“Os Príncipes dos
Apóstolos, Pedro e Paulo, estão sempre associados na Liturgia da Igreja Romana”
[1].
Assim começa o “comentário” do Missal Romano à Memória facultativa da Dedicação das Basílicas de São Pedro e São Paulo em Roma (18 de novembro).
A principal celebração dos “protocorifeus do coro dos
Apóstolos”, porém, é no dia 29 de junho, quando recordamos seu martírio durante
a perseguição do Imperador Nero, entre os anos 64 e 68: Pedro foi crucificado
na colina do Vaticano e Paulo foi decapitado na via Ostiense.
Além disso, cada um dos Apóstolos possui ainda uma
celebração própria no Rito Romano: a Festa da Cátedra de São Pedro, no dia 22
de fevereiro, e a Festa da Conversão de São Paulo, no dia 25 de janeiro.
Jesus entrega as chaves do reino a Pedro (Detalhe) (Pietro Perugino - Capela Sistina, Vaticano) |
Nessa postagem e na próxima gostaríamos de traçar um breve
histórico dessas celebrações, começando pela Festa da Cátedra ou Confissão de
Pedro, que na verdade está relacionada a duas datas: 22 de fevereiro e 18 de
janeiro, uma semana antes da Festa da Conversão de Paulo.
A Festa da Cátedra de
São Pedro no dia 22 de fevereiro
“Festa da Cátedra de São Pedro, Apóstolo, a quem o Senhor
disse: «Tu és Pedro e sobre esta pedra edificarei a minha Igreja». No dia em
que os romanos costumavam honrar a memória dos seus defuntos, celebra-se o dia
natal de São Pedro na Cátedra Apostólica, que é venerada com o seu monumento no
Vaticano e tem a missão de presidir à assembleia universal da caridade” [2].
Assim o Martirológio
Romano apresenta a Festa da Cátedra de São Pedro no dia 22 de fevereiro.
Com efeito, dentre as duas datas associadas à celebração, esta é sem dúvida a
mais antiga, conforme testemunha a Depositio
Martyrum do Calendário Filocaliano do ano 354: Octavo Kalendas Martii: Natale
Petri de Cathedra.
O termo natale ou dies natalis, “dia do nascimento”, deve
ser interpretado aqui em sentido amplo, designando “início”, “começo”. A
cátedra, por sua vez, remete à autoridade do Pastor, uma vez que era comum que
o Bispo pregasse sentado em uma cadeira. Até hoje a “cátedra” é usada como
símbolo da missão do Bispo Diocesano.
Assim, o “natale
cathedra” seria o “natale episcopatus”,
a comemoração do início da missão de Pedro como Bispo de Roma.
A escolha da data de 22 de fevereiro, por sua vez, poderia
estar associada à Parentalia, antiga
festividade romana que durava nove dias, de 13 a 21 de fevereiro, em memória
dos parentes falecidos.
O último dia dessa comemoração, 21 de fevereiro, era
conhecido como Feralia (do verbo fero, portar), quando as famílias
levavam oferendas votivas aos túmulos dos parentes (algo análogo à Comemoração dos Fiéis Defuntos no dia 02 de novembro).
No dia seguinte, 22 de fevereiro, uma vez que as famílias
estavam reunidas, se celebrava uma refeição festiva, conhecida como Charistia ou Cara Cognatio, na qual os parentes em litígio eram exortados a
reconciliar-se.
Imagem da entrega das chaves a Pedro (Altar da confissão da Basílica Vaticana - 29 de junho de 2016) |
É razoável supor, portanto, que a Igreja de Roma quisesse associar a memória do seu primeiro pastor, o Apóstolo Pedro, a essas celebrações familiares. Após visitar os túmulos da família humana no dia 21, os cristãos recordavam a “família de Deus”, isto é, a Igreja, honrando o túmulo de Pedro no dia 22 de fevereiro.
Esta data, porém, parece estar mais ligada à piedade
popular, uma vez que os livros litúrgicos dos séculos seguintes não mencionam
essa celebração. O fato de que o dia 22 de fevereiro às vezes cai na Quaresma
foi também um fator contra a fixação da festa.
Assim, após a menção no Calendário de 354, a Festa da
Cátedra de São Pedro só aparece novamente em Roma no século XI, porém sem
particular solenidade. Uma vez que cada Papa desejava comemorar o próprio
aniversário de eleição, a fim de reforçar sua autoridade, a celebração do
início do ministério do Apóstolo Pedro acabou ficando em segundo plano...
