Cardeal Raniero Cantalamessa, OFMCap
III pregação de Quaresma
12 de março de 2021
“E vós, quem dizeis que Eu sou?” - Jesus Cristo, verdadeiro Deus
[Para ler a meditação anterior, dedicada a Jesus Cristo, verdadeiro homem, clique aqui]
Recordemos
brevemente o tema e o espírito destas meditações quaresmais. Propusemo-nos
reagir à tendência difundidíssima de falar da Igreja “etsi Christus non daretur”, como se Cristo não existisse, como se
fosse possível entender tudo dela, prescindindo d’Ele. Propusemo-nos, porém,
reagir a isso de um modo diverso do habitual: não buscando convencer do erro o mundo
e seus meios de comunicação, mas renovando e intensificando a nossa fé em
Cristo. Não em chave apologética, mas espiritual.
Para
falar de Cristo escolhemos a via mais segura, que é a do dogma: Cristo
verdadeiro homem, Cristo verdadeiro Deus, Cristo uma só pessoa. Aquela do dogma
é uma via para nada velha e ultrapassada. “A terminologia dogmática da Igreja
primitiva - escreveu Kierkegaard, um dos maiores representantes do pensamento
moderno existencialista - é como um castelo encantado, onde repousam em um sono
profundo os príncipes e as princesas mais graciosos. Basta apenas despertá-los,
para que se levantem em toda a sua glória” [1].
Assim,
trata-se justamente disso: de despertar os dogmas, de infundir neles vida, como
quando o Espírito entrou nos ossos ressequidos vistos por Ezequiel e “eles
viveram e se puseram de pé” (Ez 37,10). Na vez passada, buscamos fazer isso, em
relação ao dogma de Jesus “verdadeiro homem”; hoje, queremos fazê-lo com o
dogma de Cristo “verdadeiro Deus”.
O
dogma de Cristo “verdadeiro Deus”
Em
111 ou 112 depois de Cristo, Plínio, o Jovem, governador da Bitínia e do Ponto,
escreveu uma carta ao Imperador Trajano, pedindo-lhe indicações sobre como se
comportar nos processos instaurados contra os cristãos. Segundo as informações obtidas
- escreve ao Imperador - “toda a sua culpa ou erro consistia em se reunirem
habitualmente em um dia estabelecido antes da aurora e entoar, em coros
alternados, um hino a Cristo como a um Deus”: carmen Christo quasi Deo
dicere [2].
Estamos na Ásia Menor, a poucos anos da morte do último apóstolo, João, e os
cristãos, na sua Liturgia, proclamam já a divindade de Cristo! A fé na
divindade de Cristo nasce com o nascer da Igreja.
Mas
o há hoje desta fé? Façamos, antes de tudo, uma breve reconstrução da história
do dogma da divindade de Cristo. Esse foi sancionado solenemente no Concílio de
Niceia de 325, com as palavras que repetimos no Credo: “Creio em um só Senhor,
Jesus Cristo... Deus verdadeiro de Deus verdadeiro, gerado, não criado,
consubstancial ao Pai”. Para além dos termos usados, o sentido profundo da
definição de Niceia - como se deduz de Santo Atanásio, que foi sua testemunha e
intérprete mais fidedigno - era que, em toda língua e em toda época, Cristo
deve ser reconhecido como Deus no sentido mais forte e mais alto que a palavra
“Deus” tem em determinada língua e cultura, e não em qualquer outro sentido
derivado e secundário.
Foi
preciso quase um século de assentamento antes que esta verdade fosse recebida,
na sua radicalidade, por toda a cristandade. Uma vez superados os refluxos de
arianismo devidos à chegada de povos bárbaros que tinham recebido a primeira
evangelização dos heréticos (godos, visigodos e longobardos), o dogma se tornou
patrimônio pacífico de toda a Cristandade, tanto oriental como ocidental.
A
Reforma Protestante o manteve intacto e mesmo aumentou sua centralidade;
contudo, inseriu nele um elemento que, mais tarde, dará margem a prolongamentos
negativos. Para reagir ao formalismo e ao nominalismo que reduziam os dogmas a
exercícios de virtuosismo especulativo, os reformadores protestantes afirmam:
“Conhecer Cristo significa reconhecer os seus benefícios, não indagar as suas
naturezas e os modos da Encarnação” [3]. O Cristo “para
mim” se torna mais importante do que o Cristo “em si”. Ao conhecimento
objetivo, dogmático, opõe-se um conhecimento subjetivo, íntimo; ao testemunho
exterior da Igreja (e, em certo sentido, das próprias Escrituras) sobre Jesus,
antepõe-se o “testemunho interior” que o Espírito Santo presta a Jesus no coração
de cada fiel.
