No dia 05 de novembro do ano 2000, durante o Grande Jubileu, o Papa João Paulo II celebrou a Santa Missa na Praça de São Pedro por ocasião do Jubileu dos Governantes e Parlamentares no Ano Santo.
Foi celebrada a Missa do XXXI Domingo do Tempo Comum (ano B).
Jubileu dos Governantes e Parlamentares
Homilia do Papa João Paulo II
05 de novembro de 2000
1. «Escuta,
Israel!» (Dt 6,3-4).
Foi assim, de
forma solene e simultaneamente amável que a palavra de Deus nos fez, há pouco,
o convite para «escutar»... escutar «hoje», «agora». E convidou a fazê-lo, não
singular nem privadamente, mas em conjunto: «Escuta, Israel».
Nesta manhã, tal
apelo é feito de modo particular a vós, Governantes, Parlamentares, Políticos,
Administradores, reunidos em Roma para celebrar o vosso Jubileu. A todos saúdo
cordialmente, com menção especial aos Chefes de Estado aqui presentes.
Por meio da
celebração litúrgica, atualiza-se, aqui e agora, o evento da Aliança com Deus.
Que resposta espera Deus de nós? A indicação que acabamos de receber do texto
bíblico proclamado é decisiva: antes de tudo, é preciso colocar-se à escuta.
Não uma escuta passiva e apática. Os israelitas compreenderam, justamente, que
Deus esperava deles uma resposta ativa e responsável. Por isso, prometeram a
Moisés: «Tu nos contarás tudo o que te tiver dito o Senhor, nosso Deus, e nós,
ouvindo-O, obedeceremos» (Dt 5,24).
Ao assumirem
este compromisso, eles sabiam que estavam a tratar com um Deus de quem podiam
fiar-se. Deus amava o seu povo e queria a sua felicidade. Em troca, Ele pedia
amor. No «Shemá Israel», que ouvimos na 1ª leitura, ao lado do requisito
da fé no único Deus, aparece o mandamento fundamental, que é o do amor a Ele:
«Amarás o Senhor, teu Deus, de todo o teu coração, de toda a tua alma e de
todas as tuas forças» (Dt 6,5).
2. A relação do
homem com Deus não é uma relação de medo, de escravidão ou opressão; pelo contrário,
é uma relação de doação serena, que nasce duma livre opção ditada pelo amor. O
amor que Deus espera do seu povo é resposta ao amor fiel e carinhoso que Ele,
antecipando-Se, lhes manifestou através das sucessivas etapas da história da
salvação.
Por isso mesmo,
os Mandamentos, mais do que um código legal e um regulamento jurídico, foram
vistos pelo povo eleito como um evento de graça, como um sinal da sua pertença
privilegiada ao Senhor. É significativo que Israel nunca fale da Lei como um
fardo ou uma imposição, mas como um dom e um favor: «Felizes somos nós, ó
Israel, porque nos foi revelado o que agrada a Deus» (Br 4,4).
O povo sabe que
o Decálogo é um compromisso vinculativo, mas sabe também que é a condição para
possuir a vida: “Vê - diz o Senhor -, coloco diante de ti a vida e a morte,
isto é, o bem e o mal; ordeno-te que observes os meus mandamentos, para teres a
vida” (cf. Dt 30,15-16.19). Pela sua Lei, Deus não
pretende coagir a liberdade do homem, mas antes libertá-lo de tudo o que pode
comprometer a sua autêntica dignidade e plena realização.
3. Detive-me,
ilustres Governantes, Parlamentares e Políticos, a refletir sobre o sentido e o
valor da Lei divina, porque é um assunto que vos diz intimamente respeito. Não
é, porventura, a vossa canseira diária elaborar leis justas e fazê-las aceitar
e aplicar? Fazeis isto, convencidos de prestar um importante serviço ao homem,
à sociedade, à própria liberdade... e justamente. De fato, a lei humana, quando
é justa, nunca é contra a liberdade, mas ao serviço dela. Tinha-o já intuído
aquele sábio pagão que sentenciara: «Legum servi sumus, ut liberi esse
possimus», «somos servos das leis, para podermos ser livres» (Cícero, De legibus, II, 13).
Mas, a
liberdade, a que alude Cícero, situa-se principalmente ao nível das relações
externas entre cidadãos. Como tal, corre o risco de ficar reduzida a um côngruo
equilíbrio dos interesses de cada um, ou mesmo dos egoísmos contrapostos. Mas,
a liberdade, de que fala a Palavra de Deus, afunda as próprias raízes no
coração do homem, um coração que Deus pode libertar do egoísmo, tornando-o
capaz de se abrir ao amor desinteressado.
Não é por acaso
que, na página do Evangelho há pouco ouvida, Jesus, respondendo ao escriba que
lhe pergunta qual é o primeiro de todos os mandamentos, cita o «Shemá»:
«Amarás o Senhor teu Deus, de todo o teu coração, de toda a tua alma, de toda a
tua mente e de todas as tuas forças » (Mc 12,30). Ressalta o termo «todo»: o
amor de Deus não pode deixar de ser «totalizante». Mas, só Deus é capaz de
purificar o coração humano do egoísmo e «libertá-lo» para a plena capacidade de
amar.
