sexta-feira, 5 de fevereiro de 2021

História da devoção às Cinco Chagas do Senhor

Por suas santas chagas, suas chagas gloriosas, o Cristo Senhor nos proteja e nos guarde” (Missal Romano, p. 272).

Com essas palavras, no início da Vigília Pascal, o sacerdote impõe cinco cravos no círio pascal em forma de cruz, em alusão às Cinco Chagas do Senhor.

Foram muitas, com efeito, as feridas sofridas por Jesus em sua Paixão: as feridas da coroa de espinhos, da flagelação, dos ombros sobre os quais carregou a cruz... Porém, sobretudo a partir do final da Idade Média (séculos XII e XIII), a devoção popular centrou-se nas cinco chagas sofridas diretamente na crucificação: as duas mãos e os dois pés perfurados pelos cravos e o lado atravessado pela lança. São estas cinco chagas que o Ressuscitado mostra aos seus discípulos como prova de sua identidade (cf. Lc 24,39-40; Jo 20,20.25-27).

Cinco Chagas de Cristo
(Livro de Orações de Waldburg, 1486, fol 11r)

As origens da devoção

Duas são as causas para o florescimento da devoção: primeiramente, as peregrinações aos locais associados à Paixão do Senhor no contexto das Cruzadas. A própria “Cruz da Terra Santa” ou “Cruz de Jerusalém” - uma grande cruz grega ladeada por outras quatro pequenas -, pode ser interpretada em alusão às Cinco Chagas do Senhor (outra interpretação, porém, associa as cruzes pequenas aos quatro Evangelhos).

"Cruz da Terra Santa" ou "Cruz de Jerusalém"

O segundo motivo está ligado à heresia dos cátaros: em sua concepção dualista, estes consideravam a matéria como má, negando portanto a Encarnação e, por conseguinte, o valor salvífico da Morte de Cristo. Para combater essa heresia, as ordens religiosas passaram a enfatizar a devoção à Paixão.

Destacam-se, neste sentido, São Bernardo de Claraval (†1153) e São Francisco de Assis (†1226), bem como diversas santas místicas: Clara de Assis (†1253), Matilde de Hackeborn (†1298), Gertrudes de Helfta (†1302) e Brígida da Suécia (†1373).

No início do século XIV um autor anônimo compõe a célebre oração “Anima Christi” (Alma de Cristo), que figura no Missal Romano como oração de ação de graças após a Missa (p. 1021). Em um dos versos dessa oração o fiel pede a Cristo: “Intra vulnera tua, absconde me” - “Dentro de vossas chagas, escondei-me”.


Cabe ressaltar, por fim, que a partir dos séculos XV e XVI a devoção começa a centrar-se na chaga do lado de Cristo, florescendo portanto a devoção ao Coração de Jesus.

Práticas devocionais

O rosário, propagado pelos dominicanos, também favoreceu a devoção às Cinco Chagas, uma vez que os cinco “Pai-nossos” do “terço” podem ser associados a elas.

A Congregação da Paixão de Jesus Cristo (Passionistas), fundada em 1720, promoveu a “Coroa das Cinco Chagas”, que consiste na recitação de cinco “Glórias ao Pai” e uma Ave-Maria em honra de Nossa Senhora das Dores para cada uma das cinco Chagas. Essa devoção recebeu especiais indulgências em 1823 e 1851.

Coroa das Cinco Chagas

Já no século XX, a Venerável Marie Martha Chambon (†1907) propôs um rosário ou “terço” das Santas Chagas, com breves orações ou jaculatórias substituindo os “Pai-nossos” e “Aves-Maria”.

Rupert Berger em seu Dicionário de Liturgia testemunha que o II Sínodo Provincial de Lavaur (França), em 1368, recomendou a oração de cinco “Pai-nossos” em honra às chagas pela manhã e ao entardecer. Em alguns lugares essa oração era recitada ao meio-dia ou às 15h, particularmente às sextas-feiras. A esse costume aludiu o Papa Francisco durante a oração do Ângelus de 18 de março de 2018 (V Domingo da Quaresma):

“Há esta bela devoção de recitar um Pai-Nosso por cada uma das cinco chagas: quando rezamos aquele Pai-Nosso, tentemos entrar através das chagas de Jesus dentro, dentro, precisamente do seu coração. E ali aprendemos a grande sabedoria do mistério de Cristo, a grande sabedoria da cruz”.

Vale dizer ainda que a partir do final da Idade Média se popularizaram as Missas votivas em honra das “Santas Chagas”. Tratava-se, na verdade, da Missa votiva da Paixão do Senhor (Missa de Passione Domini) do Missale Romanum, conhecida como “Humiliavit” em referência à sua antífona de entrada: “Humiliavit semetipsum Dominus Iesus Christus usque ad mortem...” - “Jesus Cristo humilhou-se até a morte...” (cf. Fl 2,8-9). Os Papas João XXII (†1334) e Inocêncio VI (†1362) anexaram particulares indulgências a essas celebrações.

