“Dá, pois, a teu servo
um coração que escuta para governar teu povo e para discernir entre o bem e o
mal” (1Rs 3,9)
Após analisar os dois Livros de Samuel (1Sm e 2Sm) em nossa série de postagens sobre a leitura litúrgica da Sagrada Escritura, concluiremos nosso percurso pela
história deuteronomista com os dois Livros
dos Reis (1Rs e 2Rs), que na Bíblia hebraica formam um
só livro, razão pela qual os estudaremos em conjunto.
1. Breve introdução
aos Livros dos Reis
Diferentemente dos Livros
de Samuel, que cobrem um período relativamente curto de tempo, os Livros dos Reis abrangem uma história de
400 anos, desde a morte de Davi (970 a. C.) até o exílio da Babilônia (587 a.
C.). Esta história está dividida nos livros em três períodos bem definidos:
a) História de Salomão: 1Rs 1–11;
b) História dos reinos divididos (Israel e Judá), da morte
de Salomão (931 a. C.) até a queda do reino de Israel (722 a. C.): 1Rs 12–2Rs
17. Dentro desta segunda parte situam-se os ciclos dos profetas Elias (1Rs 17–2Rs 1) e Eliseu (2Rs 2–13);
c) História do reino de Judá de 722 a. C. até sua queda em
587 a. C.: 2Rs 18–25.
O rei Davi passa o cetro ao seu filho Salomão (Cornelis de Vos - séc. XVII) |
Boa parte dos livros é integrada pela descrição dos reis,
tomadas dos anais dos reis de Judá e Israel. Esta descrição é composta por três
elementos:
- introdução: nome, filiação, duração do reinado;
- julgamento: pode ser negativo (“Fez mal aos olhos do
Senhor...”), parcialmente positivo ou totalmente positivo (“Fez o que é bom aos
olhos do Senhor...”);
- conclusão: morte e sucessor.
O juízo negativo é aplicado a todos os reis de Israel, uma
vez que o reino do norte é marcado pela idolatria, e a alguns reis de Judá; o
juízo parcialmente positivo é aplicado a seis reis de Judá; enquanto que o
juízo totalmente positivo é aplicado a apenas dois reis de Judá: Ezequias e
Josias.
Como vimos em nosso estudo sobre o Livro do Deuteronômio, a literatura deuteronomista foi
sistematizada durante as reformas religiosas empreendidas por esses dois reis.
Recordemos a “descoberta do livro da Lei” em 2Rs 22. Josias, com efeito, faz a
síntese dessa literatura: esta afirma que não houve jamais um rei “que se voltasse como ele ao
Senhor, de todo o seu coração, de toda a sua alma e com todas as suas forças,
seguindo em tudo a lei de Moisés...” (2Rs 23,25), fazendo eco ao Shemá, Israel de Dt 6,4-6.
Como nos Livros de
Samuel, também aqui é preciso destacar três personagens:
Salomão:
modelo de rei sábio (1Rs 3–5), construtor do Templo (5–9) e comerciante (9–10). Porém, apresenta-se também seu pecado (11), a idolatria, que tem como consequência a
divisão do reino após sua morte: Israel (norte) e Judá (sul).
Elias: é o grande
profeta, cuja influência estende-se até o Novo Testamento. Em seu ciclo
destacam-se: os prodígios, o combate ao culto de Baal, a condenação ao rei Acab
e sua esposa Jezabel, o encontro com Deus no Horeb e, por fim, sua “assunção ao
céu”.
Eliseu:
apresentado em 1Rs 19 como discípulo de Elias, torna-se seu sucessor em 2Rs 2.
É o profeta taumaturgo por excelência, tendo operado diversos milagres. Sua
atuação política é também digna de nota, exortando o povo na resistência contra
os inimigos.
Ícone dos profetas Elias e Eliseu |
Para saber mais, confira a bibliografia indicada no final da
postagem [1].
2. Leitura litúrgica
dos Livros dos Reis: Composição
harmônica
Como temos feito em todas as postagens sobre a leitura
litúrgica da Palavra de Deus, começaremos pelas celebrações em que a presença
dos Livros dos Reis segue o critério
da composição harmônica, isto é, da sintonia com o tempo ou a festa litúrgica [2].
a) Celebração Eucarística
Guiados pelo ciclo do Ano Litúrgico, encontramos primeiramente
duas leituras dos nossos livros nos dias de semana do Tempo da Quaresma. Nestes dias “as leituras do Evangelho e do
Antigo Testamento (AT) foram escolhidas de modo que tivessem uma relação mútua;
elas tratam de diversos temas próprios da catequese quaresmal” [3].
