No próximo dia 19 de março a Igreja de Rito Romano celebra a Solenidade de São José, Esposo da Bem-aventurada Virgem Maria. Nos dias que antecedem esta celebração, publicamos o texto da Exortação Apostólica Redemptoris Custos (Guardião do Redentor) promulgada pelo Papa João Paulo II em 1989 sobre a figura e a missão de São José na vida de Cristo e da Igreja.
Nesta postagem seguem os nn. 1-8 do Documento, que compõem o capítulo 1 e parte do capítulo 2. Estes parágrafos são dedicados a fundamentar a dupla relação de São José: com a Virgem Maria e com Jesus.
João Paulo II
Exortação Apostólica Redemptoris Custos
Sobre a figura e a missão de São José na vida de Cristo e da Igreja
Introdução
1. Chamado a proteger o Redentor, «José fez como lhe ordenara o anjo do Senhor e recebeu a sua esposa» (Mt 1,24).
Inspirando-se no Evangelho, os Padres da Igreja, desde os primeiros
séculos, puseram em relevo que São José, assim como cuidou com amor de Maria e
se dedicou com empenho jubiloso à educação de Jesus Cristo [1], assim
também guarda e protege o seu Corpo Místico, a Igreja, da qual a Virgem
Santíssima é figura e modelo.
No centenário da publicação da Carta Encíclica Quamquam pluries do
Papa Leão XIII [2] e na esteira da plurissecular
veneração para com São José, desejo apresentar à vossa consideração, amados irmãos
e irmãs, algumas reflexões sobre aquele a quem Deus «confiou a guarda dos seus
tesouros mais preciosos» [3]. É para mim uma alegria cumprir este dever
pastoral, no intuito de que cresça em todos a devoção ao Patrono da Igreja
universal e o amor ao Redentor, que ele serviu de maneira exemplar.
Desta forma, todo o povo cristão não só recorrerá a São José com maior
fervor e invocará confiadamente o seu patrocínio, mas também terá sempre diante
dos olhos o seu modo humilde e amadurecido de servir e de «participar» na
economia da salvação [4]. Tenho para mim, efetivamente, que o fato de se
considerar novamente a participação do Esposo de Maria no mistério divino
permitirá à Igreja, na sua caminhada para o futuro juntamente com toda a
humanidade, reencontrar continuamente a própria identidade, no âmbito deste
desígnio redentor, que tem o seu fundamento no mistério da Encarnação.
Foi precisamente neste mistério que José de Nazaré «participou» como
nenhuma outra pessoa humana, à exceção de Maria, a Mãe do Verbo Encarnado. Ele
participou em tal mistério simultaneamente com Maria, envolvido na realidade do
mesmo evento salvífico, e foi depositário do mesmo amor, em virtude do qual o
eterno Pai «nos predestinou a sermos adotados como filhos, por intermédio de
Jesus Cristo» (Ef 1,5).
Ícone de São José "Redemptoris Custos" (Guardião do Redentor) |
I. O contexto evangélico
O matrimônio com Maria
2. «José, filho de Davi, não temas receber
contigo Maria, tua esposa, pois o que nela se gerou é obra do Espírito
Santo. Ela dará à luz um filho, a quem porás o nome de Jesus, porque ele salvará
o seu povo dos seus pecados» (Mt 1,20-21).
Nestas palavras está contido o núcleo central da
verdade bíblica sobre São José; é o momento da sua existência ao qual se
referem em particular os Padres da Igreja.
