quarta-feira, 23 de novembro de 2022

História do Tempo do Advento

“Alegrai-vos sempre no Senhor! De novo eu vos digo: Alegrai-vos! O Senhor está próximo!” (Fl 4,4-5).

No Rito Romano, os quatro domingos que antecedem a Solenidade do Natal do Senhor (25 de dezembro) formam o Tempo do Advento, com o qual tem início o Ano Litúrgico. Nesta postagem gostaríamos de traçar brevemente a história desse tempo de alegre expectativa pela vinda do Senhor.

A coroa do Advento, um dos principais símbolos desse tempo

1. As origens do Tempo do Advento

A palavra latina adventus (vinda, chegada), equivalente ao grego παρουσία (parousia) - relacionada também com ἐπιϕάνεια (epifania, manifestação) -, designava na Antiguidade a visita de um deus a seu templo em certas festividades para abençoar os seus fiéis ou o início do reinado de um soberano.

Nos primeiros séculos, os cristãos utilizavam o termo para referir-se tanto à primeira vinda de nosso Senhor Jesus Cristo “segundo a carne” - isto é, à sua concepção no seio de Maria e ao seu nascimento em Belém - quanto à sua última vinda: “E de novo há de vir, em sua glória, para julgar os vivos e os mortos; e o seu reino não terá fim” (Credo Niceno-Constantinopolitano).

São Bernardo de Claraval (†1153) fala ainda de uma “vinda intermediária” do Senhor a cada dia no coração dos fiéis: pela Palavra, pela Eucaristia, pela oração, pela comunhão fraterna...

Para ler a homilia de São Bernardo sobre a tríplice vinda do Senhor, clique aqui.

A “pré-história” do Advento como tempo litúrgico começa no final do século IV nas atuais França e Espanha. Nessas regiões, seguindo o costume oriental, a Epifania do Senhor (06 de janeiro) era um dia dedicado à celebração do Batismo, diferentemente de Roma, onde o Batismo só era administrado na Páscoa.

Assim, o I Concílio de Saragoça (380) menciona um período de três semanas em preparação à Epifania, de 17 de dezembro a 06 de janeiro, entendido aqui como um período de jejum em vista da recepção do Batismo, como na Quaresma [1].

No século V, por sua vez, o Bispo Perpétuo de Tours (†490) prescreve um jejum durante três dias da semana, desde a festa de São Martinho (11 de novembro) até a Epifania. Logo esse jejum é estendido a cinco dias por semana, totalizando 40 dias de jejum. Por isso o Advento futuramente será também chamado de “Quaresma de São Martinho”.

À medida que o Batismo passa a ser celebrado ao longo de todo o ano (e não apenas na Epifania e na Páscoa), o jejum pré-natalício nos Ritos Hispano-Mozárabe e Franco-Galicano é fixado em seis semanas, tendo início no sexto domingo antes do Natal (de 13 a 19 de novembro) e concluindo no dia 24 de dezembro.

Esse período de seis domingos seria acolhido em seguida nas ilhas britânicas (Grã-Bretanha e Irlanda) e em Milão, Itália (Rito Ambrosiano).


A última vinda de Cristo
(Juízo final, detalhe - Marten de Vos)

Esse tempo possuía um acento fortemente escatológico, isto é, de preparação para o juízo final, para a última vinda de Cristo. Com efeito, o final do ano civil e a experiência da “morte” da natureza com o inverno (no hemisfério norte) conduzia os fiéis a meditar sobre os “fins últimos”.

Assim, nessas regiões a Liturgia do Advento era marcadamente penitencial, com a omissão do Glória e do Aleluia na Missa e o uso de paramentos roxos ou mesmo negros.

2. A acolhida do Advento no Rito Romano

Nessa primeira etapa, a preparação para o Natal-Epifania era mais ascética que litúrgica. É apenas nos séculos VII-VIII que encontramos as primeiras referências a orações para o Advento do Senhor (Orationes de Adventu Domini), presentes nos Sacramentários GelasianoGregoriano.

Essas orações, porém, faziam referência à vinda do Senhor em sentido amplo, podendo indicar tanto o Natal quanto a sua vinda no fim dos tempos.