O
Iluminismo e o racionalismo encontraram nisso o terreno adequado para a
demolição do dogma. Para Kant, o que conta é o ideal moral proposto por Cristo,
mais do que a sua pessoa. A teologia liberal do século XIX reduz praticamente o
Cristianismo à dimensão ética e, particularmente, à experiência da paternidade
de Deus. Despoja-se o Evangelho de todo o sobrenatural: milagres, visões, a Ressurreição
de Cristo. O Cristianismo torna-se apenas um sublime ideal moral que pode prescindir
da divindade de Cristo e até mesmo da sua existência histórica. Gandhi, que,
infelizmente, conhecera o Cristianismo nesta versão redutiva, escreveu: “Não me
importaria nem mesmo se alguém demonstrasse que o homem Jesus na realidade
jamais viveu e que o que se lê nos Evangelhos não é nada mais do que fruto da
imaginação do autor. Porque o Sermão da Montanha permaneceria verdadeiro aos
meus olhos” [4].
A
versão mais próxima a nós desta tendência redutiva do Cristianismo é aquela
popularizada por Bultmann, em nome da demitologização: “A fórmula ‘Cristo é
Deus’ - ele escreve - é falsa em qualquer sentido, quando ‘Deus’ é considerado
como ser objetivável, seja ela entendida segundo Ário ou segundo Niceia, em
sentido ortodoxo ou liberal. Ela é correta se ‘Deus’ for entendido como o
evento da atuação divina” [5]. Em palavras menos
veladas: Cristo não é Deus, mas em Cristo há (ou opera)
Deus. Estamos bem distantes, como se vê, do dogma definido em Niceia. Diz-se
querer, deste modo, interpretar o dogma antigo com categorias modernas, mas, na
realidade, não se faz outra coisa que repropor, às vezes nos mesmos termos,
soluções arcaicas (Paulo de Samósata, Marcelo de Ancira, Fotino) já avaliadas e
rejeitadas pela consciência da Igreja.
Se,
das discussões dos teólogos, passamos ao que, da divindade de Cristo, pensam as
pessoas comuns nos países cristãos, de acordo com várias pesquisas, ficamos sem
palavras. Após um Concílio local dominado pelos opositores de Niceia (Rimini,
ano 359), São Jerônimo escreveu: O mundo inteiro “emitiu um gemido e se
surpreendeu em se rever ariano” [6]. Nós teríamos muito
mais razão que ele de gemer e fazer hoje nossa a sua exclamação de estupor.
Cristo
“verdadeiro Deus” nos Evangelhos
Mas
agora devemos ter fé em nosso intuito. Deixemos portanto de lado o que pensa o
mundo e busquemos despertar em nós a fé na divindade de Cristo. Uma fé
luminosa, não desfocada, ao mesmo tempo objetiva e subjetiva, isto é, não só
crida, mas também vivida. Também hoje, a Jesus não interessa tanto o que dizem
d’Ele “os homens”, mas o que dizem d’Ele os seus discípulos. A pergunta está
perenemente no ar: “E vós, quem dizeis que Eu sou?” (Mt 16,15). É a ela que queremos tentar responder nesta meditação.
Partamos
justamente dos Evangelhos. Nos Sinóticos a divindade de Cristo jamais é declarada abertamente,
mas é continuamente subentendida. Recordemos algumas frases de
Jesus: “O Filho do Homem tem, na terra, autoridade para perdoar pecados” (Mt 9,6); “Ninguém conhece o Filho, senão
o Pai, e ninguém conhece o Pai, senão o Filho” (Mt 11,27); “O céu e a terra passarão, mas as minhas palavras jamais
passarão” (frase esta, presente idêntica em todos os três Sinóticos: Mc 13,31;
Mt 24,35; Lc 21,33); “O Filho do Homem é senhor também do sábado” (Mc 2,28); “Quando o Filho do Homem vier
em sua glória, acompanhado de todos os anjos, Ele se assentará em seu trono
glorioso. Todas as nações da terra serão reunidas diante d’Ele, e Ele separará
uns dos outros, assim como o pastor separa as ovelhas dos cabritos” (Mt 25,31-32). Quem, a não ser Deus, pode
perdoar os pecados em nome próprio e proclamar-se juiz final da humanidade e da
história?