O evangelista São Mateus explica o significado
deste momento, esboçando também a maneira como José o viveu. Todavia, para se
compreender plenamente o seu conteúdo e o seu contexto, é importante ter
presente a passagem paralela do Evangelho de São Lucas. Com efeito,
a origem da gravidez de Maria, por «obra do Espírito Santo» - posta em relação
com o versículo que diz «ora, o nascimento de Jesus Cristo foi assim: Estando
Maria, sua Mãe, desposada com José, antes de habitarem
juntos, achou-se que tinha concebido por virtude do Espírito
Santo» (Mt 1,18) encontra uma descrição mais ampla e mais
explícita naquilo que lemos em São Lucas sobre a Anunciação do
nascimento de Jesus: «O anjo Gabriel foi enviado por Deus a uma cidade de
Galileia, chamada Nazaré, a uma virgem desposada com um homem chamado José, da
casa de Davi. E o nome da virgem era Maria » (Lc 1,26-27). As
palavras do anjo: «Alegra-te, ó cheia de graça, o Senhor está contigo» (Lc 1,28)
provocaram em Maria uma perturbação íntima e simultaneamente estimularam-na a
refletir. Então, o mensageiro tranquilizou a Virgem e, ao mesmo tempo,
revelou-lhe o desígnio especial de Deus a seu respeito: «Não tenhas receio,
Maria, pois achaste graça diante de Deus. Eis que conceberás e darás à luz um
filho, ao qual porás o nome de Jesus. Ele será grande e será chamado Filho
do Altíssimo. O Senhor Deus lhe dará o trono de seu pai Davi» (Lc 1,30-32).
O Evangelista tinha afirmado, pouco antes, que, no
momento da Anunciação, Maria estava desposada com um homem chamado José, da
casa de Davi. A natureza destes esponsais é explicitada,
indiretamente, quando Maria, depois de ter ouvido aquilo que o mensageiro
dissera do nascimento do filho, pergunta: «Como se realizará isso, pois eu
não conheço homem?» (Lc 1,34). E então é-lhe dada esta
resposta: «O Espírito Santo descerá sobre ti e a potência do Altíssimo
estenderá sobre ti a sua sombra. Por isso mesmo, Aquele que vai nascer será
santo e há de chamar-se Filho de Deus» (Lc 1,35). Maria, embora
fosse já «desposada» com José, permanecerá virgem, pois o menino, nela
concebido desde o momento da Anunciação, era concebido por obra do Espírito
Santo.
Neste ponto o texto de São Lucas coincide com o
texto de São Mateus (Mt 1,18) e
serve-nos para explicar o que lemos neste último. Se, depois dos desponsórios
com José, se verificou que Maria «tinha concebido por obra do Espírito Santo»,
este fato corresponde a todo o conteúdo da Anunciação e, em particular, às
últimas palavras pronunciadas por Maria: «Faça-se em mim segundo a tua
palavra» (Lc 1,38). Correspondendo ao desígnio claro de Deus,
Maria, com o passar dos dias e das semanas, manifesta-se, diante das pessoas
que contatava e diante de José, como estando «grávida», como mulher que deve
dar à luz e que traz em si o mistério da maternidade.
3. Nestas circunstâncias, «José, seu esposo, sendo
justo e não a querendo expor à infâmia, resolveu desvincular-se dela
secretamente» (Mt 1,19). Ele não sabia como comportar-se
perante a «surpreendente» maternidade de Maria. Buscava, certamente, uma
resposta para essa interrogação inquietante; mas procurava, sobretudo, uma
maneira airosa de sair daquela situação difícil para ele. Enquanto andava
«a pensar nisto, apareceu-lhe, em sonho, um anjo do Senhor, que lhe
disse: “José, filho de Davi, não temas receber contigo Maria,
tua esposa, pois o que nela se gerou é obra do Espírito Santo. Ela dará à
luz um filho, a quem porás o nome de Jesus, porque ele salvará o seu povo dos
seus pecados”» (Mt 1,20-21).
Existe uma estreita analogia entre a «Anunciação»
do texto de São Mateus e a do texto de São Lucas. O mensageiro divino
introduz José no mistério da maternidade de Maria. Aquela que, segundo a
lei, é a sua «esposa», permanecendo virgem, tornou-se mãe pela virtude do
Espírito Santo. E quando o Filho que Maria traz no seio vier ao mundo há de
receber o nome de Jesus. Este nome era bem conhecido entre os israelitas; e,
por vezes, era por eles posto aos filhos. Neste caso, porém, trata-se
de um Filho que - segundo a promessa divina - realizará
plenamente o que este nome significa: Jesus - Yehoshua, que quer dizer «Deus salva».