Também as leituras para os domingos desse tempo, como indica por exemplo o Lecionário de Würzburg (séc. VII), referiam-se tanto ao “Advento escatológico”, com o anúncio do juízo final, quanto ao “Advento histórico”, com leituras sobre o cumprimento das profecias em Cristo e o testemunho de São João Batista.

Inclusive em um dos domingos do Advento a Igreja sempre lia o relato da entrada messiânica de Jesus em Jerusalém (Mt 21,1-9) - conservado até hoje no Rito Ambrosiano -, indicando que em Cristo todas as promessas da primeira aliança se cumpriram: “Bendito o que vem em nome do Senhor!”.

A partir do século VIII há uma lenta assimilação do Rito Franco-Galicano pelo Rito Romano, de modo que este acolhe alguns elementos penitenciais no Advento, como a omissão do Glória e o uso dos paramentos roxos. Conserva-se, porém, o canto do Aleluia, omitido apenas na Quaresma.

O Rito Romano também impõe paulatinamente um Advento de quatro domingos, exceto nos Ritos Hispano-Mozárabe e Ambrosiano, que conservaram os seis domingos.

Página do I Domingo do Advento em um antigo Missal:
Com a imagem do juízo final e a antífona Ad te levavi (Sl 24)

A duração do Advento, portanto, varia de 21 a 28 dias, dependendo do dia da semana em que cai o Natal do Senhor. Por exemplo:

- quando o Natal cai em um domingo (como em 2022), o Advento inicia no dia 27 de novembro e seu IV Domingo celebra-se no dia 18 de dezembro;

- quando o Natal cai em uma segunda-feira (como em 2023), o Advento começa no dia 03 de dezembro e o IV Domingo celebra-se no dia 24 de dezembro.

Cabe recordar ainda que algumas comunidades eclesiais protestantes mais tradicionais, como os anglicanos e os luteranos, conservaram o Advento em seus calendários litúrgicos. Algumas tradições desse tempo, com efeito, estão fortemente arraigadas nessas comunidades, como é o caso da célebre “coroa do Advento”.

3. Algumas particularidades litúrgicas do Advento

Antes ainda da assimilação do Advento, em Roma os dias que antecediam o Natal eram marcados pela celebração das Têmporas de inverno (no hemisfério norte), mais especificamente na quarta, sexta e sábado da III semana de dezembro.

Inicialmente as Têmporas não tinham ligação com o Natal, servindo como uma ação de graças a Deus pelos dons da criação. Com o desenvolvimento do Advento, porém, as orações e leituras das Têmporas de dezembro passaram a referir-se ao mistério da Encarnação:
- a Anunciação do anjo a Maria (Lc 1,26-38) na quarta-feira;
- a Visitação de Maria a Isabel (Lc 1,39-47) na sexta-feira;
- e a pregação de São João Batista (Lc 3,1-6) no sábado.


A Missa da quarta-feira servia também como Missa votiva a Nossa Senhora nos sábados do Advento, conhecida como “Missa Rorate”, em alusão à antífona de entrada: “Roráte, coeli, désuper...”, isto é, “Céus, deixai cair o orvalho...” (Is 45,8). Vale recordar que o Advento é um tempo tipicamente mariano (cf. Marialis cultus, nn. 3-4).

Confira nossas postagens sobre as Missas Rorate e sobre a Coletânea de Missas de Nossa Senhora.

Vale destacar que, considerando que a festa da Anunciação do Senhor (25 de março) sempre cai na Quaresma, os ritos ocidentais não romanos a celebram justamente no Advento, destacando a participação da Virgem Maria no mistério da Encarnação: o Rito Hispano-Mozárabe no dia 18 de dezembro e o Rito Ambrosiano no domingo antes do Natal (“Domingo da Encarnação ou da Maternidade Divina”).

Confira nossa postagem sobre a história da Solenidade da Anunciação.

Maria grávida da "Palavra que se fez carne" (Jo 1,14)

Uma vez que no sábado das Têmporas se celebrava uma solene vigília noturna, durante a qual o Bispo costumava conferir o Sacramento da Ordem, no domingo, o IV do Advento, não se celebrava outra Missa: era um “domingo vacante” (dominica vacans).

Assim, o III Domingo do Advento, que de certa forma marca a “metade” desse tempo, era particularmente solene. Esse é até hoje chamado “Domingo Gaudete”, em alusão à antífona de entrada: “Gaudéte in Dómino...”; “Alegrai-vos no Senhor...” (Fl 4,45).

