terça-feira, 9 de junho de 2020

Leitura litúrgica do Livro de Miqueias

“Praticar a justiça, amar a misericórdia e caminhar solícito com teu Deus” (Mq 6,8)

No ano de 2019 iniciamos uma série de postagens analisando a leitura de alguns livros bíblicos nas celebrações litúrgicas do Rito Romano. A primeira postagem analisava a obra de um dos chamados “profetas menores”, Joel. Agora retomamos nossa série com a profecia de Miqueias, que foi tema do “Mês da Bíblia” no ano de 2016.

1. Breve introdução ao Livro de Miqueias

O Livro de Miqueias, em seus sete capítulos, é fruto de um longo processo de redação. A maioria dos autores divide a obra em três seções:
a) Mq 1–3: Oráculos de julgamento (exceto 2,12-13)
b) Mq 4–5: Oráculos de salvação
c) Mq 6–7: Oráculos de julgamento (6,1–7,7) e liturgia final de salvação (7,8-20).

Geralmente considera-se apenas a primeira seção como de autoria do profeta Miqueias. Como o primeiro versículo do livro indica, este era natural de Morasti (ou Moréshet), pequena aldeia situada a sudoeste de Jerusalém. A atividade do profeta é indicada como acontecendo sob os reinados de Joatão, Acaz e Ezequias, portanto na segunda metade do século VIII a. C, contemporâneo ao profeta Isaías.

A primeira seção contém oráculos de julgamento tanto contra a Samaria, capital do reino do Norte (Israel), quanto contra Jerusalém, capital do reino do Sul (Judá), além de oráculos contra os dirigentes do povo e os falsos profetas.

A segunda seção, por sua vez, apresenta oráculos de salvação com vários elementos da literatura pós-exílica, como a peregrinação das nações, o “resto de Israel”, a paz messiânica. Também do período pós-exílico é a terceira seção, que serve de anexo ao livro, retomando o binômio julgamento-salvação das seções anteriores.

Para saber mais, confira a bibliografia indicada no final da postagem [1].


2. Leitura litúrgica de Miqueias: Composição harmônica

Como nas postagens anteriores, analisaremos a leitura litúrgica do Livro de Miqueias a partir dos dois critérios de seleção dos textos propostos no n. 66 do Elenco das Leituras da Missa: composição harmônica e leitura semicontínua [2]. Começamos com o primeiro, que consiste na escolha do texto por sua sintonia com o tempo ou a festa litúrgica.

a) Celebração Eucarística

Encontramos a primeira ocorrência da profecia de Miqueias, seguindo o ciclo do Ano Litúrgico, como 1ª leitura do IV Domingo do Advento no ano C. Neste tempo “as leituras do Antigo Testamento são profecias sobre o Messias e o tempo messiânico” [3], o que justifica a escolha da perícope de Mq 5,1-4a.

O texto, preparando a solenidade do Natal, é uma importante profecia messiânica, indicando Belém como a cidade de onde virá o Messias. Mais do que um lugar geográfico, trata-se de um lugar teológico, associado à figura de Davi, pois Belém é sua cidade natal e onde foi coroado rei. Outros temas presentes no texto são a imagem do pastor - “apascentará com a força do Senhor” - e a paz messiânica - “os homens viverão em paz... e ele mesmo será a Paz”.

Passando ao tempo da Quaresma, encontramos duas ocorrências do nosso livro. Neste tempo, “as leituras do Evangelho e do Antigo Testamento foram escolhidas de modo que tivessem uma relação mútua; elas tratam de diversos temas próprios da catequese quaresmal, em consonância com o significado espiritual desse tempo” [4].

Assim, a escolha da perícope de Mq 7,14-15.18-20 como leitura do sábado da II semana da Quaresma, que traz o tema da misericórdia de Deus - “Ele não guarda rancor para sempre, o que ama é a misericórdia” -, está em perfeita harmonia com a parábola do “pai misericordioso” (Lc 15,1-3.11-32) narrada no Evangelho.

