“O temor do Senhor é o
princípio da sabedoria” (Pr 9,10)
No ano de 2019, dentro da nossa série sobre a leitura litúrgica dos livros da Sagrada Escritura, analisamos o Livro da Sabedoria, que
integra o célebre grupo dos escritos sapienciais. Nesta postagem damos
continuidade à nossa proposta com outra obra sapiencial: o Livro dos Provérbios
(Pr).
1. Breve introdução ao
Livro dos Provérbios
O Livro dos Provérbios
é formado por nove coleções de sentenças:
a) Pr 1–9: Conselhos
do pai ao seu filho e discursos da sabedoria;
b) Pr 10,1–22,16: Provérbios de Salomão;
c) Pr 22,17–24,22: Palavras dos sábios;
d) Pr 24,23-34: Mais palavras dos sábios;
e) Pr 25–29: Provérbios de Salomão;
f) Pr 30,1-14: Palavras de Agur;
g) Pr 30,15-33: Provérbios numéricos;
h) Pr 31,1-9: Palavras de Lamuel;
i) Pr 31,10-31: Elogio da mulher sábia.
Salomão - Igreja Ortodoxa da Anunciação - Michigan (EUA) (O pergaminho traz o texto de Pr 10,31; 9,1) |
Embora o livro inicie atribuindo sua autoria a Salomão, esta
é simbólica (pseudonímia), uma vez que o rei é considerado o modelo de homem
sábio (o mesmo acontece nos livros de Cântico
dos Cânticos, Eclesiastes e Sabedoria). As coleções de provérbios
são frutos de séculos de tradição, inclusive com contribuições da sabedoria de
outros povos do Oriente.
Os gêneros literários (paralelismos - sintéticos e
antitéticos -, instruções, acrósticos, bem-aventuranças) e os temas empregados (sabedoria
prática, ética, teologia) são também os mais diversos. Vale destacar os textos
que apresentam a sabedoria personificada, os quais influenciaram diretamente a
“cristologia da sabedoria” no Novo Testamento.
Para saber mais, confira a bibliografia indicada no final da
postagem [1].
2. Leitura litúrgica
do Livro dos Provérbios: Composição harmônica
Como nas postagens anteriores desta série, analisaremos a
leitura litúrgica dos Provérbios a
partir dos dois critérios propostos no n. 66 do Elenco das Leituras da Missa: a composição harmônica e a leitura
semicontínua [2]. Começamos pela primeira, que consiste na escolha do texto por
sua sintonia com o tempo ou a festa litúrgica.
a) Celebração
Eucarística
Seguindo o ciclo do Ano Litúrgico, a primeira ocorrência de Pr é na Solenidade da Santíssima Trindade do ano C. Neste dia lemos o
célebre texto de Pr 8,22-31, no qual a sabedoria é personificada e narra sua
participação na obra da criação. Naturalmente aqui a sabedoria é identificada
com a pessoa de Jesus Cristo.
Durante os demais domingos do Tempo Comum encontramos outras
duas aparições de Pr, sempre em sintonia
temática com o Evangelho [3], como veremos a seguir.
Primeiramente, no XXXIII
Domingo do Tempo Comum do ano A se lê a perícope de Pr
31,10-13.19-20.30-31, parte do elogio da mulher sábia, que corrobora a atitude
dos servos fiéis na parábola dos
talentos no Evangelho (Mt 25,14-30).
No XX Domingo do
Tempo Comum do ano B, por sua vez, proclama-se o texto de Pr 9,1-6, no qual
a sabedoria personificada prepara a mesa e serve pão e vinho. Este gesto é lido
em chave eucarística à luz do Evangelho (Jo 6,51-58), um trecho do “discurso do
pão da vida”.
Se Cristo é identificado com a sabedoria, é natural que sua
Mãe recebesse títulos como “Trono da sabedoria” ou “Sede da sabedoria”, uma vez
que foi em seu regaço que a Sabedoria de Deus revelou-se. Portanto, Pr 8,22-31
consta como leitura ad libitum (à
escolha) no Comum de Nossa Senhora e
como 1ª opção de leitura na Missa de Maria, sede da sabedoria [4].
A sabedoria divina com outras virtudes (Alegoria de Andrea Sacchi - séc. XVII) |
Ainda dentre as Missas de Nossa Senhora, no formulário Maria, mãe e mestra espiritual, encontramos
como 1ª opção de leitura Pr 8,17-21.34-35 [5], parte do discurso da sabedoria
elogiando aos que a buscam. Aqui, pois, Maria é celebrada como a mulher sábia,
a discípula que soube ouvir a Palavra do Senhor.