Como
basta um fio de cabelo ou uma gota de saliva para reconstruir o DNA de uma
pessoa, assim, basta apenas uma linha do Evangelho, lida sem preconceitos, para
reconstruir o DNA de Jesus, para descobrir o que Ele pensava de si mesmo, mas
não podia dizer abertamente para não ser incompreendido. A transcendência
divina de Cristo literalmente transpira de cada página do Evangelho.
Mas
é sobretudo João quem fez da divindade de Cristo o objetivo primário do seu Evangelho,
o tema que tudo unifica. Ele conclui o seu Evangelho
dizendo: “Estes (sinais), porém, foram escritos para que creiais que Jesus é o
Cristo, o Filho de Deus, e para que, crendo, tenhais a vida em seu nome” (Jo 20,31), e conclui a sua Primeira Carta quase com as mesmas
palavras: “Eu vos escrevo estas coisas, a vós que credes no nome do Filho
de Deus, para que saibais que tendes a vida eterna” (1Jo 5,13).
Um
dia, há alguns anos, eu estava celebrando a Missa em um mosteiro de clausura. O
trecho evangélico da Liturgia era a página de João em que Jesus pronuncia
repetidamente o seu “Eu Sou”: “De fato, se não crerdes que ‘Eu Sou’, morrereis
nos vossos pecados... Quando tiverdes levantado o Filho do Homem, então
sabereis que ‘Eu Sou’... Antes que Abraão existisse, Eu Sou” (Jo 8,24.28.58). O fato de que as
palavras “Eu Sou”, contrariamente a toda regra gramatical, no Lecionário fossem
escritas com duas maiúsculas, unido certamente a qualquer outra causa mais misteriosa,
fez acender uma fagulha. Aquela palavra “explodiu” dentro de mim.
Eu
sabia, dos meus estudos, que no Evangelho
de João havia numerosos “Eu Sou”, ego eimi, pronunciados por
Jesus. Sabia que isso era um fato importante para a sua cristologia; que, com eles,
Jesus se atribui o nome que Deus reivindica para si em Isaías: “Para que saibais e acrediteis em mim, e compreendais que
Eu sou” (Is 43,10). Mas o meu
conhecimento era literário e inerte, e não suscitava emoções particulares.
Naquele dia, era algo totalmente diverso. Estávamos no Tempo Pascal e parecia
que o próprio Ressuscitado proclamava o seu nome divino na presença do céu e da
terra. O seu “Eu Sou!” iluminava e enchia o universo. Eu me sentia muito
pequeno, como alguém que assiste, por acaso e distante, a uma cena improvisa e
extraordinária, ou a um grandioso espetáculo da natureza. Não se tratou mais do
que uma simples emoção de fé, nada mais, mas daquelas que, quando passam,
deixam no coração uma marca indelével.
É
de maravilhar-nos a iniciativa que o Espírito de Jesus permitiu a João levar a
termo. Ele abraçou os temas, os símbolos, as expectativas, enfim, tudo aquilo
que havia de religiosamente vivo, tanto no mundo judaico como naquele
helenístico, pondo tudo isso a serviço de uma única ideia (ou, melhor, de uma
única pessoa): Jesus Cristo é o Filho de Deus e o Salvador do mundo. Ele
aprendeu a língua dos homens do seu tempo, para gritar nela, com todas as suas
forças, a única verdade que salva, a Palavra por excelência, “o Verbo”.
Somente
uma certeza revelada, que tem por detrás de si a autoridade e a força mesma de Deus
e do seu Espírito, podia se desdobrar em um livro com tal insistência e
coerência, chegando, de mil pontos diferentes, sempre à mesma conclusão: a
identidade total de natureza entre o Pai e o Filho: “Eu e o Pai somos um” (Jo 10,30). “Um” (neutro unum),
note-se bem, não uma só pessoa (masculino unus)!
“Corde creditur”: Crê-se com o coração
Como
para a humanidade, também a propósito da divindade de Cristo agora podemos
mostrar como o antigo dogma, objetivo e ontológico, é capaz de acolher e
valorizar o dado moderno subjetivo e funcional, enquanto, como vimos, o contrário
foi um tanto difícil. À lógica dialética do “aut-aut” (ou-ou), opomos aquela católica do “et-et” (e-e).
