No último domingo, além da Solenidade de Todos os Santos, comemoramos os 70 anos da proclamação do dogma da Assunção da Virgem Maria, através da Bula Munificentissimus Deus do Papa Pio XII, de 01 de novembro de 1950.
O Cardeal Orani João Tempesta, Arcebispo do Rio de Janeiro (RJ), escreveu um texto sobre a ocasião, divulgado pelo site Vatican News e que repropomos aqui em nosso blog:
Dogma da Assunção de
Nossa Senhora: 70 anos!
Cardeal Orani João Tempesta,
Arcebispo de São Sebastião do Rio de Janeiro
No dia 1º de novembro de 1950, o Papa Pio XII, pela
Constituição Apostólica Munificentissimus
Deus (Deus munificentíssimo), proclamou o dogma da Assunção de Nossa
Senhora ao céu em corpo e alma. Eis a razão de refletirmos, de modo um tanto
teológico-catequético, sobre tão importante acontecimento.
Faz-se oportuno, antes de mais, esclarecer o que é um dogma
de fé e como se chega à sua elaboração final. Pois bem: é dogma de fé - a
título genérico - tudo aquilo que o Magistério da Igreja, de modo ordinário e
costumeiro, proclama como verdade revelada por Deus e que, enquanto católicos,
aceitamos na Profissão de Fé ou Credo. Ao lado desse Magistério ordinário, há o
Magistério extraordinário, que é exercido por um Concílio Ecumênico (universal)
ou pelo Papa, doutor supremo da Igreja, com uma declaração ex cathedra (a partir da cadeira) ao definir uma verdade de fé e proclamá-la
solenemente. Um exemplo desse tipo de proclamação, que obriga a todos os fiéis,
se deu com Pio XII, em 1950, ao definir solenemente, a pedido do Povo de Deus,
o dogma da Assunção de Maria ao céu em corpo e alma (cf. Dicionário de Teologia:
Conceitos fundamentais da Teologia atual, vol. I, São Paulo: Loyola, 1970,
pp. 439-440).
No entanto, importa dizer - ao contrário do que, às vezes,
se fala, de modo infundado - que a Igreja não cria ou inventa novos dogmas,
pois ela não está acima, mas a serviço da Palavra de Deus (cf. Constituição Dogmática Dei
Verbum, n. 10; Catecismo da Igreja
Católica, nn. 85-87). Daí, para proclamar solenemente um dogma, faz-se
necessário que:
1) Exista fundamento bíblico, explícito ou implícito, para a
crença em questão;
2) Tal crença seja difundida em âmbito geral e universal, ou
seja, que a ampla maioria dos católicos em todo o mundo a professe como sendo
uma verdade certa de fé.
Sobre o item 1, temos os textos bíblicos que tratam da
glória de Maria. Ei-los: o Sl 44,10.14-16 que diz: “Entre as tuas amadas estão
as filhas do rei; à tua direita uma dama, ornada com ouro de Ofir. Com muitas
joias cravejadas de ouro. Vestida com brocados, a filha do rei é levada para
dentro, até o rei, com séquito de virgens. Introduzem as companheiras a ela
destinadas, e com júbilo e alegria elas entram no palácio do rei”. Também Ct
3,6 no qual se lê: “Que é aquilo que sobe do deserto como colunas de fumaça
perfumada como incenso e mirra, e perfumes dos mercadores?” ou Ap 12,1 que
narra: “Um sinal grandioso apareceu no céu: uma Mulher vestida de sol, tendo a
lua sob os pés e sobre a cabeça uma coroa de doze estrelas”. Com relação a este
último texto, a nota da Bíblia de Jerusalém comenta que essa “Mulher” relembra
aquela de Gn 3,15-16; no entanto, lembra ainda a Igreja, povo santo dos tempos
messiânicos em luta contra o mal. “É possível que João pense também em Maria, a
nova Eva, a filha de Sião, que deu nascimento ao Messias (cf. Jo 19,25)”.
Assunção de Maria (Guido Reni) |
Há também textos que falam da Assunção de Nossa Senhora
ao céu por ser isenta do pecado original: assim, Gn 3,15, ao prever a vitória
da Mulher e sua descendência (o Protoevangelho); e - como comentam os
estudiosos - aplicam-se também à Virgem Maria todos os textos de São Paulo que
demonstram a ressurreição corporal dos seres humanos, tendo o Senhor Jesus por
modelo primeiro (cf. Rm 5–6; 1Tm 1,1;
e, sobretudo, 1Cor 15,21-26;54-57). A diferença, no entanto, da Virgem Maria
para conosco é que nós esperamos essa ressurreição em corpo glorioso no último
dia (cf. Jo 6,44; 1Cor 15,22s; 1Ts 4,16s), ao passo que Nossa Senhora já foi,
de modo singular, assunta ao céu em corpo e alma (cf. Munificentissimus Deus,
nn. 4-6).