Passando às celebrações dos santos, propõe-se primeiramente
para a Memória de São Bento (11 de
julho), como leitura sugerida, o texto de Pr 2,1-9. Trata-se do pai que, como o
abade São Bento, aconselha seu filho a buscar a sabedoria.
No Comum dos Santos,
por sua vez, consta dentre as leituras à escolha Pr 31,10-13.19-20.30-31, parte
do elogio à mulher sábia, naturalmente mais indicado para as celebrações das
santas mulheres.
Por fim, no que se refere à Celebração Eucarística, para a Missa votiva da Santíssima Eucaristia
pode ser lido ad libitum o texto de
Pr 9,1-6, no qual a sabedoria prepara a mesa e serve pão e vinho. A mesma
leitura é proposta para o Culto
Eucarístico fora da Missa [6].
b) Sacramentos e
sacramentais
Dentre os demais sacramentos, encontramos uma leitura de Pr que pode ser lidoa à escolha na
celebração do Matrimônio: Pr
31,10-13.19-20.30-31 [7], o elogio à mulher sábia, como vimos anteriormente.
Quanto aos sacramentais, o Livro dos Provérbios aparece primeiramente dentre as leituras ad libitum da Instituição de acólitos. A perícope escolhida é Pr 9,1-6 [8], que
já apareceu em outras celebrações em chave eucarística.
Na Bênção de abade ou
de abadessa, por sua vez, encontramos duas opções de leitura: Pr 2,1-9 e Pr
4,7-13 [9], ambas com conselhos do pai ao filho sobre a sabedoria, com a qual o
abade e a abadessa devem instruir seus irmãos e irmãs.
Quanto ao Ritual de
Bênçãos, este nos oferece a opção de leituras de Pr em três formulários:
- Bênção de filhos:
Pr 4,1-7 [10], uma exortação aos filhos a ouvirem os conselhos de seus pais.
- Bênção de escola ou
universidade: Pr 1,1-7 [11], o início do livro, que serve de prólogo e
exorta à busca da sabedoria.
- Bênção de
instrumentos de trabalho: Pr 31,10-31 [12]. Aqui, em contrapartida, lê-se a
conclusão do livro: o elogio à mulher sábia, com o louvor à sua diligência no
trabalho.
c) Liturgia das Horas
No que se refere à Liturgia das Horas, encontramos uma
leitura longa de Pr em composição
harmônica: Pr 31,10-31, o elogio da mulher sábia, indicado para o Ofício das Leituras do Comum das Santas
Mulheres [13] como 1ª opção para santas que viveram no Matrimônio.
As leituras breves, por sua vez, são três. Primeiramente em
uma festa cristológica: na Hora Média
(12h) da Solenidade do Santíssimo Corpo e Sangue de Cristo (Corpus Christi), onde se lê Pr 9,1-2
[14], a sabedoria que prepara a mesa.
Em seguida, particularmente para o Brasil, temos uma leitura
breve de Pr em uma festa mariana: na Hora Média (9h) da Solenidade de Nossa
Senhora da Conceição Aparecida (12 de outubro), onde o texto de Pr 8,34-35
[15] traz-nos o elogio dos que buscam a sabedoria, aqui aplicado a Maria.
Por fim, encontramos uma leitura breve em uma festa
hagiológica: na Hora Média (9h) da
Solenidade de São José (19 de março) lemos Pr 2,7-8 [16], recordando que
Deus guarda o caminho do homem justo.
3. Leitura litúrgica
do Livro dos Provérbios: Leitura
semicontínua
Da leitura em composição harmônica passamos à leitura
semicontínua, que consiste na proclamação dos principais textos do livro na
sequência, oferecendo aos fiéis um contato mais amplo com a Sagrada Escritura.
a) Celebração
Eucarística
A leitura semicontínua de Pr na Celebração Eucarística concentra-se em três dias da XXV semana do Tempo Comum no ano par,
precedida pela Primeira Carta aos
Coríntios e sucedida pelo Eclesiastes.
As três perícopes escolhidas aqui são:
Segunda-feira: Pr
3,27-34 (conselhos sobre o amor ao próximo);
Terça-feira: Pr
21,1-6.10-13 (sentenças diversas sobre a justiça);
Quarta-feira: Pr
30,5-9 (confiança na Palavra de Deus).
b) Liturgia das Horas
Na Liturgia das Horas, por sua vez, o Livro dos Provérbios é lido durante uma semana, no Ofício das Leituras da VI semana do Tempo
Comum, precedido pela Carta aos
Gálatas e sucedido, como acima, pelo Eclesiastes.