Nenhuma
das chamadas “cristologias dp baixo”, aquelas, para entendermos, que partem do
Jesus “profeta escatológico e sumo revelador do Pai”, ou do Jesus “homem em
quem a consciência de Deus atingiu o seu máximo nível” (F. Schleiermacher), ou
ainda, do Cristo “pessoa humana em quem subsiste a natureza divina” (e não
pessoa divina que subsiste em uma natureza humana!): nenhuma, repito, destas
cristologias conseguiu se elevar até abraçar o verdadeiro mistério da fé cristã
e salvaguardar a plena divindade de Cristo. A razão do fracasso é explicada por
Jesus e foi bem compreendida por João, que a expõe: “Ninguém subiu ao céu,
senão aquele que desceu do céu” (Jo
3,13). De fato, é possível para Deus, se assim o quiser, fazer-se homem, mas
não é possível ao homem fazer-se Deus!
Com
estas premissas, podemos voltar a valorizar toda a dimensão subjetiva e
personalista do dogma: o Cristo “para mim” posto em primeiro plano pelos
Reformadores, o Cristo conhecido por seus benefícios e pelo testemunho interior
do Espírito. Este é o melhor fruto do ecumenismo, aquele das “diferenças
reconciliadas”, não contrapostas, como diz o Santo Padre. Não é uma
concessão “pro bono pacis”,
mas uma necessidade e um enriquecimento recíproco. Todos nós precisamos dar à
nossa fé esta dimensão pessoal, íntima, para que ela não seja morta repetição
de fórmulas antigas ou modernas. Sobre este ponto, somos todos chamados em
causa: católicos, ortodoxos e protestantes, da mesma maneira.
São
Paulo diz que “é com o coração que se crê para a justiça, e com a boca se
professa a fé para a salvação” (Rm
10,10). “É das raízes do coração que sobe a fé”, comenta Agostinho [7]. Na visão católica, como naquela ortodoxa, e também,
em seguida, naquela protestante, a profissão da reta fé, isto
é, o segundo momento deste processo, frequentemente tomou tanto relevo a ponto
de deixar na sombra aquele primeiro momento que se desenvolve nas profundidades
escondidas do coração. Todos os tratados De fide, escritos depois
de Niceia, tratam da ortodoxia da fé; hoje, se diria da fides quae,
não da fides qua, das coisas a serem cridas, não do ato pessoal do
crer.
Este
primeiro ato da fé, justamente porque acontece no coração, é um ato “singular”,
que não pode ser feito senão pelo indivíduo, em total solidão com Deus. No Evangelho de João, ouvimos Jesus fazer
repetidamente a pergunta: “Crês isto?” (Jo
9,35; 11,26); e cada vez esta pergunta suscita do coração o grito da fé: “Sim,
Senhor, eu creio!”. Também o Símbolo de fé da Igreja começa assim, no singular:
“Creio”, não: “Cremos”.
Também
nós devemos aceitar passar por este momento, submeter-se a este exame. Se, à
pergunta de Jesus: “Crês isto?”, alguém responde imediatamente, sem nem pensar:
“Claro que creio”, e acha até estranho que uma pergunta semelhante seja
dirigida a um fiel, a um sacerdote ou a um Bispo, provavelmente quer dizer que
ainda não se descobriu o que significa realmente crer, jamais experimentou a
grande vertigem da razão que precede o ato de fé. A divindade de Cristo é o ponto
mais alto, o “Everest” da fé. Crer em um Deus nascido em um estábulo e morto em
uma cruz! Isto é muito mais exigente do que crer em um Deus distante, que cada
um pode representar ao próprio gosto.
É
preciso começar a demolir em nós, fiéis e homens da Igreja, a falsa persuasão
de que estamos bem no que se refere à fé e que, no mais, devemos trabalhar
ainda pela caridade. Quem sabe não seja um bem, por um pouco de tempo, não
querer demonstrar nada a ninguém, mas interiorizar a fé, redescobrir as suas
raízes no coração!
Devemos
recriar as condições para uma retomada da fé na divindade de Cristo. Reproduzir
o impulso de fé do qual nasceu o dogma de Niceia. O corpo da Igreja outrora
produziu um esforço supremo, com o qual se ergueu, na fé, acima de todos os
sistemas humanos e de todas as resistências da razão. A maré da fé uma vez
subiu a um nível máximo e sua marca permaneceu na rocha. No entanto, é preciso
que se repita a subida, não basta a marca. Não basta repetir o Credo de Niceia;
é preciso renovar o impulso de fé que então se teve na divindade de Cristo e do
qual não houve igual nos séculos.