A Festa da Cátedra de
São Pedro no dia 18 de janeiro
A festa da Cátedra de São Pedro no dia 18 de janeiro, por sua vez, provém da tradição franco-galicana.
Essa festa é mencionada pela primeira vez no Martirológio Jeronimiano,
compilado na Gália (atual França), provavelmente na região de Auxerre, em torno
do ano 600.
Com efeito, no Rito Franco-Galicano, que se desenvolveu
entre os séculos IV e VIII na atual França, a celebração da Quaresma era
bastante “rígida”, não admitindo qualquer outra celebração - tradição conservada
no Rito Hispano-Mozárabe.
Assim, encontramos a Festa da Cátedra de São Pedro no dia 18
de janeiro, unida à Festa da Conversão de São Paulo no dia 25, como veremos na próxima postagem.
Após o século VIII, porém, há uma fusão entre os Ritos Galicano
e Romano, de modo que as duas festas passam a ser celebradas: 18 de janeiro e
22 de fevereiro. Nesse período, os amanuenses, responsáveis por copiar os
calendários, querendo distinguir as duas festas, acrescentaram-lhes o nome de
duas cidades ligadas ao ministério do Apóstolo: Cathedra Petri in Roma (18 de janeiro) e Cathedra Petri in Antiochia (22 de fevereiro).
Embora Gl 2,11 testemunhe
a presença de Pedro em Antioquia e a tradição lhe atribua a fundação da Igreja
nesta cidade, onde “os discípulos, pela primeira vez, foram chamados de
‘cristãos’” (At 11,26), os textos da
Missa do dia 22 de fevereiro (que eram os mesmos de 18 de janeiro) não faziam
nenhuma referência a essa cidade.
"Apascenta as minhas ovelhas" (Medalhão sobre o altar da Cátedra da Basílica de São Pedro) |
Outra distinção foi proposta posteriormente: o dia 18 de janeiro seria a celebração da “profissão de fé” ou “confissão” do Apóstolo Pedro (Mt 16,13-20), enquanto o dia 22 de fevereiro seria a celebração do seu ministério episcopal.
De toda forma, ambas as festas foram estendidas para toda a
Igreja pelo Papa Paulo IV (†1559) em 1558. Porém, uma vez que, como vimos, as
duas celebrações possuíam as mesmas orações e leituras, já no tempo do Papa
Bento XIV (†1758) houve uma proposta de unificá-las, porém esta não foi levada
a cabo.
Seria apenas na revisão do Missale Romanum sob João XXIII (†1963) que a celebração do dia 18
de janeiro seria abolida, conservando-se a data mais antiga de 22 de fevereiro.
Tal decisão foi mantida na reforma litúrgica realizada pelo Concílio Vaticano
II.
Não obstante, no Rito Ambrosiano, próprio da Arquidiocese de
Milão (Itália), conservou-se a data de 18 de janeiro, uma vez que nesse rito
também não se celebram festas dos santos na Quaresma.
Algumas denominações protestantes também recordam a
“profissão de fé” ou “confissão” do Apóstolo Pedro no dia 18 de janeiro, em
sintonia com a Semana de Oração pela Unidade dos Cristãos, como veremos em nossa próxima postagem.
A atual celebração da
Cátedra de São Pedro no Rito Romano
No Rito Romano, a Festa da Cátedra de São Pedro possui
leituras e orações próprias [3]. Destacamos a coleta (oração do dia), tomada do
Sacramentário Gelasiano (séc. VII-VIII):
“Concedei, ó Deus todo-poderoso, que nada nos possa abalar,
pois edificastes a vossa Igreja sobre aquela pedra que foi a profissão de fé do
apóstolo Pedro. Por nosso Senhor Jesus Cristo, vosso Filho, na unidade do
Espírito Santo. Amém” [4].
Altar da Cátedra da Basílica Vaticana ornado com velas (Festa da Cátedra de São Pedro, 22 de fevereiro de 2016) |
Antes da reforma litúrgica, por sua vez, após a oração em
honra de São Pedro, se recitava uma segunda coleta comemorando São Paulo,
considerados “inseparáveis” no Rito Romano. Após o Concílio Vaticano II tal
costume foi abolido, uma vez que o Missal prescreve uma única coleta ou oração do dia para a
Celebração Eucarística [5].
