“Praticar a justiça,
amar a misericórdia e caminhar solícito com teu Deus” (Mq 6,8)
No ano de 2019 iniciamos uma série de postagens analisando a leitura de alguns livros bíblicos nas celebrações litúrgicas do Rito Romano. A
primeira postagem analisava a obra de um dos chamados “profetas menores”, Joel.
Agora retomamos nossa série com a profecia de Miqueias, que foi tema do
“Mês da Bíblia” no ano de 2016.
1. Breve introdução ao
Livro de Miqueias
O Livro de Miqueias, em seus sete capítulos, é
fruto de um longo processo de redação. A maioria dos autores divide a obra em
três seções:
a) Mq 1–3: Oráculos de julgamento (exceto 2,12-13)
b) Mq 4–5: Oráculos de salvação
c) Mq 6–7: Oráculos de julgamento (6,1–7,7) e liturgia final
de salvação (7,8-20).
Geralmente considera-se apenas a primeira seção como de
autoria do profeta Miqueias. Como o primeiro versículo do livro indica, este
era natural de Morasti (ou Moréshet), pequena aldeia situada a sudoeste de
Jerusalém. A atividade do profeta é indicada como acontecendo sob os reinados
de Joatão, Acaz e Ezequias, portanto na segunda metade do século VIII a. C,
contemporâneo ao profeta Isaías.
A primeira seção contém oráculos de julgamento tanto contra
a Samaria, capital do reino do Norte (Israel), quanto contra Jerusalém, capital
do reino do Sul (Judá), além de oráculos contra os dirigentes do povo e os
falsos profetas.
A segunda seção, por sua vez, apresenta oráculos de salvação
com vários elementos da literatura pós-exílica, como a peregrinação das nações,
o “resto de Israel”, a paz messiânica. Também do período pós-exílico é a
terceira seção, que serve de anexo ao livro, retomando o binômio
julgamento-salvação das seções anteriores.
Para saber mais, confira a bibliografia indicada no final da
postagem [1].
2. Leitura litúrgica
de Miqueias: Composição harmônica
Como nas postagens anteriores, analisaremos a leitura
litúrgica do Livro de Miqueias a
partir dos dois critérios de seleção dos textos propostos no n. 66 do Elenco das Leituras da Missa: composição
harmônica e leitura semicontínua [2]. Começamos com o primeiro, que consiste na
escolha do texto por sua sintonia com o tempo ou a festa litúrgica.
a) Celebração
Eucarística
Encontramos a primeira ocorrência da profecia de Miqueias,
seguindo o ciclo do Ano Litúrgico, como 1ª leitura do IV Domingo do Advento no ano C. Neste tempo “as leituras do Antigo
Testamento são profecias sobre o Messias e o tempo messiânico” [3], o que
justifica a escolha da perícope de Mq 5,1-4a.
O texto, preparando a solenidade do Natal, é uma importante
profecia messiânica, indicando Belém como a cidade de onde virá o Messias. Mais
do que um lugar geográfico, trata-se de um lugar teológico, associado à figura
de Davi, pois Belém é sua cidade natal e onde foi coroado rei. Outros temas
presentes no texto são a imagem do pastor - “apascentará com a força do Senhor” - e a paz messiânica - “os homens viverão em paz... e ele mesmo será
a Paz”.
Passando ao tempo da
Quaresma, encontramos duas ocorrências do nosso livro. Neste tempo, “as
leituras do Evangelho e do Antigo Testamento foram escolhidas de modo que
tivessem uma relação mútua; elas tratam de diversos temas próprios da catequese
quaresmal, em consonância com o significado espiritual desse tempo” [4].
Assim, a escolha da perícope de Mq 7,14-15.18-20 como
leitura do sábado da II semana da
Quaresma, que traz o tema da misericórdia de Deus - “Ele não guarda rancor para sempre, o que ama é a misericórdia” -,
está em perfeita harmonia com a parábola do “pai misericordioso” (Lc
15,1-3.11-32) narrada no Evangelho.
