“Durante o Sábado Santo a Igreja permanece junto do sepulcro do Senhor, meditando a sua descida aos infernos e esperando na oração e no jejum a sua Ressurreição” (cf. Carta Circular Paschalis Sollemnitatis, n. 73).
Do pôr-do-sol da Sexta-feira Santa ao pôr-do-sol do Sábado Santo a Igreja vive o 2º dia do Tríduo Pascal, o “dia do Cristo Sepultado” [1]. É o dia do grande silêncio, o dia do “grande vazio”...
Desde o início do Cristianismo tanto a Sexta quanto o Sábado eram dedicados exclusivamente ao intenso jejum em preparação para a Páscoa do Senhor: por isso, nesses dois dias não se celebrava a Missa (afinal, a Eucaristia é alimento).
Até hoje o Sábado é considerada um dia “alitúrgico”: não se celebram os sacramentos, exceto a Penitência e a Unção dos Enfermos (sacramentos de cura) e a Comunhão só pode ser dada aos agonizantes, isto é, aos fiéis em perigo de morte (cf. Paschalis Sollemnitatis, n. 75).
Não obstante, nesse dia a Igreja se reúne para as manifestações de piedade popular em honra da Paixão, para a oração da Liturgia das Horas (sobretudo no chamado Ofício das Trevas) e os catecúmenos se reúnem pela última vez para os ritos preparatórios ao Batismo, celebrado na Vigília Pascal na Noite Santa.
O sepultamento do Senhor e sua descida ao Hades
Já no querigma (anúncio fundamental) da Igreja primitiva o sepultamento era evocado como testemunho da verdade da Morte de Cristo (contra aquelas heresias, como o docetismo, que enfatizavam a tal ponto a divindade do Senhor que negavam sua morte), assim como suas aparições aos Apóstolos eram a “prova” da sua Ressurreição:
“Cristo morreu por nossos pecados, segundo as Escrituras, e foi sepultado; ressuscitou ao terceiro dia, segundo as Escrituras e apareceu a Cefas e depois aos Doze” (1Cor 15,3-5; cf. também o Catecismo da Igreja Católica, nn. 624-630).
Assim, a partir da tarde da Sexta-feira Santa e ao longo do Sábado Santo, os fiéis voltam sua atenção para o mistério do sepultamento do Senhor:
A partir do século X, sobretudo no norte da Europa, no final da Celebração da Paixão do Senhor havia o rito da Depositio crucis: a cruz era envolvida em um véu branco e depositada em uma capela lateral da igreja, onde permanecia “sepultada” ao longo do sábado [2].
Em alguns lugares também uma hóstia consagrada era depositada nesse sepulcro e solenemente removida dele no final da Vigília Pascal, quando se realizava uma procissão com o Santíssimo Sacramento ao redor da igreja.
A partir do final da Idade Média, ao invés da cruz se costumava “sepultar” a imagem do Cristo Morto, levada em procissão pelos fiéis na noite da Sexta-feira Santa. Tal procissão, “num clima de austeridade, de silêncio e de oração repropõe, à maneira própria da piedade popular, o pequeno cortejo de amigos e discípulos que, após ter descido da Cruz o corpo de Jesus”, o conduziram ao túmulo (cf. Diretório sobre Piedade Popular e Liturgia, n. 142) [3].
Nas Igrejas Orientais (Católicas e Ortodoxas), com efeito, entre a Sexta e o Sábado é particularmente destacado o Epitaphion (Ἐπιτάφιον), isto é, o ícone do sepultamento do Senhor, geralmente bordado em um pedaço de tecido, o qual é conduzido em procissão ao redor da igreja e venerado pelos fiéis.
Além dos justos José de Arimateia e Nicodemos e das santas mulheres que permaneceram junto ao sepulcro (Mt 27,61 e paralelos), se recorda particularmente nesse dia a Virgem Maria, invocada como Nossa Senhora das Dores ou Nossa Senhora da Piedade.
Com efeito, nesse dia a Virgem Maria foi o “centro moral” da Igreja, nascida do lado aberto de Cristo (cf. Catecismo da Igreja Católica, n. 766): enquanto os Apóstolos se dispersaram, ela permaneceu em pé junto à Cruz (Jo 19,25). Por esse motivo, o sábado permanece na tradição cristã como o dia dedicado à devoção mariana (cf. Diretório sobre Piedade Popular e Liturgia, n. 161).
A Carta Circular Paschalis Sollemnitatis, promulgada pela Congregação para o Culto Divino em 1988, indica, pois, que durante esse 2º dia do Tríduo Pascal “podem ser expostas na igreja, para a veneração dos fiéis, a imagem de Cristo Crucificado ou deposto no sepulcro, ou uma imagem da sua descida aos infernos, que ilustra o mistério do Sábado Santo, bem como a imagem da Santíssima Virgem das Dores” (n. 74).