O mensageiro dirige-se a José como
«esposo de Maria»; dirige-se a quem, a seu tempo, deverá pôr tal nome ao Filho
que vai nascer da Virgem de Nazaré, desposada com ele. Dirige-se a José,
portanto, confiando-lhe os encargos de um pai terreno em relação ao
Filho de Maria.
«Despertando do sono, José fez como lhe ordenara o
anjo do Senhor e recebeu a sua esposa» (Mt 1,24). Ele recebeu-a com
todo o mistério da sua maternidade; recebeu-a com o Filho que havia de vir ao
mundo, por obra do Espírito Santo: demonstrou deste modo uma
disponibilidade de vontade, semelhante à disponibilidade de Maria, em ordem
àquilo que Deus lhe pedia por meio do seu mensageiro.
II. O depositário do Mistério de Deus
4. Quando Maria, pouco tempo depois da Anunciação, se dirigiu a casa de
Zacarias para visitar Isabel sua parente, ouviu, precisamente quando a saudava,
as palavras pronunciadas pela mesma Isabel, «cheia do Espírito Santo» (cf. Lc 1,41). Para além
das palavras que se relacionavam com a saudação do anjo na Anunciação, Isabel
disse: «Feliz daquela que acreditou que teriam cumprimento as coisas que lhe
foram ditas da parte do Senhor» (Lc 1,45). Estas palavras
constituíram o pensamento-guia da Encíclica Redemptoris Mater, com
a qual tive a intenção de aprofundar o ensinamento do Concílio Vaticano II,
quando afirma: «A Bem-aventurada Virgem Maria avançou no caminho da fé e
conservou fielmente a união com seu Filho até à Cruz» [5], «indo adiante» [6]
de todos aqueles que, pela via da fé, seguem Cristo.
Ora ao iniciar-se esta peregrinação, a fé de Maria encontra-se
com a fé de José. Se Isabel disse da Mãe do Redentor: «Feliz daquela que
acreditou», esta bem-aventurança pode, em certo sentido, ser referida também a
José, porque, de modo análogo, ele respondeu afirmativamente à Palavra de Deus,
quando esta lhe foi transmitida naquele momento decisivo. A bem da verdade,
José não respondeu ao «anúncio» do anjo como Maria; mas «fez como
lhe ordenara o anjo do Senhor e recebeu a sua esposa». Isto que ele fez
é puríssima «obediência da fé» (cf. Rm 1,5;
16,26; 2Cor 10,5-6).
Pode dizer-se que aquilo que José fez o uniu, de uma
maneira absolutamente especial, à fé de Maria: ele aceitou como
verdade proveniente de Deus o que ela já tinha aceitado na Anunciação.
O Concílio ensina: «A Deus que revela é devida a “obediência da fé” (...); pela
fé, o homem entrega-se total e livremente a Deus, prestando-lhe “o obséquio pleno
da inteligência e da vontade” e dando voluntário assentimento à sua revelação»
[7]. A frase acabada de citar, que diz respeito à própria essência
da fé, aplica-se perfeitamente a José de Nazaré.
Imagem do Santuário de São José em Wadowice (Polônia), cidade natal de João Paulo II |
5. Ele tornou-se, portanto, um depositário singular do mistério «escondido
desde todos os séculos em Deus» (cf. Ef 3,9),
como se tornara Maria, naquele momento decisivo que é chamado pelo Apóstolo «plenitude
dos tempos», quando «Deus enviou o seu Filho, nascido de mulher... para
resgatar os que se encontravam sob o jugo da lei e para que recebêssemos a
adopção de filhos» (Gl 4,4-5). «Aprouve a Deus - ensina o Concílio -
na sua bondade e sabedoria, revelar-se a si mesmo e dar a conhecer o mistério
da sua vontade (cf. Ef 1,9),
pelo qual os homens, através de Cristo, Verbo Encarnado, têm acesso ao Pai no
Espírito Santo e se tornam participantes da natureza divina (cf. Ef 2,18; 2Pd 1,4)»
[8].