Assim, na segunda-feira
da III semana da Quaresma lemos a perícope de 2Rs 5,1-15a [4], o episódio
da cura de Naamã, o sírio, pelo profeta Eliseu, citado por Jesus no Evangelho
(Lc 4,24-30), repreendendo o povo de Nazaré por não acolhê-lo, indicando que
também os profetas não foram acolhidos em sua pátria, e sim pelos estrangeiros.
Da III à V semanas da Quaresma são propostas também leituras
à escolha, que retomam os Evangelhos dos Domingos do ano A, o ciclo batismal,
com leituras adequadas [5]. Portanto, dentre as leituras à escolha para a V semana da Quaresma, acompanhando o
Evangelho da ressurreição de Lázaro (Jo 11,1-45) encontra-se 2Rs 4,18b-21.32-37
[6], o episódio da ressurreição do filho da mulher sunamita pelo profeta
Eliseu.
Eliseu ressuscita o filho da sunamita (Benjamin West - séc. XVIII-XIX) |
Passando aos domingos
do Tempo Comum, nos quais as
leituras do AT foram escolhidas “em relação às perícopes evangélicas” [7],
temos dez ocorrências dos Livros dos Reis, sobretudo dos ciclos de Elias e Eliseu:
três no ano A, três no ano B e quatro no ano C.
- XIII Domingo do Tempo
Comum do ano A: 2Rs 4,8-11.14-16a [8], a acolhida de Eliseu pela sunamita,
que ilustra a máxima de Jesus no Evangelho (Mt 10,37-42): “Quem recebe um
profeta, receberá a recompensa de profeta” (v. 41);
- XVII Domingo do
Tempo Comum do ano A: 1Rs 3,5.7-12 [9], o sonho de Salomão, no qual este pede a
Deus o dom da sabedoria, que, à luz do Evangelho (Mt 13,44-52), é o
grande tesouro ou a pérola a buscar;
- XIX Domingo do
Tempo Comum do ano A: 1Rs 19,9a.11-13a [10], a teofania no Horeb diante de
Elias, que prefigura o Cristo que anda sobre as águas e acalma a tempestade no
Evangelho (Mt 14,22-33);
- XVII Domingo do
Tempo Comum do ano B: 2Rs 4,42-44 [11], a multiplicação dos pães realizada
por Eliseu, que prefigura aquela do Evangelho (Jo 6,1-15);
- XIX Domingo do
Tempo Comum do ano B: 1Rs 19,4-8 [12], o episódio do pão oferecido por um
anjo a Elias, que o fortalece na caminhada para o Horeb. A perícope aponta para
a autoafirmação de Jesus no Evangelho (Jo 6,41-51): “Eu sou o pão da vida” (v.
48);
- XXXII Domingo do
Tempo Comum do ano B: 1Rs 17,10-16 [13], o milagre de Elias em favor da
viúva de Sarepta, lido em conjunto com a oferta da viúva no Templo (Mc
12,38-44);
- IX Domingo do Tempo
Comum do ano C: 1Rs 8,41-43 [14], trecho da oração de Salomão em favor dos
estrangeiros que vierem rezar no Templo. O tema é retomado no Evangelho com a
cura do servo do oficial romano (Lc 7,1-10);
- X Domingo do Tempo
Comum do ano C: 1Rs 17,17-24 [15], a ressurreição do filho da viúva de
Sarepta por Elias, excelente paralelo à ressurreição do filho da viúva de Naim
por Jesus (Lc 7,11-17);
- XIII Domingo do
Tempo Comum do ano C: 1Rs 19,16b.19-21 [16], o chamado de Eliseu como
discípulo de Elias. Esta perícope faz um paralelo antitético com o Evangelho
(Lc 9,51-62): enquanto Eliseu vai despedir-se de seus pais, Jesus exige um
seguimento mais radical;
- XXVIII Domingo do
Tempo Comum do ano C: 2Rs 5,14-17 [17], texto que narra como o sírio Naamã,
curado da lepra, voltou para agradecer o profeta Eliseu, assim como um
samaritano, dentre os dez leprosos curados, volta para agradecer a Jesus (Lc
17,11-19).
A cura de Naamã, o sírio (Vitral da Catedral de Gloucester) |
Concluído nosso percurso sobre o ciclo ordinário do Ano
Litúrgico, passamos aos Comuns dos Santos,
formulários com várias opções de leituras que podem ser proferidas ad libitum (à escolha) nas celebrações
das várias "categorias" de santos.
Primeiramente, temos uma leitura no Comum da dedicação de igreja, formulário utilizado nos aniversários da dedicação da própria igreja e da dedicação da Catedral da diocese e na Festa
da Dedicação da Basílica do Latrão, Catedral de Roma (09 de novembro). O texto
proposto aqui é 1Rs 8,22-23.27-30 [18], a entronização da arca no Templo de
Jerusalém, seguida da manifestação do próprio Senhor na forma de nuvem.
