No dia 12 de novembro do ano 2000 o Papa João Paulo II celebrou a Santa Missa do XXXII Domingo do Tempo Comum (ano B) na Praça de São Pedro por ocasião do Jubileu do Mundo Agrícola no Ano Santo.
Jubileu do Mundo Agrícola
Homilia do Papa João Paulo II
12 de novembro de 2000
1. “O
Senhor mantém a sua fidelidade para sempre” (Sl 145,6).
Caríssimos
irmãos e irmãs, é precisamente para decantar esta fidelidade do Senhor, que
acabou de ser evocada pelo salmo responsorial, que hoje vos encontrais aqui
para o vosso Jubileu.
Rejubilo-me por
este vosso bonito testemunho, há pouco interpretado e expresso por Dom Fernando
Charrier, a quem agradeço de coração. Dirijo uma deferente saudação também às
personalidades que quiseram manifestar a sua adesão, em representação de vários
Estados e sobretudo das Organizações e dos Organismos das Nações Unidas para a
Alimentação e a Agricultura.
Depois, o meu
pensamento dirige-se aos representantes e membros da “Coldiretti” e das outras organizações de agricultores aqui
presentes, assim como aos membros das federações de panificadores, das cooperativas
agrícola-alimentares e da União Florestal da Itália. Diletos irmãos e irmãs, a
vossa presença tão numerosa faz-nos sentir vivamente a unidade da família
humana e a dimensão universal da nossa oração, oferecida ao único Deus, Criador
do universo e fiel ao homem.
2. A fidelidade de Deus! Para vós, homens do mundo
agrícola, esta é uma experiência quotidiana, constantemente reiterada na
observação da natureza. Conheceis a linguagem do solo e das sementes, das ervas
e das árvores, dos frutos e das flores. Nas paisagens mais diversificadas, das
asperezas das montanhas às planícies irrigadas, debaixo dos céus mais variados,
esta linguagem tem o seu fascínio, que vos é muito familiar. Nesta linguagem,
divisais a fidelidade de Deus às palavras que Ele mesmo pronunciou no terceiro
dia da criação: “A terra produza relva, ervas que produzam semente, e árvores
que deem frutos” (Gn 1,11).
No movimento da natureza, sereno e silencioso mas rico de vida, continua a
palpitar a delícia originária do Criador: “E Deus viu que era bom!” (v. 12).
Sim, o Senhor é fiel para sempre. E vós, peritos nesta linguagem de
fidelidade, linguagem antiga e sempre nova, sois naturalmente os homens do “obrigado”.
O vosso prolongado contato com a maravilha dos produtos da terra faz com que
compreendais que estes são um dom inexaurível da Providência Divina. Por isso a
vossa jornada anual é, por excelência, o “dia do agradecimento”. De resto,
neste ano ela adquire um valor espiritual mais elevado, inserindo-se no Jubileu
que celebra os dois mil anos do nascimento de Cristo. Viestes aqui para dar
graças pelos frutos da terra mas, em primeiro lugar, para reconhecer n'Ele o
Criador e também o fruto mais belo desta nossa terra, “fruto” do seio de Maria,
o Salvador da humanidade e, num certo sentido, do próprio “cosmos”. Com efeito, como diz São Paulo, a criação “tem gemido e
sofrido dores de parto” e nutre a esperança de ser liberta “da escravidão da
corrupção” (Rm 8,21-22).
3. Caríssimos
homens e mulheres que trabalhais na agricultura, o “gemido” da terra leva-nos
com o pensamento ao vosso trabalho, tão
importante e contudo não desprovido de dificuldades e transtornos. No trecho que escutamos, tirado do
Livro dos Reis, recorda-se uma típica situação de sofrimento devido à seca.
Provado pela fome e pela sede, o profeta Elias é o protagonista e ao mesmo
tempo o beneficiador de um milagre da generosidade. Cabe a uma pobre viúva
socorrê-lo, dividindo com ele o último punhado de farinha e as últimas gotas do
seu óleo; a sua generosidade abre o coração de Deus, a tal ponto que o profeta
pode anunciar: “A farinha do receptáculo não se esgotará e o cântaro do óleo
não se esvaziará, enquanto o Senhor não fizer chover sobre a terra”.
A cultura do
mundo agrícola caracteriza-se desde sempre pelo
sentido do risco que incumbe sobre as colheitas em virtude das
imprevisíveis adversidades atmosféricas. Mas hoje, às dificuldades tradicionais
acrescentam-se com frequência ainda outras, devidas
à negligência do homem. A atividade
agrícola dos nossos tempos teve de assumir as consequências da industrialização
e do desenvolvimento nem sempre ordenado das áreas urbanas, do fenômeno da
poluição atmosférica e da degradação ecológica, do descarte de resíduos tóxicos
e do desmatamento. Não obstante confie sempre na ajuda da Providência, o
cristão não pode deixar de assumir iniciativas responsáveis para fazer com que
se respeite e se promova o valor da terra. É necessário que o trabalho agrícola
seja cada vez melhor organizado e sustentado por previdências sociais que o
recompensem plenamente do cansaço que comporta e da utilidade verdadeiramente
notável que o distingue. Se o mundo da técnica mais requintada não se
reconcilia com a linguagem simples da natureza num equilíbrio salutar, a vida
do homem correrá riscos sempre maiores, dos quais desde agora vemos sintomas
preocupantes.