A partir da III semana da Quaresma encontramos leituras à
escolha, retomando os textos dos domingos do ano A, ligados à Iniciação Cristã,
a serem proferidas de maneira facultativa nos anos B e C. Assim, como leitura à escolha para a IV semana da
Quaresma encontramos Mq 7,7-9, o início da liturgia final de salvação, que
proclama Deus como luz - “se estou na
escuridão, o Senhor é a minha luz” -, em sintonia com o Evangelho da cura
do cego de nascença (Jo 9,1-41).
No Próprio dos Santos
encontramos uma perícope do livro de Miqueias
como 1ª opção de leitura da Festa da
Natividade de Nossa Senhora (08 de setembro). Trata-se de Mq 5,1-4a, a
profecia messiânica que recorda a figura da mãe: “até o tempo em que uma mãe der à luz”. O mesmo texto consta como
leitura à escolha no Comum de Nossa
Senhora [5].
Altar sobre a gruta da Natividade em Belém |
No Comum dos Santos,
por sua vez, propõe-se como leitura ad
libitum (à escolha) o texto de Mq 6,6-8, que sintetiza o caminho do bem,
isto é, o caminho da santidade: “praticar
a justiça, amar a misericórdia e caminhar solícito com teu Deus”.
Dentre as Missas para
diversas circunstâncias encontramos o texto de Mq 4,1-4 como leitura ad libitum para a Missa em tempo de guerra ou calamidade. Trata-se de um oráculo de
salvação que proclama a paz messiânica: “não
mais tomará a espada povo contra povo nem aprenderão mais a fazer a guerra”.
b) Sacramentos
No que se refere aos demais sacramentos, encontramos dois
textos da profecia de Miqueias como leituras à escolha para a celebração do Sacramento
da Reconciliação:
- Mq 6,1-15, com a exortação a praticar a justiça;
- Mq 7,14-15.18-20, recordando a misericórdia de Deus, como
vimos anteriormente na Quaresma [6].
Cabe destacar que a primeira perícope contém o célebre versículo
que introduz os “Improperia”, os “Lamentos
do Senhor”, cântico para a adoração da cruz na Sexta-feira Santa: “Povo meu, que é que te fiz?” (Mq 6,3).
c) Liturgia das Horas
Por fim, no que concerne à leitura em composição harmônica, passamos
à Liturgia das Horas, onde encontramos três perícopes do nosso livro durante o
Ciclo da Manifestação do Senhor, isto é, nos tempos do Advento e do Natal.
Primeiramente, o texto de Mq 5,3-4a consta como leitura
breve da Hora Média (9h) das quintas-feiras
das semanas I-III do Advento e do dia 22 de dezembro [7], uma profecia que
proclama o Messias como pastor de Israel e promotor da paz.
A mesma perícope, acrescida de um versículo - Mq 5,2-3a.4a -
é a leitura breve das Laudes do dia 01
de janeiro, Solenidade de Santa Maria Mãe de Deus [8]. O versículo
acrescenta à profecia messiânica a figura da mãe que dá à luz.
Por fim, encontramos a última leitura de Miqueias em composição harmônica na Hora Média (15h) dos dias 05 e 12 de
janeiro [9]. Aqui lemos Mq 2,12, oráculo que proclama indiretamente o
Messias como pastor, uma vez que anuncia a reunião de todo o povo de Israel em
um só rebanho.
3. Leitura litúrgica
de Miqueias: Leitura semicontínua
Depois de analisar a presença do livro nas celebrações do
Rito Romano segundo o critério da composição harmônica, passamos ao critério da
leitura semicontínua, a proclamação dos principais textos do livro em
sequência, de modo a oferecer aos fiéis um contato mais amplo com a Sagrada
Escritura.
a) Celebração
Eucarística
A leitura semicontínua de Miqueias na Celebração Eucarística concentra-se entre a XV e a XVI semanas do Tempo Comum no ano
par, entre a leitura de Isaías e Jeremias, dividida em três perícopes:
Sábado da XV semana:
Mq 2,1-5 (oráculo de julgamento contra os iníquos);
Segunda-feira da XVI
semana: Mq 6,1-4.6-8 (exortação ao caminho do bem);
Terça-feira da XVI
semana: Mq 7,14-15.18-20 (proclamação da misericórdia de Deus).
b) Liturgia das Horas
Na Liturgia das Horas, por sua vez, a leitura semicontínua do
nosso livro é feita no Ofício das
Leituras da XIX semana do Tempo Comum, precedido pela profecia de Oseias e sucedido por Isaías. Aqui o livro é dividido em cinco
perícopes:
Terça-feira: Mq
3,1-12 - “Por causa dos pecados dos
príncipes, Jerusalém será destruída”;
Quarta-feira: Mq
4,1-7 - “Os povos subirão ao monte do
Senhor”;
Quinta-feira: Mq
4,14–5,7 - “O Messias será a paz”;
Sexta-feira: Mq
6,1-15 - “O Senhor julga o seu povo”;
Sábado: Mq 7,7-20 -
“A cidade de Deus espera a salvação e o
perdão dos pecados” [10].