Como no IV Domingo da Quaresma (Domingo Laetare), no III do Advento é permitido utilizar paramentos na cor rosa (mistura de roxo e branco, indicando a proximidade da festa) e se permite ornar o altar com flores, ainda que com certa moderação.

Podemos dizer que o Domingo Gaudete serve de “transição” entre as duas “etapas” do Advento:
- do I Domingo ao dia 16 de dezembro se acentua mais o caráter escatológico desse tempo, “tema” já presente nas últimas semanas do Tempo Comum, com a recordação do juízo final e o convite à vigilância e à conversão;
- de 17 a 24 de dezembro, por sua vez, meditamos os eventos que precedem diretamente o nascimento do Senhor.

4. A celebração do Advento hoje

“O Tempo do Advento possui dupla característica: sendo um tempo de preparação para as solenidades do Natal, em que se comemora a primeira vinda do Filho de Deus entre os homens, é também um tempo em que, por meio desta lembrança, voltam-se os corações para a expectativa da segunda vinda de Cristo no fim dos tempos. Por este duplo motivo, o tempo do Advento se apresenta como um tempo de piedosa e alegre expectativa” (Normas Universais sobre o Ano Litúrgico e o Calendário, n. 39).

A reforma litúrgica do Concílio Vaticano II, conservando sua dupla característica, enriqueceu o Tempo do Advento com diversas leituras e orações, uma vez que no anterior Missale Romanum (1962) possuíam textos próprios apenas os quatro Domingos e os três dias das Têmporas de dezembro.

O novo Lecionário traz, pois, leituras próprias para todos os dias do Advento, assim distribuídas:

a) Leituras dos domingos do Advento:
Os Evangelhos, seguindo o ciclo trienal (anos A-B-C), narram a última vinda do Senhor (1º domingo), a pregação de João Batista (2º e 3º domingos) e os preparativos para o nascimento de Jesus (4º domingo).
As leituras são tomadas das profecias do Antigo Testamento sobre o Messias e das exortações dos Apóstolos sobre alguns “temas” da espiritualidade do Advento.

b) Leituras dos dias de semana do Advento:
Até o dia 16 de dezembro, seguindo o ciclo anual, fazemos a leitura semicontínua da profecia de Isaías. O Evangelho é escolhido em sintonia com a leitura.
A partir da quinta-feira da II semana o Evangelho está relacionado a São João Batista, enquanto a leitura prossegue o relato de Isaías ou está em harmonia com o Evangelho.
De 17 a 24 de dezembro, por sua vez, tem lugar a leitura semicontínua dos “Evangelhos da infância” (Mt e Lc), com leituras do Antigo Testamento em sintonia.


A pregação de São João Batista com o convite à conversão
(Johann Michael Wittmer)

O Missal também foi amplamente enriquecido com várias orações, tomadas dos antigos Sacramentários (Veronense, Gelasiano, Gregoriano...), incluindo dois Prefácios próprios, um para cada etapa do Advento: De duobus adventibus Christi (As duas vindas de Cristo) e De duplici exspectatione Christi (A dupla espera de Cristo).

Ambos sintetizam perfeitamente a dupla dimensão desse tempo: “Revestido da nossa fragilidade, Ele veio a primeira vez... Revestido de sua glória, Ele virá uma segunda vez...” (Prefácio do Advento I).

A tradução brasileira do Missal, por sua vez, inclui ainda outros dois Prefácios, tomados da edição italiana: “Cristo, Senhor e Juiz da História” e “Maria, a nova Eva” [2]. Vale recordar que o Missal anterior à reforma não possuía nenhum Prefácio para o Advento.

Quanto à Liturgia das Horas, vale destacar primeiramente os seis hinos próprios, três para cada etapa do Advento, em sua maioria composições anônimas dos séculos IX-X:

a) Tempo do Advento: até 16 de dezembro
Vésperas: Cónditor alme síderum (Eterna luz dos homens);
Ofício das Leituras: Verbum supérnum pródiens, a Patre (O Verbo eterno do Pai);
Laudes: Vox clara ecce íntonat (Em meio à treva escura).

b) Tempo do Advento: de 17 a 24 de dezembro
Vésperas: Verbum salútis ómnium (Recebe, Virgem Maria);
Ofício das Leituras: Veni, redémptor géntium (Ó vinde, depressa);
Laudes: Magnis prophétae vócibus (Os profetas, com voz poderosa) [3].