Deste mistério divino, juntamente com Maria, José é o primeiro depositário. Simultaneamente com Maria - e também em relação com Maria - ele participa nesta fase culminante da auto-revelação de Deus em Cristo; e nela participa desde o primeiro momento. Tendo diante dos olhos os textos de ambos os Evangelistas, São Mateus e São Lucas, pode também dizer-se que José foi o primeiro a participar na mesma fé da Mãe de Deus e que, procedendo deste modo, ele dá apoio à sua esposa na fé na Anunciação divina. Ele é igualmente quem primeiro foi posto por Deus no caminho daquela «peregrinação da fé», na qual Maria, sobretudo na altura do Calvário e do Pentecostes, irá adiante, de maneira perfeita [9].
6. A caminhada própria de José, a sua peregrinação da fé terminaria
antes; ou seja, antes que Maria esteja de pé junto à Cruz no Gólgota e
antes que Ela - tendo Cristo voltado para o seio do Pai se encontre no Cenáculo
do Pentecostes, no dia da manifestação ao mundo da Igreja, nascida pelo poder
do Espírito da verdade. E, contudo, a caminhada da fé de José seguiu a
mesma direção, permaneceu totalmente determinada pelo mesmo mistério, de
que ele, juntamente com Maria, se tinha tornado o primeiro depositário. A Encarnação
e a Redenção constituem uma unidade orgânica e indissolúvel, na qual a
«economia da Revelação se realiza por meio de ações e palavras, intimamente
relacionadas entre si» [10]. Precisamente por causa desta unidade, o Papa João
XXIII, que tinha uma grande devoção por São José, estabeleceu que no Cânon Romano
da Missa (Oração Eucarística I), memorial perpétuo da Redenção, fosse inserido
o nome dele, ao lado do nome de Maria e antes do dos Apóstolos, dos Sumos
Pontífices e dos Mártires [12].
O serviço da paternidade
7. Como se deduz dos textos evangélicos, o matrimônio
com Maria é o fundamento jurídico da paternidade de José. Foi para garantir a
proteção paterna a Jesus que Deus escolheu José como esposo de Maria. Por
conseguinte, a paternidade de José - uma relação que o coloca o mais perto
possível de Cristo, termo de toda e qualquer eleição e predestinação (cf. Rm 8,28-29) - passa
através do matrimônio com Maria, ou seja, através da família.
Os Evangelistas, embora afirmem claramente que
Jesus foi concebido por obra do Espírito Santo e que naquele matrimônio a
virgindade foi preservada (cf. Mt 1,18-25; Lc 1,26-38),
chamam a José esposo de Maria e a Maria esposa de José (cf. Mt 1,16. 18-20; Lc 1,27; 2,5).
E também para a Igreja, se por um lado é importante
professar a concepção virginal de Jesus, por outro, não é menos
importante defender o matrimônio de Maria com José,
porque é deste matrimônio que depende, juridicamente, a paternidade de José.
Daqui se compreende a razão por que as gerações são enumeradas segundo a
genealogia de José: «E porque não o deviam ser - pergunta-se Santo Agostinho -
através de José? Não era porventura José o marido de Maria? (...). A Escritura
afirma, por meio da autoridade angélica, que ele era o marido. Não
temas, diz, receber contigo Maria, tua esposa, pois o que nela se
gerou é obra do Espírito Santo. E lhe é mandado que imponha o nome ao
menino, se bem que não seja nascido do seu sêmen. Aí se diz, ainda: Ela
dará à luz um filho, a quem porás o nome de Jesus. A Escritura sabe que
Jesus não nasceu do sêmen de José; e porque ele mostra preocupação quanto à
origem da gravidez dela (Maria), é dito: provém do Espírito Santo.