No ciclo bienal do Ofício das Leituras, que não foi
traduzido para o Brasil, o profeta foi dividido em dois blocos:
Primeiramente, na III
semana do Advento nos anos ímpares leem-se alguns capítulos do nosso livro
por quatro dias [11]:
Terça e quarta: como na quarta e na quinta da XIX semana no
ciclo anual;
A leitura do sábado do ciclo anual é dividida em dois dias:
Quinta-feira: Mq
7,7-13 - “A cidade de Deus espera a salvação”;
Sexta-feira: Mq
7,14-20 - “A salvação consiste no perdão
das culpas”.
Entre a XXV e a XXVI
semanas do Tempo Comum nos anos ímpares leem-se outros três textos do Livro de Miqueias, sendo apenas o
primeiro “inédito” em relação ao ciclo anual:
Sábado da XXV semana do Tempo Comum (ano ímpar): Mq 1,1-9;
2,1-11 - “Oráculo contra Samaria e
Jerusalém”.
Domingo e segunda da XXVI semana do Tempo Comum (ano ímpar):
como na terça e na sexta da XIX semana no
ciclo anual.
"Das espadas farão relhas de arado..." (Mq 4,3) (Jardim da sede das Nações Unidas em Nova York - EUA) |
Por fim, encontramos ainda um trecho do Livro de Miqueias como leitura breve da Hora Média (15h) do sábado da III semana do Saltério [12]: Mq 6,8,
o texto que escolhemos como epígrafe desta postagem e que sintetiza o caminho
do bem: “praticar a justiça, amar a
misericórdia e caminhar solícito com teu Deus”.
Referências:
[1] DE LACY, J. M. Abrego. Os livros proféticos. 2ª ed. São Paulo: Ave Maria, pp. 127-134. in: Coleção: Introdução ao Estudo da Bíblia, v. 4.
MACCHI, Jean-Daniel. Miqueias.
in: RÖMER, Thomas; MACCHI,
Jean-Daniel; NIHAN, Christophe. Antigo
Testamento: História, Escritura e Teologia. 2ª ed. São Paulo: Loyola, 2015,
pp. 519-526.
[2] ALDAZÁBAL, José. A
Mesa da Palavra I: Elenco das Leituras da Missa - Texto e Comentário. São
Paulo: Paulinas, 2007, p. 76.
[3] ibid., p. 94.
[4] ibid., p. 97.
[5] LECIONÁRIO PARA MISSAS DE NOSSA SENHORA. Edições CNBB:
Brasília, 2016, p. 204.
[6] RITUAL DA PENITÊNCIA. Tradução portuguesa para o Brasil
da segunda edição típica. São Paulo: Paulus: 1999, pp. 115-117.
[7] OFÍCIO DIVINO. Liturgia das Horas segundo o Rito Romano.
Tradução para o Brasil da segunda edição típica. São Paulo: Paulus, 1999, v. 1:
Tempo do Advento e Tempo do Natal,
pp. 147.202.258.329.
[8] ibid., p. 438.
[9] ibid., pp.
477.564.
[10] OFÍCIO DIVINO, v. IV, pp. 79.82.86.89.93.
[11] Os títulos das leituras foram traduzidos livremente do
texto espanhol divulgado pelo site Dei
Verbum.
[12] OFÍCIO DIVINO, v. III, p. 1026; v. IV, p. 980.
[Observação: Devido ao distanciamento social ocasionado pela atual pandemia de coronavírus (Covid-19), não temos acesso aos Lecionários I-III para indicar as páginas das leituras. Assim que a situação se normalizar, atualizaremos a postagem com as devidas referências]
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