Em relação à Liturgia das Horas da Festa, cabe destacar os
três hinos próprios:
- Ofício das Leituras: Iam, bone pastor, Petre (Ó Pedro, pastor piedoso)
- Laudes: Petrus beátus catenárum láqueos (Pedro, que rompes algemas)
- Vésperas: Divína vox te déligit (Pescador de homens te faço) [6].
Cabe recordar ainda que a Festa da Cátedra costuma ser
escolhida como data para celebrações diretamente ligadas ao Papa, Sucessor de
São Pedro: o Jubileu da Cúria Romana no Ano da Misericórdia (2016) e no Grande Jubileu do ano 2000, Consistórios para criação de novos Cardeais, entre outros.
O altar da Cátedra na
Basílica de São Pedro
A suposta “cátedra” material, isto é a cadeira na qual o
Apóstolo teria realizado sua pregação em Roma, conservava-se no batistério da
antiga Basílica de São Pedro, remontando ao tempo do Papa São Dâmaso (†384).
Embora partes dessa relíquia possam ter sido conservadas, a
“cátedra” venerada no Vaticano é na verdade do século IX. Com a construção da
nova Basílica entre os séculos XVI e XVII, a suposta “relíquia” foi guardada em
um extraordinário relicário projetado por Gian Lorenzo Bernini (†1680).
Esse se encontra na abside da Basílica, chamado justamente
“altar da Cátedra”, sob o vitral do Espírito Santo. A obra de Bernini retrata a
Cátedra de São Pedro sustentada por quatro Doutores da Igreja, dois do Ocidente
(Santo Ambrósio e Santo Agostinho) e dois do Oriente (Santo Atanásio e São João
Crisóstomo).
Na cadeira propriamente dita está representada a exortação
do Senhor Ressuscitado a Pedro: “Apascenta as minhas ovelhas” (Jo 21,17).
“Ó Deus, que confiastes ao Apóstolo Pedro as chaves do reino
dos céus e lhe conferistes o poder de ligar e desligar, libertai-nos por sua
intercessão das cadeias dos nossos pecados. Por nosso Senhor Jesus Cristo,
vosso Filho, na unidade do Espírito Santo. Amém” [7].
Confira também:
Catequese do Papa Bento XVI sobre a Cátedra de São Pedro (22 de fevereiro de 2006)
Notas:
[1] MISSAL ROMANO, Tradução
portuguesa da 2ª edição típica para o Brasil. São Paulo: Paulus, 1991, p. 703.
[2] Fonte: Secretariado Nacional de Liturgia - Portugal.
[3] 1Pd 5,1-4; Sl 22(23),1-6 (R: v. 1); Mt 16,13-19. As mesmas leituras são
indicadas para a Missa votiva de São Pedro, a qual, porém, possui orações
próprias, distintas das orações do dia 22 de fevereiro (cf. MISSAL ROMANO, pp. 957-958).
[4] Oração do dia da Festa da Cátedra de São Pedro, 22 de
fevereiro (MISSAL ROMANO, p. 556).
[5] cf. Instrução
Geral sobre o Missal Romano, 3ª edição, n. 54. in: ALDAZÁBAL, José. Instrução
Geral sobre o Missal Romano: Comentários. São Paulo: Paulinas, 2007, pp. 74-75.
[6] OFÍCIO DIVINO. Liturgia das Horas segundo o Rito Romano.
Tradução para o Brasil da segunda edição típica. São Paulo: Paulus, 1999,
v. III, pp. 1271-1281.
[7] Oração do dia da Missa votiva
a São Pedro, Apóstolo (MISSAL ROMANO, p. 957).
Referências:
ADAM, Adolf. O Ano
Litúrgico: Sua história e seu significado segundo a renovação litúrgica.
São Paulo: Loyola, 2019, pp. 178-179.
LODI, Enzo. Os Santos
do Calendário Romano: Rezar com os Santos na Liturgia. São Paulo: Paulus,
1992, pp. 103-105.
RIGHETTI, Mario. Historia
de la Liturgia, v. I: Introducción general; El año litúrgico; El Breviario.
Madrid: BAC, 1955, pp. 961-7964.
SCHUSTER, Cardeal Alfredo Ildefonso. Liber Sacramentorum: Note storiche e liturgiche sul Messale Romano; v.
VI: La Chiesa Trionfante (Le Feste dei Santi durante il Ciclo Natalizio).
Torino-Roma: Marietti, 1930, pp. 153-158 (18 de janeiro); pp. 244-245 (22 de
fevereiro).
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