“Tu te manifestaste no
mundo para iluminar a quantos estavam nas trevas” [1]
A Igreja de Rito Romano celebra no último domingo do Ano
Litúrgico a Solenidade de Jesus Cristo, Rei do Universo. Aproveitamos esta
ocasião para, encerrando nossa série de postagens sobre os ícones das festas litúrgicas, falar sobre o ícone de Cristo Salvador ou Pantocrator.
Origem e conteúdo da
festa:
Todas as festas do calendário litúrgico bizantino celebram
momentos da história da salvação, da Natividade de Maria até a sua Dormição,
tendo seu centro na celebração do Mistério Pascal da Morte e Ressurreição do
Senhor.
O Rito Romano, por sua vez, possui uma série de festas que
celebram “ideias” teológicas: a Santíssima Trindade, a Eucaristia, o Coração de
Jesus, etc. Dentre estas festas encontra-se a Solenidade de Jesus Cristo, Rei
do Universo, uma das últimas inseridas no calendário litúrgico.
A festa foi instituída para o Rito Romano em 1925 pelo Papa
Pio XI, através da Encíclica “Quas Primas”, inicialmente fixada no último domingo do mês de outubro.
Com a reforma litúrgica do Concílio Vaticano II esta celebração foi transferida para
o último domingo do Ano Litúrgico, destacando assim o alcance escatológico da
realeza de Cristo [2].
Para saber mais, confira nossa postagem sobre a história da Solenidade de Cristo Rei.
É a partir desta índole escatológica da festa de Cristo Rei
que queremos meditar sobre o ícone de Cristo Salvador ou Pantocrator
(Todo-poderoso). Este ícone exprime a afirmação do Catecismo da Igreja
Católica: “toda a vida de Cristo é mistério” (n. 514).
Embora o ícone de Cristo Salvador não faça referência
específica a um momento da história da salvação, mas sim à totalidade do
mistério, o fundamento para sua veneração é a Encarnação do Verbo. Em Cristo, o
Deus invisível se fez visível (Cl 1,15), a ponto de Ele mesmo afirmar: “Quem me
vê, vê o Pai” (Jo 14,9).
Costumamos
encontrar este ícone nas absides das igrejas do Oriente e do Ocidente, sintetizando o mistério de Deus que se
celebra naquele espaço sagrado. Esta imagem do Pantocrator, geralmente sentado
no trono, costuma ocupar três quartos da área icônica “e não é por acaso: 3 é o mistério da vida divina, 4 é o cosmo. Então, o
que é figurado é a presença da vida divina na humanidade” [3].
Além disso, encontramos o ícone do Cristo Salvador sempre à direita
das portas centrais da iconostase nas igrejas bizantinas, fazendo par com o
ícone da Mãe de Deus à esquerda. Diante deste ícone de Cristo o sacerdote
recita a seguinte oração antes da Divina Liturgia:
“Veneramos teu santo
ícone, ó Deus de bondade, implorando o perdão de nossas culpas, ó Cristo, que,
voluntariamente, te deixaste suspender na cruz para livrar da escravidão do
inimigo os que formaste. Por isso, dando-te graças, a Ti clamamos: Encheste de
alegria toda realidade, ó Salvador nosso, quando vieste para salvar o mundo!”
[4].
O ícone
As vestes: As
cores das vestes de Cristo, como já afirmamos em nossa série, traçam um
paralelo com as vestes de Maria: a Mãe veste uma túnica azul, para simbolizar
que carregou no ventre o próprio céu, sob um manto vermelho cobrindo-a quase
inteiramente, para recordar-nos que ela continua sendo humana.
Cristo, ao contrário, veste uma túnica vermelha (cor do
sangue), para indicar que assumiu nossa humanidade (Fl 2,6-8), e um manto azul
(cor do céu) para lembrar-nos que não perdeu sua divindade (Hb 1,1-3).
Completa a indumentária do Senhor uma estola dourada
pendente do ombro direito (Ap 1,13). A própria estola indica seu
múnus sacerdotal, enquanto a cor dourada, reservada na Antiguidade ao rei,
indica seu múnus régio.
O rosto: O rosto
de Cristo neste ícone pode indicar ora bondade, recordando o grande mistério da
misericórdia de Deus, ora severidade, como convite ao arrependimento dos
pecados.