Confira nossa postagem sobre a devoção às dores da Virgem Maria clicando aqui.
A descida de Cristo aos infernos ou à mansão dos mortos é outro dos mistérios meditados no Sábado Santo.
O termo “inferno” (do latim “infernus”, “o que está abaixo”) traduz aqui o hebraico Sheol e o grego Hades: Cristo, após sua Morte, não desceu ao lugar dos condenados, mas sim à morada dos mortos, onde se encontravam todos os justos do Antigo Testamento “à espera” da Ressurreição (cf. 1Pd 3,18-20).
Esse é o nadir da sua katábasis (descida) ou kenosis (esvaziamento): Deus desce ao mais profundo da experiência humana, a morte. Mas, ao mesmo tempo, é o início da sua anábasis (subida) ou exaltação: com sua Morte, Cristo vence a morte (cf. Hb 2,14-15; Ap 1,17-18) e dá o salto (pessach, isto é, páscoa), para a vida nova da Ressurreição, levando consigo a humanidade redimida. Como bem sintetiza o Catecismo da Igreja Católica, “é da profundidade da morte que Ele faz jorrar a vida” (nn. 631-637).
Nesse sentido, vale destacar a célebre Homilia de um autor anônimo do século IV para o Sábado Santo, lida no Ofício das Leituras desse dia - “Que está acontecendo hoje? Um grande silêncio reina sobre a terra...” [4]. Essa descreve poeticamente a descida de Cristo ao Hades, onde liberta Adão e Eva e todos os justos da primeira aliança, tema retomado, por exemplo, no apócrifo Evangelho de Nicodemos.
Para saber mais, confira nossa postagem sobre o ícone bizantino da Ressurreição clicando aqui.
A Liturgia das Horas do Sábado Santo
Uma vez que não se celebram nem a Eucaristia nem os demais sacramentos no Sábado Santo, a Igreja nesse dia concentra sua oração na Liturgia das Horas.
Vale destacar aqui a oração conjunta do Ofício das Leituras e das Laudes (oração da manhã), que nesse dia é chamada “Ofício das Trevas” ou “Tenebrae” (cf. Paschalis Sollemnitatis, nn. 40.62.73). Durante essa celebração, pois, a igreja é iluminada apenas por velas, que vão sendo paulatinamente apagadas ao longo da oração, simbolizando as trevas da Paixão, da Morte e da Sepultura do Senhor.
Os ritos preparatórios para os sacramentos da Iniciação Cristã
Ao longo dos séculos a Vigília Pascal foi sendo gradativamente antecipada para a tarde e mesmo para a manhã do Sábado Santo, até que a reforma da Semana Santa promovida pelo Papa Pio XII (†1958) em 1955 a devolveu ao seu caráter noturno original.
Assim, com a restauração do catecumenato pelo Concílio Vaticano II (cf. Sacrosanctum Concilium, n. 64) e com a promulgação do Ritual da Iniciação Cristã de Adultos (RICA) em 1972, a manhã do Sábado Santo voltou a ser dedicada à preparação imediata à recepção dos sacramentos da Iniciação Cristã.
A Quaresma é, pois, o Tempo da Purificação e da Iluminação para aqueles que receberão o Batismo na Vigília Pascal: celebra-se o “rito da eleição ou da inscrição do nome” dos catecúmenos no I Domingo da Quaresma e os “escrutínios” nos Domingos III a V da Quaresma (cf. RICA, pp. 62-81)
Na manhã do Sábado Santo, por sua vez, após uma oração inicial e uma Liturgia da Palavra, celebram-se os ritos de preparação para o Batismo:
- a recitação do Símbolo (Redditio Symboli): após a entrega do Símbolo da fé (Traditio Symboli), isto é, do Creio, durante o itinerário catequético ou durante a III semana da Quaresma (RICA, pp. 48-56), os catecúmenos “devolvem” a fé à Igreja, demonstrando que a acolhem livre e conscientemente;
- o rito do Éfeta, isto é, a abertura dos sentidos para ouvir e proclamar a Palavra de Deus (cf. Mc 7,31-37);
- a última unção com o Óleo dos Catecúmenos (cf. RICA, pp. 81-92).
Em Roma, nos primeiros séculos, esses ritos tinham lugar à hora nona (9h) na Basílica do Latrão, junto à qual se encontra o célebre Batistério onde os catecúmenos receberiam os sacramentos na noite pascal.
Para saber mais sobre o Batistério do Latrão, confira nossa postagem sobre as Vésperas pascais clicando aqui.
A celebração iniciava com uma oração de exorcismo (isto é, uma oração invocando a proteção contra o mal) que o sacerdote recitava sobre os catecúmenos, traçando em suas frontes o sinal da cruz e impondo as mãos sobre eles. A esse exorcismo estava unido o rito do Éfeta, como indicamos acima: o sacerdote tocava os ouvidos e a boca dos candidatos, exortando-os a sempre ouvir e proclamar a Palavra de Deus.