A
praxe da Igreja (e não só da Igreja Católica!) prevê uma profissão de fé da
parte do candidato, antes de receber o mandato de ensinar teologia. Esta
profissão de fé tem comportado, frequentemente, além da recitação do Credo, o
compromisso de ensinar algumas coisas precisas - e a não ensinar outras
igualmente precisas - que, naquele momento da história, eram temas
particularmente sensíveis. Pensemos no juramento antimodernista.
Parece-me
que se deveria verificar sobretudo uma coisa: que quem ensina teologia aos
futuros ministros do Evangelho creia firmemente na divindade de Cristo.
Verificar isto mediante um franco e fraterno discernimento, melhor do que com
um juramento. Nada mais foi alcançado dos juramentos. Houve toda uma geração de
sacerdotes após o Concílio (certamente, não por causa do
Concílio!) que saiu do seminário e se apresentou à ordenação com ideias muito
confusas e desfocadas sobre quem é o Jesus que deviam anunciar ao povo e tornar
presente sobre o altar na Missa. Muitas crises sacerdotais, estou convencido,
começaram e começam aqui.
Ecumenismo
e evangelização
O
que evidenciamos tem importantes consequências também para o ecumenismo
cristão. Existem, de fato, dois ecumenismos possíveis: aquele da fé e aquele da
incredulidade; um que reúne todos aqueles que creem que Jesus é o Filho de Deus
e que Deus é Pai, Filho e Espírito Santo, e um que reúne todos aqueles que se
limitam a “interpretar” (cada um à sua maneira e segundo o próprio sistema
filosófico) estas coisas. Um ecumenismo no qual, no máximo, todos creem as
mesmas coisas porque ninguém crê mais realmente em nada, no sentido forte da
palavra “crer”.
A
distinção fundamental dos espíritos, no âmbito da fé, não é a que distingue
entre católicos, ortodoxos e protestantes, mas a que distingue aqueles que
creem no Cristo Filho de Deus e aqueles que não creem; segundo São Paulo,
“todos os que, em todo lugar, invocam o nome de Nosso Senhor Jesus Cristo,
Senhor deles e nosso” (1Cor 1,2), e
os que não o invocam.
Há
uma unidade nova e invisível que vai se formando e que passa pelas diversas
Igrejas. Esta unidade invisível e espiritual, por sua vez, tem necessidade
vital do discernimento da teologia e do magistério, para não cair no perigo do
fundamentalismo ou de um subjetivismo desenfreado. Mas, uma vez vislumbrada e
superada esta tentação, trata-se de um fato que não podemos mais nos permitir
ignorar.
O
verdadeiro “ecumenismo espiritual” não consiste somente em rezar pela unidade
dos cristãos, mas em compartilhar a mesma experiência do Espírito Santo.
Consiste naquela que Agostinho chama “societas
sanctorum”, a comunhão dos santos, que, às vezes, dolorosamente, pode não
coincidir com a “communio sacramentorum”,
ou seja, com a condivisão dos mesmos sinais sacramentais.
A
fé na divindade é importante sobretudo em vista da evangelização.
Existem edifícios ou estruturas metálicas feitas de forma que, se você tocar em
um determinado ponto ou levantar uma determinada pedra, tudo desmorona. Assim é
o edifício da fé cristã, e esta sua “pedra angular” é a divindade de Cristo.
Removida esta, tudo se desagrega e desmorona, começando pela fé na Trindade. De
quem é formada a Trindade, se Cristo não é Deus? Não por nada, basta por entre
parênteses a divindade de Cristo que se põe entre parênteses também a Trindade.
Santo
Agostinho dizia: “Não é grande coisa crer que Jesus morreu; nisto creem até os
pagãos e os ímpios; todos creem nisso. Mas é algo realmente grande crer que Ele
ressuscitou”. E concluía: “A fé dos cristãos é a Ressurreição de Cristo” [8]. A mesma coisa se deve dizer da humanidade e divindade
de Cristo, das quais sua Morte e Ressurreição são as respectivas manifestações.
Todos creem que Jesus seja homem; o que faz a diversidade entre crentes e não
crentes é crer que ele também seja Deus. A fé dos cristãos é a divindade de
Cristo!