Merece destaque neste sentido o célebre Pantocrator do
Sinai, venerado no Mosteiro de Santa Catarina, um dos mais antigos ícones do
Senhor. Inspirado no julgamento de Mt 25,31-46, o rosto apresenta duas
expressões distintas: o lado direito (o lado da mão que abençoa) é bondoso,
cheio de misericórdia, ao passo que o lado esquerdo (o lado do livro da Lei) é
severo, quase irado.
Ícone original do Pantocrator do Sinai |
Versão "espelhada" de cada metade do ícone |
De toda forma, atrás da cabeça de Cristo costuma ser
representado o nimbo cruciforme, isto é, uma auréola dentro da qual esta
desenhada uma cruz. O grande teólogo oriental Pavel Evdokimov explica: “a cruz assim inscrita no círculo sagrado da
vida divina é o eixo vivo do amor trinitário. O Pai é o amor que crucifica, o
Filho é o amor crucificado, o Espírito Santo é a cruz do amor, seu poder
invencível” [5].
Neste halo costumam-se encontrar as letras gregas Ο - Ω - Ν
que formam a expressão ὁ ὤν, que significa “Aquele que é”, em referência à
autorrevelação de Deus no monte Sinai (Ex 3,14).
A mão: Com a mão
direita, o Cristo abençoa aquele que contempla o seu ícone. O gesto de bênção
tradicional entre os orientais é com três dedos levantados, em alusão às três
Pessoas da Trindade, e com dois dedos juntos, em alusão às duas naturezas de
Cristo, divina e humana.
O livro: Com a
mão esquerda Cristo sustenta o livro da Palavra de Deus, pois “ao encarnar-se, Ele veio nos trazer a boa
notícia, o cumprimento da Lei e dos Profetas” [6], como podemos ver no
início do Evangelho de Lucas, quando Jesus faz a leitura do profeta Isaías na
sinagoga de Nazaré e conclui: “Hoje se cumpriu esta passagem da Escritura que
acabastes de ouvir!” (Lc 4,16-21).
A presença do livro completa as referências ao tríplice
múnus de Cristo, sacerdote (estola), rei (cor dourada) e profeta (livro).
Em algumas versões do ícone o livro está fechado, para
indicar que toda a Escritura aponta para Cristo. Ele costuma segurar o livro então com
quatro dedos, para representar que sua mensagem é destinada aos quatro cantos
do mundo.
Em outras versões o livro está aberto, acessível a todos,
indicando que em Cristo a Revelação completou-se: não há nada mais a ser dito,
nada mais está oculto. “O Criador de
todas as coisas, ao encarnar-se, compôs um livro novo, saído do coração do Pai,
para ser escrito com a pena do Espírito na língua de Deus” [7].
Em cada imagem o iconógrafo escolhe uma frase do Evangelho
que quer ressaltar no livro aberto. Geralmente é uma das autoafirmações de
Jesus - “Eu sou a luz do mundo” (Jo 8,12), “Eu sou o caminho, a verdade e a
vida” (Jo 14,6) - ou um trecho do Prólogo de João: “No princípio era o Verbo e
o Verbo estava com Deus...” (Jo 1,1), “E o Verbo se fez carne e habitou entre
nós” (Jo 1,14).
“Cristo, Luz verdadeira que iluminas e santificas a todos os homens que
vêm a este mundo, faze com que se grave em nós como um selo a luz de teu rosto,
para descobrir nele a luz inacessível, e dirige os nossos passos no cumprimento
de teus mandamentos” [8].
[1] PASSARELLI, Gaetano. O
ícone de Cristo Salvador. São Paulo: Ave Maria, 1996, p. 34. Coleção: Iconostásio, 02.
[2] Sobre a história desta celebração confira:
ADAM, Adolf. O Ano
Litúrgico: Sua história e seu significado segundo a renovação litúrgica.
São Paulo: Loyola, 2019, pp. 130-132.
[3] AUGÉ, Matias. Ano Litúrgico: É o próprio Cristo presente
na sua Igreja. São Paulo: Paulinas, 2019 (Orelha do livro).
[4] SPERANDIO, João Manoel; TAMANINI, Paulo Augusto (orgs.).
Hieratikon: Pequeno Missal bizantino.
Teresina: Editora da Universidade Federal do Piauí, 2015, p. 12.
[5] PASSARELLI, op.
cit., p. 24.
[6] ibid., p. 29.
[7] ibid., p. 30.
[8] ibid., p. 33.
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