E, todavia, não lhe é tirada a autoridade paterna, uma vez que lhe é ordenado
que seja ele a dar o nome ao menino. Por fim, também a própria Virgem Maria, bem
consciente de não ter concebido Cristo da união conjugal com ele, chama-o
apesar disso pai de Cristo» [12].
O filho de Maria é também filho
de José, em virtude do vínculo matrimonial que os une: «Por motivo daquele
matrimônio fiel, ambos mereceram ser chamados pais de Cristo,
não apenas a Mãe, mas também aquele que era seu pai, do mesmo modo que era
cônjuge da Mãe, uma e outra coisa por meio da mente e não da
carne» [13]. Neste matrimônio não faltou nenhum dos requisitos que o
constituem: «Naqueles pais de Cristo realizaram-se todos os bens das núpcias: a
prole, a fidelidade e o sacramento. Conhecemos a prole, que é o
próprio Senhor Jesus; a fidelidade, porque não houve nenhum
adultério; e o sacramento, porque não se deu nenhum divórcio» [14].
Analisando a natureza do matrimônio, quer Santo
Agostinho quer Santo Tomás de Aquino situam-na constantemente na «união
indivisível dos ânimos», na «união dos corações» e no «consenso» [15]; elementos
estes, que, naquele matrimônio, se verificaram de maneira exemplar. No momento
culminante da história da salvação, quando Deus manifestou o seu amor pela
humanidade, mediante o dom do Verbo, deu-se exatamente o matrimônio de
Maria e José, em que se realizou com plena «liberdade» o «dom esponsal de
si» acolhendo e exprimindo tal amor [16]. «Nesta grandiosa empresa da renovação
de todas as coisas em Cristo, o matrimônio, também ele renovado e purificado,
torna-se uma realidade nova, um sacramento da Nova Aliança. E eis que no limiar
do Novo Testamento, como já sucedera no princípio do Antigo, há um casal. Mas,
enquanto o casal formado por Adão e Eva tinha sido a fonte do mal que inundou o
mundo, o casal formado por José e Maria constitui o vértice, do qual se expande
por toda a terra a santidade. O Salvador deu início à obra da salvação com esta
união virginal e santa, na qual se manifesta a sua vontade omnipotente de
purificar e santificar a família, que é santuário do amor humano e berço da
vida» [17].
Quantos ensinamentos promanam disto, ainda hoje,
para a família! Uma vez que «a essência e as funções da família se definem, em
última análise, pelo amor» e que à família «é confiada a missão de
guardar, revelar e comunicar o amor, qual reflexo vivo e participação do
amor de Deus pela humanidade e do amor de Cristo pela Igreja sua Esposa» [18],
é na Sagrada Família, nesta originária «Igreja doméstica» [19], que todas as
famílias devem espelhar-se. Nela, efetivamente, «por um misterioso desígnio
divino, viveu escondido durante longos anos o Filho de Deus: ela constitui,
portanto, o protótipo e o exemplo de todas as famílias cristãs» [20].
8. São José foi chamado por Deus para servir diretamente
a Pessoa e a missão de Jesus, mediante o exercício da sua paternidade:
desse modo, precisamente, ele «coopera no grande mistério da Redenção, quando
chega a plenitude dos tempos» e é verdadeiramente «ministro da salvação» [21]. A
sua paternidade expressou-se concretamente «em ter feito da sua vida um
serviço, um sacrifício, ao mistério da Encarnação e à missão redentora
inseparavelmente ligada ao mesmo; em ter usado da autoridade legal, que lhe
competia em relação à Sagrada Família, para lhe fazer o dom total de si mesmo,
da sua vida e do seu trabalho; e em ter convertido a sua vocação humana para o
amor familiar na sobre-humana oblação de si, do seu coração e de todas as
capacidades, no amor que empregou ao serviço do Messias germinado na sua casa»
[22].
