animais. Aliás, Ele preocupa-se em dar alimento também aos seres vivos mais pequeninos, como os filhotes dos corvos que bradam devido à fome (v. 9). Jesus convida-nos a olhar “para as aves do céu: não semeiam, nem ceifam, nem recolhem em celeiros; e o vosso Pai celeste alimenta-as” (Mt 6,26; cf. também Lc 12,24 com a referência explícita aos “corvos”).
Mas, uma vez mais, a atenção
vai da criação para a existência humana. E assim o Salmo conclui-se mostrando o
Senhor que se inclina sobre quem é justo e humilde (vv. 10-11), como já se
tinha declarado na primeira parte do hino (v. 6). Através de dois símbolos de
poder, o cavalo e as pernas do homem quando corre, delineia-se a atitude divina
que não se deixa conquistar ou atemorizar pela força. Mais uma vez, a lógica do
Senhor ignora o orgulho e a arrogância do poder, mas defende quem é fiel e
“espera em seu amor” (v. 11), ou seja, deixa-se orientar por Deus no seu agir e
no seu pensar, nos seus projetos e na própria vivência quotidiana.
É entre eles que se deve colocar também quem reza, baseando a sua esperança na graça do Senhor, com a certeza de ser envolvido pelo manto do amor divino: “O Senhor é quem vigia sobre os Seus fiéis, sobre aqueles que esperam na sua bondade, libertando-os da morte e fazendo-os viver no tempo da fome... n’Ele se alegra o nosso coração e em Seu santo nome confiamos” (Sl 32,18-19.21).
"O Senhor... fixa o número de todas as estrelas" (Sl 146,4) (4º dia da criação - Catedral de São Valdomiro, Kiev) |
Fonte: Santa Sé (09 de julho, 16 de julho e 23 de julho de 2003).
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