Sobre o item 2 vale a pena ler com vagar o que o Papa Pio
XII apresenta na Constituição Apostólica Munificentissimus
Deus, n. 12-37, pois sustenta a fé da Igreja inteira, desde antiquíssima
data, na Assunção de Nossa Senhora ao céu em corpo e alma. Eis a regra do sensus fidei (senso da fé), conforme
ensina São Vicente de Lerins († 450) ao escrever: “É pois, sumamente
necessário, ante as múltiplas e arrevesadas tortuosidades do erro, que a
interpretação dos Profetas e dos Apóstolos se faça seguindo a pauta do sentir
católico. Na Igreja Católica, deve-se ter maior cuidado para manter aquilo em
que se crê em todas as partes, sempre e por todos. Isto é o verdadeiro e
propriamente católico, segundo a ideia de universalidade que se encerra na
própria etimologia da palavra. Mas isto se conseguirá se nós seguimos a
universalidade, a antiguidade e o consenso geral. Seguiremos a universalidade
se confessamos como verdadeira e única fé a que a Igreja inteira professa em
todo o mundo; a antiguidade, se não nos separamos de nenhuma forma dos
sentimentos que notoriamente proclamaram nossos santos predecessores e pais; o
consenso geral, por último, se, nesta mesma antiguidade, abraçamos as
definições e as doutrinas de todos, ou de quase todos, os Bispos e Mestres” (Communitorium, 2).
Ora, Pio XII seguiu essa sábia norma ao considerar os
pedidos de definição dogmática que chegavam à Santa Sé (cf. Munificentissimus Deus,
nn. 7-10) e ao consultar o episcopado do mundo todo por meio da Encíclica Deiparae Virginis Mariae, de 1º de maio
de 1946, na qual colocava aos Bispos a seguinte consulta: “(...) desejamos
vivamente conhecer se vós, veneráveis irmãos, julgais, segundo a vossa
sabedoria e prudência, que a Assunção corporal da bem-aventurada Virgem Maria
pode ser proposta e definida, e se o desejais ansiosamente com o vosso clero e
povo”. Das 1181 respostas recebidas, 1169 - a esmagadora maioria, portanto -
eram totalmente favoráveis à definição do dogma da Assunção da Virgem Maria ao
céu em corpo e alma (cf. Justo
Collantes. La fe de la Iglesia Católica:
Las ideas y los hombres en los documentos doctrinales del Magisterio. 3ª
ed. Madri: BAC, 1986, p. 302). Para Dom Pedro Carlos Cipollini, meu irmão no
episcopado, Bispo de Santo André, SP, esse tipo de consulta aos bispos - como
também Pio IX fizera antes de proclamar o dogma da Imaculada Conceição de
Maria, em 1854 -, é “uma espécie de Concílio por escrito” (O dogma da Imaculada Conceição: Ela apareceu cheia de graça. Brasília:
CNBB, 2017, p. 23). Serve para medir o sensus
fidei sobre o assunto na Igreja: “A totalidade dos fiéis que receberam a
unção do Santo (cf. Jo 2,20.27) não pode enganar-se na fé; e esta sua
propriedade peculiar manifesta-se por meio do sentir sobrenatural da fé do povo
todo, quando este, ‘desde os Bispos até ao último dos leigos fiéis’ (cf. S. Agostinho, De Praed. Sanct. 14, 27: PL 44, 980), manifesta consenso universal
em matéria de fé e costumes” (Constituição Dogmática Lumen Gentium, n. 12). Esse sensus
fidei é “uma ‘peculiaridade’ de ‘todo’ o povo de Deus. No contexto,
mencionam-se ‘a totalidade dos fiéis’, ‘povo todo’, ‘Bispos e fiéis leigos’.
Portanto, não é algo setorial, ou de uma categoria de fiéis” (Dom Pedro Carlos
Cipollini. Os fiéis também sabem: o
sentido da fé (sensus fidei) na Igreja. Brasília: CNBB, 2018, p. 19).
Uma vez bem confirmada a fé de toda a Igreja, Pio XII
proclamou, então, solenemente o dogma da Assunção de Nossa Senhora ao céu em
corpo e alma: “Pelo que, depois de termos dirigido a Deus repetidas súplicas, e
de termos invocado a paz do Espírito de verdade, para glória de Deus onipotente
que à virgem Maria concedeu a sua especial benevolência, para honra do seu
Filho, Rei imortal dos séculos e triunfador do pecado e da morte, para aumento
da glória da sua augusta mãe, e para gozo e júbilo de toda a Igreja, com a
autoridade de nosso Senhor Jesus Cristo, dos bem-aventurados Apóstolos São
Pedro e São Paulo e com a nossa, pronunciamos, declaramos e definimos ser dogma
divinamente revelado que: a imaculada Mãe de Deus, a sempre virgem Maria,
terminado o curso da vida terrestre, foi assunta em corpo e alma à glória
celestial” (Munificentissimus Deus,
n. 44).