A Liturgia, ao recordar que foram confiados «à
solícita guarda de São José, na aurora dos novos tempos, os mistérios da
salvação» [23], esclarece também que ele «foi constituído por Deus chefe da sua
Família, para que, servo fiel e prudente, guardasse com paterna solicitude o
seu Filho Unigênito» [24]. O Papa Leão XIII realça a sublimidade desta
missão: «Ele entre todos, impõe-se pela sua sublime dignidade, dado que, por
disposição divina, foi guardião e, na opinião dos homens, pai do Filho de Deus.
Daí se seguia, portanto, que o Verbo de Deus fosse submisso a José, lhe
obedecesse e lhe prestasse aquela honra e aquela reverência, que os filhos
devem aos próprios pais» [25].
E uma vez que não se pode conceber que a uma tarefa
tão sublime não correspondessem as qualidades requeridas para desempenhá-la
adequadamente, importa reconhecer que José teve em relação a Jesus, «por
especial dom do Céu, todo aquele amor natural e toda aquela solicitude afetuosa
que o coração de um pai possa experimentar» [26].
Com a autoridade paterna sobre Jesus, Deus terá
comunicado também a José o amor correspondente, aquele amor que tem a sua fonte
no Pai «do qual toda a paternidade, nos céus e na terra, toma o nome» (Ef 3,15).
Nos Evangelhos acha-se claramente exposto o múnus
paterno de José para com Jesus. Com efeito, a salvação, que passa através da
humanidade de Jesus, realiza-se nos gestos que fazem parte do quotidiano da
vida familiar, respeitando aquela «condescendência» que é inerente à economia
da Encarnação. Os Evangelistas estiveram muito atentos ao fato de que na vida
de Jesus nada foi deixado ao acaso, mas nela tudo se desenrolou em conformidade
com um plano divinamente preestabelecido. A fórmula muitas vezes repetida:
«Aconteceu assim, para que se cumprisse...», acompanhada de uma referência do
acontecimento descrito a um texto do Antigo Testamento, tem o intuito de
acentuar a unidade e a continuidade do projeto, que tem o seu «cumprimento» em
Cristo.
Com a Encarnação, as «promessas» e as «figuras» do
Antigo Testamento tornam-se «realidade»: lugares, pessoas, acontecimentos e
ritos entrelaçam-se de acordo com ordens divinas bem precisas, transmitidas
mediante o ministério dos anjos e recebidas por criaturas particularmente
sensíveis à voz de Deus. Maria é a humilde serva do Senhor, preparada desde
toda a eternidade para a missão de ser Mãe de Deus; e José é aquele que Deus
escolheu para ser o «ordenador do nascimento do Senhor» [27], aquele que
tem o encargo de prover a inserção «ordenada» do Filho de Deus no mundo,
mantendo o respeito pelas disposições divinas e pelas leis humanas. Toda a
chamada vida «privada» ou «oculta» de Jesus foi confiada à sua guarda.
São José com o Menino Jesus (Bartolomé Esteban Murillo) |
Notas
[1] cf. S. Ireneu, Adversus
Haereses, IV, 23, 1: S. Ch. 100/72, pp. 692-694.
[2] Leão XIII, Carta Encíclica Quamquam pluries (15 de
agosto de 1889): Leonis XIII P. M. Acta, IX (1890), pp. 175-182.
[3] Congregatio Sacrorum Rituum, Decreto Quemadmodum Deus (08
de dezembro de 1870): Pii IX P. M. Acta, pars I, vol. V, p. 282;
Pio IX, Carta Apostólica Inclytum Partiarcham (07 de julho de
1871), loc. cit., pp. 331-335.
[4] cf. S. João
Crisóstomo, In Matth. Hom., V, 3: PG 57, 57-58. Os
Doutores da Igreja e os Sumos Pontífices, também se baseando na identidade do
nome, indicaram em José do Egito o protótipo de José de Nazaré, na medida em
que se teriam esboçado no primeiro as funções e a grandeza do segundo, de ser
guardião dos mais preciosos tesouros de Deus Pai, o Verbo Encarnado e a sua
Santíssima Mãe: cf., por exemplo, S.