A partir da III semana da Quaresma encontramos leituras à escolha, retomando os textos dos domingos do ano A, ligados à Iniciação Cristã, a serem proferidas de maneira facultativa nos anos B e C. Assim, como leitura à escolha para a IV semana da Quaresma encontramos Mq 7,7-9, o início da liturgia final de salvação, que proclama Deus como luz - “se estou na escuridão, o Senhor é a minha luz” -, em sintonia com o Evangelho da cura do cego de nascença (Jo 9,1-41).

No Próprio dos Santos encontramos uma perícope do livro de Miqueias como 1ª opção de leitura da Festa da Natividade de Nossa Senhora (08 de setembro). Trata-se de Mq 5,1-4a, a profecia messiânica que recorda a figura da mãe: “até o tempo em que uma mãe der à luz”. O mesmo texto consta como leitura à escolha no Comum de Nossa Senhora [5].

Altar sobre a gruta da Natividade em Belém

No Comum dos Santos, por sua vez, propõe-se como leitura ad libitum (à escolha) o texto de Mq 6,6-8, que sintetiza o caminho do bem, isto é, o caminho da santidade: “praticar a justiça, amar a misericórdia e caminhar solícito com teu Deus”.

Dentre as Missas para diversas circunstâncias encontramos o texto de Mq 4,1-4 como leitura ad libitum para a Missa em tempo de guerra ou calamidade. Trata-se de um oráculo de salvação que proclama a paz messiânica: “não mais tomará a espada povo contra povo nem aprenderão mais a fazer a guerra”.

b) Sacramentos

No que se refere aos demais sacramentos, encontramos dois textos da profecia de Miqueias como leituras à escolha para a celebração do Sacramento da Reconciliação:
- Mq 6,1-15, com a exortação a praticar a justiça;
- Mq 7,14-15.18-20, recordando a misericórdia de Deus, como vimos anteriormente na Quaresma [6].

Cabe destacar que a primeira perícope contém o célebre versículo que introduz os “Improperia”, os “Lamentos do Senhor”, cântico para a adoração da cruz na Sexta-feira Santa: “Povo meu, que é que te fiz?” (Mq 6,3).


c) Liturgia das Horas

Por fim, no que concerne à leitura em composição harmônica, passamos à Liturgia das Horas, onde encontramos três perícopes do nosso livro durante o Ciclo da Manifestação do Senhor, isto é, nos tempos do Advento e do Natal.

Primeiramente, o texto de Mq 5,3-4a consta como leitura breve da Hora Média (9h) das quintas-feiras das semanas I-III do Advento e do dia 22 de dezembro [7], uma profecia que proclama o Messias como pastor de Israel e promotor da paz.

A mesma perícope, acrescida de um versículo - Mq 5,2-3a.4a - é a leitura breve das Laudes do dia 01 de janeiro, Solenidade de Santa Maria Mãe de Deus [8]. O versículo acrescenta à profecia messiânica a figura da mãe que dá à luz.

Por fim, encontramos a última leitura de Miqueias em composição harmônica na Hora Média (15h) dos dias 05 e 12 de janeiro [9]. Aqui lemos Mq 2,12, oráculo que proclama indiretamente o Messias como pastor, uma vez que anuncia a reunião de todo o povo de Israel em um só rebanho.

3. Leitura litúrgica de Miqueias: Leitura semicontínua

Depois de analisar a presença do livro nas celebrações do Rito Romano segundo o critério da composição harmônica, passamos ao critério da leitura semicontínua, a proclamação dos principais textos do livro em sequência, de modo a oferecer aos fiéis um contato mais amplo com a Sagrada Escritura.

a) Celebração Eucarística

A leitura semicontínua de Miqueias na Celebração Eucarística concentra-se entre a XV e a XVI semanas do Tempo Comum no ano par, entre a leitura de Isaías e Jeremias, dividida em três perícopes:
Sábado da XV semana: Mq 2,1-5 (oráculo de julgamento contra os iníquos);
Segunda-feira da XVI semana: Mq 6,1-4.6-8 (exortação ao caminho do bem);
Terça-feira da XVI semana: Mq 7,14-15.18-20 (proclamação da misericórdia de Deus).