Papa Pio XII |
Notemos que a expressão “foi assunta” é muito precisa no
âmbito lógico e teológico, uma vez que só Cristo, nosso Senhor, ascendeu ao
céu, ao passo que a Virgem Santíssima foi assunta ou elevada por Deus. Daí
celebrarmos a Ascensão (elevar-se por si mesmo) do Senhor e a Assunção (ser
elevada por outro) de Nossa Senhora. Tal elevação é muito coerente, pois se a
Mãe de Deus e nossa não esteve, por especial predileção divina, sujeita ao
pecado, também não poderia ficar sob o poder da morte, consequência do pecado (cf. Rm 5,12). Vê-se, com isso, que o
dogma da Assunção corporal de Nossa Senhora está estritamente ligado à sua
Imaculada Conceição, conforme dissemos e bem frisa Pio XII ao escrever que “a
Igreja sempre reconheceu esta grande liberalidade e a perfeita harmonia de
graças, e durante o decurso dos séculos sempre procurou estudá-la melhor.
Nestes nossos tempos refulgiu com luz mais clara o privilégio da assunção
corpórea da Mãe de Deus. Esse privilégio brilhou com novo fulgor quando o nosso
predecessor de imortal memória, Pio IX, definiu solenemente o dogma da
Imaculada Conceição. De fato, esses dois dogmas estão estreitamente conexos
entre si. Cristo com a própria morte venceu a morte e o pecado, e todo aquele
que pelo Batismo de novo é gerado, sobrenaturalmente, pela graça, vence também
o pecado e a morte. Porém Deus, por lei ordinária, só concederá aos justos o
pleno efeito desta vitória sobre a morte, quando chegar o fim dos tempos. Por
esse motivo, os corpos dos justos corrompem-se depois da morte, e só no último
dia se juntarão com a própria alma gloriosa. Mas Deus quis excetuar dessa lei
geral a bem-aventurada virgem Maria. Por um privilégio inteiramente singular
ela venceu o pecado com a sua concepção imaculada; e por esse motivo não foi
sujeita à lei de permanecer na corrupção do sepulcro, nem teve de esperar a
redenção do corpo até ao fim dos tempos. Quando se definiu solenemente que a
virgem Maria, Mãe de Deus, foi imune desde a sua concepção de toda a mancha,
logo os corações dos fiéis conceberam uma mais viva esperança de que em breve o
supremo magistério da Igreja definiria também o dogma da assunção corpórea da
virgem Maria ao céu” (Munificentissimus
Deus, nn. 3-6).
A título pastoral, a definição do dogma da Assunção de Nossa
Senhora ao céu em corpo e alma tem muito a nos dizer. Lembremo-nos de dois
aspectos apontados pelo Papa São João Paulo II, na Audiência Geral de 09 de
julho de 1997:
1) A correta exaltação da mulher: “Na Assunção da Virgem,
podemos ver também a vontade divina de promover a mulher. Em analogia a quanto
se verificara na origem do gênero humano e da história da salvação, no projeto
de Deus o ideal escatológico devia revelar-se não em um indivíduo, mas num
casal. Por isso, na glória celeste, ao lado de Cristo ressuscitado há uma
mulher ressuscitada, Maria: o novo Adão e a nova Eva, primícias da ressurreição
geral dos corpos da humanidade inteira. Sem dúvida, a condição escatológica de
Cristo e a de Maria não devem ser postas no mesmo plano. Maria, nova Eva, recebeu
de Cristo, novo Adão, a plenitude de graça e de glória celeste, tendo sido
ressuscitada pelo poder soberano do Filho mediante o Espírito Santo”;
2) Há um apelo à valorização da dignidade do corpo humano:
“a Assunção de Maria revela a nobreza e a dignidade do corpo humano. Diante das
profanações e do aviltamento a que a sociedade moderna não raro submete em
particular o corpo feminino, o mistério da Assunção proclama o destino
sobrenatural e a dignidade de cada corpo humano, chamado pelo Senhor a tornar-se
instrumento de santidade e a participar na Sua glória. Maria entrou na glória
porque escutou no seu seio virginal e no seu coração o Filho de Deus. Olhando
para ela, o cristão aprende a descobrir o valor do próprio corpo e a
preservá-lo como templo de Deus, na expectativa da ressurreição”.
Que estes ensinamentos, nesta data tão especial, calem fundo
nos nossos corações!
Detalhe da "Coroação da Virgem" de Fra Angelico |
Fonte: Vatican News
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