Bernardo, Super missus est, Hom. II, 16: S.
Bernardi Opera, Ed. Cist., IV, 33-34; Leão XIII, Carta Encíclica. Quamquam
pluries: loc. cit., p. 179.
[5] Concílio Ecumênico Vaticano II, Constituição dogmática sobre a
Igreja Lumen gentium, n. 58.
[6] cf. ibid., n.
63.
[7] Concílio Ecumênico Vaticano II, Constituição dogmática sobre a
Divina Revelação Dei Verbum, n. 5.
[8] ibid., n. 2.
[9] cf. Lumen gentium,
n. 63.
[10] Dei Verbum, n. 2.
[11] Sagrada Congregação dos Ritos, Decreto Novis hisce
temporibus (13 de novembro de 1962): AAS 54 (1962),
p. 873.
[12] S. Agostinho, Sermo 51, 10, 16: PL 38,
342.
[13] idem, De nuptiis
et concupiscentia, I, 11, 12: PL 44, 421; cf. De consensu evangelistarum,
II, 1, 2: PL 34, 1071; Contra Faustum, III,
2: PL 42, 214.
[14] S. Agostinho, De nuptiis et concupiscentia, I, 11,
13: PL 44, 421; cf. Contra Julianum, V, 12,
46: PL 44, 810.
[15] cf. idem, Contra Faustum, XXIII, 8: PL 42,
470-471; De consensu evangelistarum, II, 1, 3: PL 34,
1072; Sermo 51, 13, 21: PL 38, 344-345; S.
Tomás de Aquino, Summa Theol., III, q. 29, a. 2 in conclus.
[16] cf. Audiências de 09 e 16 de
janeiro e de 20 de fevereiro de 1980: Insegnamenti, III/1
(1980), pp. 88-92; 148-152; e 428-431.
[17] Paulo VI, Alocução ao Movimento «Equipes Notre-Dame» (04 de maio de
1970), n. 7: AAS 62 (1970), p. 431; uma exaltação análoga da
Família de Nazaré como exemplar absoluto da comunidade doméstica encontra-se,
por exemplo, em Leão XIII, Carta Apostólica Neminem fugit (14
de junho de 1892): Leonis XIII Acta, XII (1892), pp. 149-150; Bento
XV, Motu Proprio Bonum sane (25
de julho de 1920): AAS 12 (1920), pp. 313-317.
[18] Exortação Apostólica Familiaris consortio (22 de novembro
de 1981), n. 17: AAS 74 (1982), p. 100.
[19] ibid., n. 49: loc. cit., p. 140; cf. Lumen gentium, n. 11; Decreto
sobre o apostolado dos leigos Apostolicam actuositatem, n. 11.
[20] Exortação Apostólica Familiaris consortio, n. 85: AAS 74
(1982), pp. 189-190.
[21] cf. S. João
Crisóstomo, In Matth. Hom., V, 3: PG 57, 57-58.
[22] Paulo VI, Homilia de 19 de março de 1966: Insegnamenti,
IV (1966), p. 110.
[23] cf. Missale
Romanum, Collecta in
«Sollemnitate S. Joseph Sponsi B.M.V.».
[24] cf. ibid., Praefatio in «Sollemnitate
S. Joseph Sponsi B.M.V.».
[25] Carta Encíclica Quamquam pluries: loc. cit.,
p. 178.
[26] Pio XII, Radio-mensagem aos estudantes das escolas
católicas dos Estados Unidos da América (19 de fevereiro de 1958): AAS 50
(1958), p. 174.
[27] Orígenes, Hom. XIII in Lucam, 7: S. Ch. 87,
pp. 214-215.
[Atualização: Para acessar a segunda parte do Documento, com os nn. 09-21 (a conclusão do capítulo 2 e o capítulo 3), clique aqui; para acessar a terceira parte, com os nn. 22-32 (capítulos 04 a 06), clique aqui]
Fonte: Santa Sé
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