Missa das Cinco Chagas de Cristo
(Livro de Horas de Dom Álvaro da Costa, 1515, fol 36v)

A festa litúrgica das “Santas Chagas”

O primeiro testemunho de uma festa litúrgica em honra das Chagas de Cristo é de meados do século XIV. Trata-se ainda de uma celebração local do mosteiro beneditino de Fritzlar (Alemanha), situada na sexta-feira após a oitava de Corpus Christi (dia em que atualmente a Igreja celebra a Solenidade do Sagrado Coração de Jesus).

No século XV, essa festa se espalhou por diversos países, como Inglaterra, Espanha e França, e foi acolhida por diversas ordens religiosas: carmelitas, franciscanos, dominicanos...

A partir do século XVIII, porém, a festa é deslocada para uma data próxima ao início da Quaresma. Um calendário próprio do Patriarcado de Veneza de 1766 a situa no segundo domingo de março; a Diocese de Livorno a celebrava em 1809 na sexta-feira após as Cinzas, data acolhida posteriormente em outras dioceses italianas e mesmo em outros países.

Adoração das Cinco Chagas
(Livro de Orações do Cardeal Alberto de Brandemburgo, 1525-1530, fol 335v)

Segundo testemunha o Missal próprio dos Passionistas, o Papa Clemente XIV (†1774) concedeu-lhes em 1773 a faculdade de celebrar uma Missa em honra das Chagas do Senhor. De acordo com a Catholic Encyclopedia, desde 1831 tal festa era celebrada na sexta-feira após o III Domingo da Quaresma.

No Próprio da Congregação aprovado após o Concílio Vaticano II, em 1998, a festa foi transferida para a sexta-feira após o II Domingo da Páscoa, como Memória das “Chagas Gloriosas de Jesus Cristo”.

A “Festa das Cinco Chagas” em Portugal

Uma menção especial deve ser feita aqui a Portugal. A Festa das Cinco Chagas é celebrada neste país desde a Idade Média, seja em um dia fixo no início de fevereiro (no dia 06 ou 07), seja na sexta-feira após as Cinzas.

A devoção às Cinco Chagas está presente no próprio brasão da nação, formado por cinco escudos em forma de cruz, cada um com cinco pequenas esferas brancas. O célebre poeta Luís de Camões associa estes símbolos às chagas de Cristo:

“Vede-o no vosso escudo que presente
Vos amostra a vitória já passada
Na qual vos deu por armas e deixou
As que Ele per Si na Cruz tomou”
(CAMÕES, Luís de, Os Lusíadas, canto I, estrofe 7).

Bandeira de Portugal com o escudo

Teria sido o Papa Bento XIV (†1758) a aprovar essa festa no calendário próprio de Portugal, sendo fixada no dia 07 de fevereiro. Nos próximos dois dias, portanto, publicaremos aqui as orações e indicações de leituras para a Missa e a 2ª leitura do Ofício das Leituras da Liturgia das Horas, conforme divulgados no site do Secretariado Nacional de Liturgia:

Cumpre recordar que esta Festa não pode ser celebrada no Brasil, uma vez que só foi aprovada para Portugal. Não obstante, podemos meditar sobre esses textos em nossa oração pessoal ou mesmo adaptá-los em uma adoração ao Santíssimo Sacramento ou outro momento de oração comunitária.

Conclusão

Por fim, à guisa de conclusão, cabe recordar aqui a reflexão do Diretório sobre Piedade Popular e Liturgia, promulgado pela Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos em 2001.

Ao elencar as práticas devocionais para o Tempo da Quaresma, particularmente a veneração do Cristo crucificado (nn. 127-129), o Diretório reconhece a devoção “às sagradas chagas do Senhor” dentre as expressões de piedade “legítimas”. Porém adverte:

“Para evitar um fracionamento excessivo na contemplação do mistério da Cruz, é conveniente que se acentue o conjunto todo do evento da Paixão, segundo a tradição bíblica e patrística” (n. 129). Além disso, “deve-se mostrar aos fiéis a essencial referência da Cruz ao evento da Ressurreição: a Morte e a Ressurreição de Cristo são inseparáveis na narrativa evangélica e no projeto salvífico de Deus” (n. 128).

Fonte das Cinco Chagas (Santuário do Bom Jesus do Monte, Braga - Portugal)
"Por suas chagas fomos curados" (Is 53,5; 1Pd 2,24)

Referências:

BERGER, Rupert. Chagas de Cristo. in: Dicionário de Liturgia Pastoral: Obra de consulta sobre todas as questões referentes à Liturgia. São Paulo: Loyola, 2010, p. 90.

CONGREGAÇÃO PARA O CULTO DIVINO E A DISCIPLINA DOS SACRAMENTOS. Diretório sobre Piedade Popular e Liturgia: Princípios e orientações. São Paulo: Paulinas, 2003, pp. 114-116.

CONGREGAZIONE DELLA PASSIONE DI GESÙ CRISTO. Messale proprio della Congregazione.

HOLWECK, Frederick. The Five Sacred Wounds. in: The Catholic Encyclopedia.

PASSIONIST HISTORICAL ARCHIVES. Chaplet of the Five Wounds.

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