Seguia-se a unção com o Óleo dos Catecúmenos, que na Traditio Apostolica (séc. III) é chamado justamente “óleo do exorcismo”. Santo Ambrósio de Milão (†397) indica que o catecúmeno é “ungido como um atleta de Cristo”: como a unção com óleo fortalece os músculos do atleta, a oração da Igreja o sustenta na luta contra o mal [5].
Uma vez ungidos, os catecúmenos faziam sua renúncia ao mal voltados para o Ocidente, isto é, para o sol poente: “Eu renuncio a ti, Satanás...”. Voltando-se em seguida para o Oriente, para o sol nascente (cf. Lc 1,78-79), recitavam uma fórmula de consagração a Cristo, por exemplo: “A ti me dedico, ó luz incriada”.
O Papa Francisco fez referência a esse rito em sua Catequese do dia 02 de agosto de 2017, sobre o Batismo como porta da esperança.
Na sequência, tinha lugar a Redditio Symboli. Na época, os catecúmenos recebiam o Símbolo da fé (Traditio Symboli) na quarta-feira da IV semana da Quaresma, durante uma sugestiva celebração na Basílica de São Paulo fora-dos-muros. Agora demonstravam ter acolhido a fé, recitando de memória o Creio diante do sacerdote.
Após uma oração final, os catecúmenos retornavam às suas casas na expectativa da Vigília Pascal na Noite Santa, quando receberiam os sacramentos da Iniciação Cristã (Batismo, Confirmação, Eucaristia).
Notas:
[1] A contagem do Tríduo Pascal, assim como a dos domingos e solenidades, segue a tradição judaica, na qual o dia começa ao pôr-do-sol da véspera:
- do pôr-do-sol da Quinta ao pôr-do-sol da Sexta: 1º dia (o dia do Crucificado);
- do pôr-do-sol da Sexta ao pôr-do-sol do Sábado: 2º dia (o dia do Cristo Sepultado);
- do pôr-do-sol do Sábado ao pôr-do-sol do Domingo: 3º dia (o dia do Ressuscitado).
[2] cf. RIGHETTI, Mario. Historia de la Liturgia, v. I: Introducción general; El año litúrgico; El Breviario. Madrid: BAC, 1945, pp. 810-812.
[3] CONGREGAÇÃO PARA O CULTO DIVINO E A DISCIPLINA DOS SACRAMENTOS. Diretório sobre Piedade Popular e Liturgia: Princípios e orientações. São Paulo: Paulinas, 2003, p. 125.
[4] OFÍCIO DIVINO. Liturgia das Horas segundo o Rito Romano. Tradução para o Brasil da segunda edição típica. São Paulo: Paulus, 1999, v. II, pp. 439-441.
[5] AMBRÓSIO DE MILÃO. Os Sacramentos (De Sacramentiis), I, 2. in: CORDEIRO, José de Leão [org.]. Antologia Litúrgica: Textos Litúrgicos, Patrísticos e Canónicos do Primeiro Milénio. Secretariado Nacional de Liturgia: Fatima, 2003, p. 520.
Referências:
AUGÉ, Matias. Ano Litúrgico: É o próprio Cristo presente na sua Igreja. São Paulo: Paulinas, 2019, pp. 169-172.
BERGAMINI, Augusto. Cristo, festa da Igreja: O ano litúrgico. São Paulo: Paulinas, 1994, pp. 341-350.
CONGREGAÇÃO PARA O CULTO DIVINO. Paschalis Sollemnitatis: A preparação e celebração das festas pascais. Brasília: Edições CNBB, 2018. Coleção: Documentos da Igreja, n. 38.
RIGHETTI, Mario. Historia de la Liturgia, v. II: La Eucaristia; Los Sacramentos; Los Sacramentales. Madrid: BAC, 1946, pp. 676-681.
RITUAL DA INICIAÇÃO CRISTÃ DE ADULTOS. Tradução portuguesa para o Brasil da edição típica. São Paulo: Paulus, 2001.
SCHUSTER, Cardeal Alfredo Ildefonso. Liber Sacramentorum: Note storiche e liturgiche sul Messale Romano; vol. III: Il Testamento Nuovo nel Sangue del Redentore (La Sacra Liturgia dalla Settuagesima a Pasqua). Torino-Roma: Marietti, 1933, pp. 230-234.
Postagem publicada originalmente em 04 de abril de 2012. Revista e ampliada em 05 de março de 2022. Originalmente esta postagem tratava também dos ritos da Vigília Pascal. Esta, porém, não pertence liturgicamente ao Sábado, mas já ao Domingo, 3º dia do Tríduo Pascal.
Para acessar nossas postagens sobre a história da Vigília Pascal, clique nos links abaixo:
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