4. Portanto,
caríssimos irmãos e irmãs, agradecei ao Senhor mas ao mesmo tempo sede orgulhosos da tarefa que a
vossa atividade vos confia. Trabalhai
de maneira a resistir às tentações da produtividade e do lucro que não têm em
conta o respeito da natureza. Deus confiou a terra ao homem, “para que a
cultive e a guarde” (cf. Gn 2,15). Se o homem se esquecer deste
princípio e se fizer, em vez de guardião, tirano da natureza, mais cedo ou mais
tarde ela se revoltará.
Mas compreendeis
bem, caríssimos, que este princípio de ordem, que vale tanto para o trabalho
agrícola como para qualquer outro setor da atividade humana, se arraiga no
coração do homem. Então, precisamente o
“coração” é o primeiro terreno
a cultivar. E não é
por acaso que quando Jesus quer explicar a obra da Palavra de Deus, se serve,
mediante a parábola do semeador, de um exemplo iluminador tirado do mundo
agrícola. A Palavra de Deus é uma semente destinada a produzir fruto abundante,
mas infelizmente cai com frequência em terreno pouco adequado, onde os
pedregulhos ou as ervas daninhas e os espinhos - múltiplas expressões do nosso
pecado - a impedem de radicar-se e desenvolver-se (cf. Mt 13,3-23 e paralelos). Por conseguinte,
dirigindo-se precisamente a um agricultor, um Padre da Igreja admoesta: “Então,
quando estás no campo e contemplas a tua fazenda, considera que inclusive tu
mesmo és campo de Cristo e presta atenção tanto a ti como ao teu campo. A mesma
beleza que tu exiges que o teu lavrador ofereça ao teu campo, realiza-a também
tu ao Senhor Deus no cultivo do teu coração...” (São Paulino de Nola, Carta 39, 3 ad Apro et Amanda).
É em virtude
deste “cultivo do espírito” que hoje vos encontrais aqui para celebrar o
Jubileu. Antes ainda do vosso compromisso profissional, apresentais ao Senhor o
trabalho quotidiano da purificação do vosso coração: obra exigente, que jamais
conseguiremos levar a cabo sozinhos. A nossa força é Cristo, de quem a Carta
aos Hebreus há pouco nos recordou que “se manifestou uma vez por todas no fim
dos tempos, para abolir o pecado pelo sacrifício de si mesmo” (Hb 9,26).
5. Este
sacrifício, realizado no Gólgota uma vez para sempre, atualiza-se para nós cada
vez que celebramos a Eucaristia. Nela Cristo torna-se presente com o seu Corpo
e o seu Sangue, para se fazer nosso alimento.
Como deve ser
significativo para vós, homens do mundo agrícola, contemplar no altar este
milagre, que coroa e sublima as próprias maravilhas da natureza! Não é
porventura um milagre diário o que se realiza quando uma semente se transforma
em espiga, da qual amadurecem muitos grãos para serem moídos e depois se
tornarem pão? Não é acaso um milagre da natureza o cacho de uvas suspenso nos
ramos da videira? Já tudo isto traz consigo misteriosamente o sinal de Cristo,
uma vez que “tudo isto foi feito por meio d'Ele e, de tudo o que existe, nada
foi feito sem Ele” (Jo 1,3).
Porém, ainda maior é o evento da graça, com que a Palavra e o Espírito de Deus
transformam o pão e o vinho, “fruto da terra e do trabalho do homem”, em Corpo
e Sangue do Redentor. A graça jubilar que viestes implorar não é senão a superabundância
da graça eucarística, força esta que nos subleva e nos purifica profundamente,
inserindo-nos em Cristo.
6. Diante desta
graça, a atitude a assumir é-nos sugerida pelo Evangelho com o exemplo da viúva
pobre, que ao tesouro acrescenta apenas algumas moedas, mas na realidade dá
mais porque não oferece do que lhe é supérfluo, mas dá “tudo o que possuía para
viver” (Mc 12,44). Assim,
esta mulher desconhecida coloca-se nas pegadas da viúva de Sarepta, que abrira
a sua casa e oferecera a sua mesa a Elias. Ambas são sustentadas pela confiança
no Senhor. Ambas haurem da fé a força de uma caridade heroica.
Elas
convidam-nos a abrir de par em par a nossa celebração jubilar para os
horizontes da caridade, olhando para todos os pobres e necessitados do mundo. Aquilo
que fizermos ao mais pequenino destes, tê-lo-emos feito a Cristo (cf. Mt 25,40).
E como se pode
esquecer que precisamente o âmbito do trabalho agrícola conhece situações que
nos interpelam profundamente? Povos inteiros, que vivem sobretudo do trabalho
agrícola nas regiões economicamente menos desenvolvidas, encontram-se em
situações de indigência. Vastas regiões são devastadas pelas frequentes
calamidades naturais. E por vezes a estas desgraças acrescentam-se as
consequências das guerras que, além de provocarem vítimas, ceifam destruição,
despovoam territórios férteis e até mesmo os abandonam semeados de engenhos
bélicos e de substâncias nocivas.
7. O Jubileu
nasceu em Israel como tempo de
reconciliação e de redistribuição dos bens. Sem
dúvida, acolher hoje esta mensagem não pode significar limitar-se a um pequeno
óbolo. É necessário contribuir para uma cultura da solidariedade que, também a
níveis da política e da economia, tanto nacionais como internacionais, faça
promover iniciativas generosas e eficazes, em vantagem dos povos menos
afortunados.
Hoje, na nossa
oração queremos recordar-nos de todos estes irmãos, comprometendo-nos em
traduzir de novo o nosso amor por eles em solidariedade operosa, a fim de que
todos sem exceção possam gozar os frutos da “terra-mãe” e levar uma vida digna
dos filhos de Deus.
Fonte: Santa Sé.
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