“Conhecer
Cristo é reconhecer os seus benefícios”
“Conhecer
Cristo é reconhecer os seus benefícios”, nós ouvimos. Concluamos justamente
recordando dois destes benefícios, que são os mais capazes de responder às
necessidades profundas do homem de hoje e de sempre: a necessidade de sentido e
a rejeição à morte.
Não
é verdade que o homem moderno deixou de se propor a questão sobre o sentido da
vida. Há alguns anos, um conhecido intelectual escreveu: “A religião morrerá.
Não é um desejo, muito menos uma profecia. É já um fato que está aguardando seu
cumprimento... Passada a nossa geração e talvez aquela de nossos filhos, ninguém
mais considerará a necessidade de dar um sentido à vida um problema realmente
fundamental... A técnica levou a religião ao seu crepúsculo”
[9]. Claro, não se interroga sobre o sentido último da vida quem se prestou
a outras coisas... Mas, quando estas vão desaparecendo, uma depois da outra -
juventude, saúde, fama - muitos voltam a se propor aquela pergunta. Fazem-na
ainda mais neste tempo de pandemia em que, fechados frequentemente em casa,
homens e mulheres finalmente têm tido o tempo de refletir e interrogar-se.
Há
uma pintura, dentre as mais famosas da arte moderna, que representa
visivelmente aonde leva a convicção de que a vida não tem sentido. Em um fundo
avermelhado que inspira angústia, um homem atravessa correndo uma ponte,
passando por dois indivíduos que parecem alheios e indiferentes a tudo; tem os
olhos rabiscados; com as mãos em torno à boca, emite um grito e se entende que
é um grito de desespero. Falo, naturalmente, da pintura “O Grito” de Edvard
Munch.
Jesus
disse: “Eu sou a luz do mundo. Quem me segue, não andará em meio às trevas” (Jo 8,12). Quem crê em Cristo tem a
possibilidade de resistir à grande tentação da falta de sentido da vida, que
frequentemente leva ao suicídio. Quem crê em Cristo não caminha nas trevas:
sabe de onde vem, sabe para onde vai e o que fazer enquanto isso. Sobretudo,
sabe que é amado por alguém e que este alguém deu a vida para demonstrá-lo!
Jesus
também disse: “Eu sou a ressurreição e a vida. Quem crê em mim, ainda morra,
viverá” (Jo 11,25). E o evangelista,
mais tarde, escreverá aos cristãos: “Eu vos escrevo estas coisas, a vós que
credes no nome do Filho de Deus, para que saibais que tendes a vida eterna
(...). Ele é o verdadeiro Deus e a Vida eterna” (1Jo 5,13.20). Justamente porque Cristo é “verdadeiro Deus”, é também
“vida eterna” e dá a vida eterna. Isto não nos tira necessariamente o medo da
morte, mas dá ao fiel a certeza de que a nossa vida não termina com ela.
Repensemos
em algo de tudo isso quando, domingo, proclamamos o segundo artigo do Credo: Creio em um só Senhor, Jesus Cristo, Filho
unigênito de Deus, nascido do Pai antes de todos os séculos: Deus de Deus, luz
da luz, Deus verdadeiro de Deus verdadeiro, gerado, não criado, consubstancial
ao Pai. Por ele todas as coisas foram feitas.
Notas:
[1] Søren Kierkegaard, Diário, II, A 110 (ano
1837).
[2] Plínio, o Jovem, Epistularum liber, X, 96.
[3] Filipe Melâncton, Loci theologici, in: Corpus Reformatorum,
Brunsvigae, 1854, p. 85.
[4]
Gandhi, Buddismo, Cristianesimo,
Islamismo, Tascabili Newton Compton, Roma, 1993, p. 53.
[5] R. Bultmann, Glauben und Verstehen, II,
Tübingen 1938, p. 258.
[6] Jerônimo, Dialogus contra Luciferianos, 19
(PL 23, 181): «Ingemuit totus orbis et arianum se esse miratus est».
[7] Agostinho, Comentário ao Evangelho de João, 26, 2
(PL 35,1607).
[8] idem, Enarrationes
in Psalmos 120, 6.
[9] cf. Revista “MicroMega” 2, 2000, pp. 187s.
Fonte: Vatican News, com algumas correções nossas a partir do original italiano divulgado no site do Cardeal Cantalamessa.
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