Um homem, com o
coração assim «bonificado», pode abrir-se ao irmão e tomar cuidado dele com a
mesma solicitude com que trata de si mesmo. Por isso Jesus acrescenta: «O
segundo [mandamento] é este: Amarás o teu próximo como a ti mesmo» (Mc 12,31). Quem ama a Deus com todo o
coração e O reconhece como «único Deus» e, por conseguinte, Pai de todos, não
pode deixar de ver irmãos em quantos encontra no seu caminho.
4. Amar o
próximo como a si mesmo. Estou certo que esta frase encontra um eco favorável
no mais íntimo de vós, amados Governantes, Parlamentares, Políticos e
Administradores. Ela coloca hoje a cada um de vós, por ocasião do vosso
Jubileu, uma questão central: como é possível cumprir este mandamento no vosso
delicado e exigente serviço ao Estado e aos cidadãos? A resposta é clara:
vivendo o compromisso político como um serviço. Perspectiva gloriosa, mas
exigente! Com efeito, não pode reduzir-se a uma genérica afirmação de
princípios ou à declaração de boas intenções. O serviço político requer um
empenho concreto e diário, que exige uma grande competência no cumprimento do próprio
dever e uma moralidade a toda a prova na gestão magnânima e transparente do
poder.
Por outro lado,
a coerência pessoal do político necessita de exprimir-se também numa concepção
correta da vida social e política, que é chamado a servir. Sob este aspecto, um
político cristão não pode deixar de fazer constantemente referência aos
princípios que a doutrina social da Igreja desenvolveu ao longo do tempo. Tais
princípios, como se sabe, não constituem uma «ideologia» nem um «programa
político», mas oferecem as linhas fundamentais para uma compreensão do homem e
da sociedade à luz da lei ética universal presente no coração de cada homem e
aprofundada pela revelação evangélica (cf. Sollicitudo
rei socialis, n. 41). Compete a vós, caríssimos irmãos e irmãs empenhados
na política, serdes os seus intérpretes convictos e diligentes.
É certo que, na
aplicação destes princípios à complexa realidade política, será frequentemente
inevitável encontrar âmbitos, problemas e circunstâncias que podem
legitimamente dar lugar a avaliações concretas diversas. Mas, em caso algum, se
pode justificar um pragmatismo que leve, mesmo nos valores essenciais e
basilares da vida social, a reduzir a política à mera mediação de interesses
ou, pior ainda, a uma questão demagógica ou de cálculos eleitorais. Se é
verdade que o direito não pode nem deve cobrir todo o âmbito da lei moral, há
que recordar também que aquele não pode «ir» contra esta.
5. Isto assume
um relevo particular nesta fase de intensas transformações, que vê surgir uma
nova dimensão da política. O declínio das ideologias é acompanhado por uma crise
dos partidos, o que impele a entender de outro modo a representação política e
o papel das instituições. É preciso descobrir novamente o sentido da
participação, envolvendo mais os cidadãos na busca dos caminhos adequados que
permitam avançar para uma realização cada vez mais satisfatória do bem comum.
Neste empenho, o
cristão terá cuidado em não ceder à tentação da contraposição violenta, fonte
frequente de grandes sofrimentos para a comunidade. O diálogo permanece o
instrumento insubstituível para todo o confronto construtivo, tanto no âmbito
dos Estados como nas relações internacionais. E quem poderia assumir esta
«canseira» do diálogo melhor do que o político cristão, que cada dia deve
confrontar-se com aquilo que Cristo qualificou como «o primeiro» dos
mandamentos, isto é, o mandamento do amor?
6. Ilustres
Governantes, Parlamentares, Políticos, Administradores, numerosas e exigentes
são as obrigações que, ao início do novo século e do novo milênio, esperam os
responsáveis da vida pública. Foi precisamente a pensar nisto que, no contexto
do Grande Jubileu, quis - como sabeis - oferecer-vos o apoio dum especial Patrono: o Santo mártir Thomas More.
A sua figura é
verdadeiramente exemplar para todo o que é chamado a servir o homem e a
sociedade no âmbito civil e político. O testemunho eloquente dado por ele é
muito atual num momento histórico que apresenta desafios cruciais para a
consciência de quem tem responsabilidades diretas na gestão da vida pública.
Como estadista, ele colocou-se sempre ao serviço da pessoa, especialmente
quando débil e pobre; as honras e as riquezas não o fascinaram, guiado como era
por um elevado sentido da equidade. Sobretudo, ele nunca desceu a compromissos
com a própria consciência, preferindo o sacrifício supremo a desobedecer à sua
voz. Invocai-o, segui-o, imitai-o! A sua intercessão não deixará de obter-vos,
mesmo nas situações mais árduas, fortaleza, bom humor, paciência e
perseverança.
São os votos que queremos corroborar com a força
do Sacrifício Eucarístico, no qual uma vez mais Cristo Se torna alimento e guia
da nossa vida. O Senhor vos conceda ser políticos segundo o seu Coração, êmulos
de São Thomas More, que foi testemunha corajosa de Cristo e servidor
integérrimo do Estado.
Fonte: Santa Sé.
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