Ainda em relação à Liturgia das Horas, é impossível não mencionar aqui as sete Antífonas do Ó ou Antífonas maiores do Advento, entoadas antes e depois do cântico evangélico das Vésperas (oração da tarde), o Magnificat (Lc 1,46-55), de 17 a 23 de dezembro: Ó Sabedoria, Ó Adonai, Ó Raiz de Jessé...


Quanto à piedade popular do tempo do Advento, já possuímos uma série de postagens aqui em nosso blog: a coroa do Advento; o presépio; a árvore de Natal; a novena de Natal... [4].

Antífonas do Ó, síntese da teologia do Advento

5. O Advento nas Igrejas Orientais

O Advento é um tempo litúrgico tipicamente ocidental: seu equivalente mais próximo nos Ritos Orientais é o Tempo da Anunciação (Subara) da tradição siríaca, composto pelos seis domingos anteriores ao Natal no Rito Siríaco-Ocidental ou Antioqueno e por quatro domingos no Rito Siríaco-Oriental ou Caldeu. Nesses domingos se recordam as anunciações a Zacarias, à Virgem Maria e a São José.

No Rito Bizantino, por sua vez, embora se prescrevam 40 dias de jejum - de 15 de novembro a 24 de dezembro, período às vezes referido como “Quaresma de São Filipe” (celebrado nesse rito no dia 14 de novembro) - a preparação litúrgica para o Natal concentra-se nos dois domingos anteriores à festa:

- o segundo domingo antes do Natal (11 a 17 de dezembro) é o “Domingo dos Antepassados” e celebra todos os justos do Antigo Testamento;

- o domingo antes do Natal (18 a 24 de dezembro) é o “Domingo da Genealogia”, com a leitura de Mt 1,1-25 e a recordação de todos os antepassados diretos de Jesus.

Também no Rito Romano, com efeito, os patriarcas e profetas do Antigo Testamento, sobretudo Isaías, estão entre as figuras-modelo do Advento, junto com São João Batista, São José e a Virgem Maria.


Ele veio a primeira vez, revestido da nossa fragilidade; Ele virá uma segunda vez, revestido de sua glória. Enquanto “aguardamos na bendita esperança a vinda gloriosa do Senhor” (cf. Tt 2,13), clamamos: Maranathá! Vem, Senhor Jesus! (1Cor 16,22; Ap 22,20).

A árvore de Jessé (Is 11)
(Ícone do século XVII)

Notas:

[1] I Concílio de Saragoça (380), cânon 4. In: CORDEIRO, José de Leão [org.]. Antologia Litúrgica: Textos Litúrgicos, Patrísticos e Canónicos do Primeiro Milénio. Fátima: Secretariado Nacional de Liturgia, 2003, p. 562.

[2] cf. MISSAL ROMANO. Tradução portuguesa da 2ª edição típica para o Brasil. São Paulo: Paulus, 1991, pp. 406-409.

[3] cf. OFÍCIO DIVINO. Liturgia das Horas segundo o Rito Romano. Tradução para o Brasil da segunda edição típica. São Paulo: Paulus, 1999, v. 1: Tempo do Advento e Tempo do Natal, pp. 103-105.277-280.

[4] cf. CONGREGAÇÃO PARA O CULTO DIVINO E A DISCIPLINA DOS SACRAMENTOS. Diretório sobre Piedade Popular e Liturgia. São Paulo: Paulinas, 2003, pp. 92-98.

Referências:

ADAM, Adolf. O Ano Litúrgico: Sua história e seu significado segundo a renovação litúrgica. São Paulo: Loyola, 2019, pp. 93-100.

AUGÉ, Matias. Ano Litúrgico: É o próprio Cristo presente na sua Igreja. São Paulo: Paulinas, 2019, pp. 233-246.

BERGAMINI, Augusto. Cristo, festa da Igreja: O Ano Litúrgico. São Paulo: Paulinas, 2004, pp. 177-194.

RIGHETTI, Mario. Historia de la Liturgia, v. I: Introducción general; El año litúrgico; El Breviario. Madrid: BAC, 1955, pp. 677-686.


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