Jesus, rosto da misericórdia de Deus

b) Liturgia das Horas

Na Liturgia das Horas, por sua vez, a leitura semicontínua do nosso livro é feita no Ofício das Leituras da XIX semana do Tempo Comum, precedido pela profecia de Oseias e sucedido por Isaías. Aqui o livro é dividido em cinco perícopes:

Terça-feira: Mq 3,1-12 - “Por causa dos pecados dos príncipes, Jerusalém será destruída”;
Quarta-feira: Mq 4,1-7 - “Os povos subirão ao monte do Senhor”;
Quinta-feira: Mq 4,14–5,7 - “O Messias será a paz”;
Sexta-feira: Mq 6,1-15 - “O Senhor julga o seu povo”;
Sábado: Mq 7,7-20 - “A cidade de Deus espera a salvação e o perdão dos pecados” [10].

No ciclo bienal do Ofício das Leituras, que não foi traduzido para o Brasil, o profeta foi dividido em dois blocos:

Primeiramente, na III semana do Advento nos anos ímpares leem-se alguns capítulos do nosso livro por quatro dias [11]:
Terça e quarta: como na quarta e na quinta da XIX semana no ciclo anual;
A leitura do sábado do ciclo anual é dividida em dois dias:
Quinta-feira: Mq 7,7-13 - “A cidade de Deus espera a salvação”;
Sexta-feira: Mq 7,14-20 - “A salvação consiste no perdão das culpas”.

Entre a XXV e a XXVI semanas do Tempo Comum nos anos ímpares leem-se outros três textos do Livro de Miqueias, sendo apenas o primeiro “inédito” em relação ao ciclo anual:
Sábado da XXV semana do Tempo Comum (ano ímpar): Mq 1,1-9; 2,1-11 - “Oráculo contra Samaria e Jerusalém”.
Domingo e segunda da XXVI semana do Tempo Comum (ano ímpar): como na terça e na sexta da XIX semana no ciclo anual.

"Das espadas farão relhas de arado..." (Mq 4,3)
(Jardim da sede das Nações Unidas em Nova York - EUA)

Por fim, encontramos ainda um trecho do Livro de Miqueias como leitura breve da Hora Média (15h) do sábado da III semana do Saltério [12]: Mq 6,8, o texto que escolhemos como epígrafe desta postagem e que sintetiza o caminho do bem: “praticar a justiça, amar a misericórdia e caminhar solícito com teu Deus”.

Referências:
[1] DE LACY, J. M. Abrego. Os livros proféticos. 2ª ed. São Paulo: Ave Maria, pp. 127-134. in: Coleção: Introdução ao Estudo da Bíblia, v. 4.
MACCHI, Jean-Daniel. Miqueias. in: RÖMER, Thomas; MACCHI, Jean-Daniel; NIHAN, Christophe. Antigo Testamento: História, Escritura e Teologia. 2ª ed. São Paulo: Loyola, 2015, pp. 519-526.
[2] ALDAZÁBAL, José. A Mesa da Palavra I: Elenco das Leituras da Missa - Texto e Comentário. São Paulo: Paulinas, 2007, p. 76.
[3] ibid., p. 94.
[4] ibid., p. 97.
[5] LECIONÁRIO PARA MISSAS DE NOSSA SENHORA. Edições CNBB: Brasília, 2016, p. 204.
[6] RITUAL DA PENITÊNCIA. Tradução portuguesa para o Brasil da segunda edição típica. São Paulo: Paulus: 1999, pp. 115-117.
[7] OFÍCIO DIVINO. Liturgia das Horas segundo o Rito Romano. Tradução para o Brasil da segunda edição típica. São Paulo: Paulus, 1999, v. 1: Tempo do Advento e Tempo do Natal, pp. 147.202.258.329.
[8] ibid., p. 438.
[9] ibid., pp. 477.564.
[10] OFÍCIO DIVINO, v. IV, pp. 79.82.86.89.93.
[11] Os títulos das leituras foram traduzidos livremente do texto espanhol divulgado pelo site Dei Verbum.
[12] OFÍCIO DIVINO, v. III, p. 1026; v. IV, p. 980.

[Observação: Devido ao distanciamento social ocasionado pela atual pandemia de coronavírus (Covid-19), não temos acesso aos Lecionários I-III para indicar as páginas das leituras. Assim que a situação se normalizar, atualizaremos a postagem com as devidas referências]

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