As sete perícopes lidas são:
Domingo: Pr
1,1-7.20-33 - “Exortação para escolher a
sabedoria”;
Segunda-feira: Pr
3,1-20 - “Como encontrar a sabedoria”;
Terça-feira: Pr
8,1-5.12-36 - “Louvor da Sabedoria eterna”;
Quarta-feira:
Pr 9,1-18 - “Sabedoria e insensatez”;
Quinta-feira: Pr 10,6-32
- “Sentenças várias”;
Sexta-feira: Pr 15,8-9.16-17.25-26.29.33;
16,1-9; 17,5 - “O ser humano diante do
Senhor”;
Sábado: Pr 31,10-31
- “Elogio da mulher virtuosa” [17].
No ciclo bienal do Ofício, que não foi traduzido para o
Brasil, encontramos as mesmas leituras do nosso livro na XIV semana do Tempo Comum no ano par.
Encontramos também dois trechos
de Pr como leituras breves distribuídas
ao longo das quatro semanas do Saltério:
- Hora Média (12h) da terça-feira da I semana: Pr 3,13-15 [18], uma bem-aventurança
sobre a busca da sabedoria;
- Hora Média (15h) da terça-feira da III semana: Pr 22,22-23 [19],
uma exortação a proteger o pobre e o fraco.
4. Leitura litúrgica
do Livro dos Provérbios: Cântico
Por fim, temos ainda um trecho do nosso livro proclamado na
forma de cântico. É um texto já proferido como leitura, mas que aqui é
equiparado aos salmos, adquirindo um caráter orante, laudativo.
Trata-se de Pr 9,1-6.10-12, que consta como I cântico da Vigília da Solenidade do Santíssimo Corpo e Sangue de Cristo (Corpus Christi) [20]. O célebre texto, comumente
associado a contextos eucarísticos, canta a sabedoria que prepara a mesa e
serve pão e vinho, como indica o título do cântico: “A Sabedoria convida os pequenos à sua mesa”.
Referências:
[1] ASENSIO, Víctor Morla. Livros sapienciais e outros escritos. 3ª ed. São Paulo: Ave Maria,
2008, pp. 97-124. in: Coleção: Introdução ao Estudo da Bíblia, v. 5.
BUEHLMANN, Alain. Provérbios.
in: RÖMER, Thomas; MACCHI,
Jean-Daniel; NIHAN, Christophe [org.]. Antigo
Testamento: História, Escritura e Teologia. 2ª ed. São Paulo: Loyola, 2015,
pp. 614-628.
[2] ALDAZÁBAL, José. A
Mesa da Palavra I: Elenco das Leituras da Missa - Texto e Comentário. São
Paulo: Paulinas, 2007, p. 76.
[3] cf. ibid., pp. 103-104.
[4] LECIONÁRIO PARA MISSAS DE NOSSA SENHORA. Edições CNBB:
Brasília, 2016, p. 101.
[5] ibid., p. 131.
[6] SAGRADA COMUNHÃO e
o culto do Mistério Eucarístico fora da Missa. Edição típica em tradução
portuguesa para o Brasil. São Paulo: Paulus, 2000, p. 69.
[7] RITUAL DO MATRIMÔNIO. Tradução portuguesa para o Brasil
da 2ª edição típica. São Paulo: Paulus, 2007, p. 80.
[8] LECIONÁRIO IV: Lecionário
do Pontifical Romano. Tradução portuguesa da 2ª edição típica para o
Brasil. São Paulo: Paulus, 2000, p. 82.
[9] ibid., p. 117.
[10] RITUAL DE BÊNÇÃOS. Tradução portuguesa da edição típica
para o Brasil. São Paulo: Paulus, 1990, p. 70.
[11] ibid., p.
199.
[12] ibid., p.
257.
[13] OFÍCIO DIVINO. Liturgia
das Horas segundo o Rito Romano. Tradução para o Brasil da segunda edição
típica. São Paulo: Paulus, 1999, v. I, p. 1338; v. II, p. 1891; v. III, p.
1714; v. IV, p. 1726.
[14] ibid., v.
III, p. 555.
[15] ibid., v. IV,
p. 1374.
[16] ibid., v. II,
p. 1489.
[17] ibid., v.
III, pp. 171.175.179.183.186.190.194.
[18] ibid., v.
III, p. 672; v. IV, p. 626.
[19] ibid., v.
III, p. 946; v. IV, p. 900.
[20] ibid., v.
III, p. 1803.
[Observação: Devido ao distanciamento social ocasionado pela atual pandemia de coronavírus (Covid-19), não temos acesso aos Lecionários I-III para indicar as páginas das leituras. Assim que a situação se normalizar, atualizaremos a postagem com as devidas referências]
Nenhum comentário:
Postar um comentário