Também temos uma ocorrência ad libitum do escrito no Comum dos doutores da Igreja. Trata-se
de 1Rs 3,11-14 [19], a confirmação de Deus ao pedido de Salomão, prometendo-lhe
o dom da sabedoria.
Por fim, encontramos os nossos livros no Comum dos Santos: para religiosos.
Temos aqui duas perícopes do mesmo capítulo: 1Rs 19,4-9.11-15a e 1Rs
19,16b.19-21 [20], o encontro de Elias com Deus no Horeb e a vocação de Eliseu.
Seguindo nosso percurso com as Missas para diversas necessidades, encontramos novamente os dois
textos de 1Rs 19 indicados acima na Missa
pelos religiosos [21].
Em seguida há cinco formulários que compartilham as mesmas
leituras: as Missas pela pátria, pelos
governantes, por um encontro de chefes de Estado, pelo chefe de Estado e pelo
progresso dos povos. Para estas celebrações propõe-se ad libitum o texto de 1Rs 3,11-14 [22], no qual Deus promete
sabedoria ao rei Salomão para bem governar o seu povo.
Para a Missa pelos
doentes (formulário que também pode ser usado quando se administra o
sacramento da Unção dos Enfermos na Missa), propõe-se 2Rs 20,1-6 [23], perícope
na qual o rei Ezequias suplica ao Senhor o dom da cura de sua enfermidade.
Por fim, na Missa em
ação de graças sugere-se a leitura de 1Rs 8,55-61 [24], a conclusão da
oração de Salomão em ação de graças a Deus por ocasião da conclusão do Templo.
O último bloco de Missas em que ocorrem textos dos Livros dos Reis é o das Missas votivas. Primeiramente na Missa votiva da Santíssima Eucaristia
propõe-se como leitura ad libitum 1Rs
19,4-8 [25], o episódio do pão que fortalece o profeta Elias, prefiguração da
Eucaristia como “cibus viatorum”, pão
dos viajantes. A mesma leitura aparece no Culto
do Mistério Eucarístico fora da Missa [26].
Vitral de Elias - Catedral Anglicana de Ely (Inglaterra) |
Na Missa votiva de
Maria, templo do Senhor, por sua vez, consta como 1ª opção de leitura 1Rs
8,1.3-7.9-11 [27], a transladação da arca para o Templo de Jerusalém, seguida
da manifestação de Deus em uma nuvem. Este acontecimento prefigura a Encarnação
do Verbo, quando “o poder do Altíssimo” cobre Maria “com sua sombra” (Lc 1,35).
Concluímos assim a primeira parte do nosso estudo sobre
presença dos Livros dos Reis na
Liturgia. Na próxima parte analisaremos sua leitura em composição harmônica nos
sacramentos, sacramentais e na Liturgia das Horas, além de sua leitura
semicontínua.
[A segunda parte desta pesquisa será publicada na próxima terça-feira, 11 de maio]
Notas:
[1] LAMADRID, Antonio González. Os Livros dos Reis: A monarquia. in: LAMADRID, Antonio González et
al. História, narrativa, apocalíptica.
São Paulo: Ave-Maria, 2004, pp. 145-186 (Coleção: Introdução ao estudo da Bíblia, v. 3b).
KNAUF, Ernst Axel. 1-2
Reis. in: RÖMER, Thomas; MACCHI,
Jean-Daniel; NIHAN, Christophe [org.]. Antigo
Testamento: História, Escritura e Teologia. 2ª ed. São Paulo: Loyola, 2015,
pp. 369-380.
[2] cf. Elenco das Leituras da Missa, n. 66: ALDAZÁBAL,
José. A Mesa da Palavra I: Elenco das
Leituras da Missa - Texto e Comentário. São Paulo: Paulinas, 2007, p. 76.
[3] ibid., p. 97.
[4] LECIONÁRIO II: Semanal. Tradução portuguesa da 2ª edição
típica para o Brasil. São Paulo: Paulus, 1995, p. x.
[5] cf. ALDAZÁBAL,
op. cit., p. 97.
[6] LECIONÁRIO II, p. x.
[7] ALDAZÁBAL, op.
cit., p. 103.
[8] LECIONÁRIO I: Dominical A-B-C. Tradução portuguesa da 2ª
edição típica para o Brasil. São Paulo: Paulus, 1994, p. x.
[9] ibid., p. x.
[10] ibid., p. x.
[11] ibid., p. x.
[12] ibid., p. x.
[13] ibid., p. x.
[14] ibid., p. x.
[15] ibid., p. x.
[16] ibid., p. x.
[17] ibid., p. x.
[18] LECIONÁRIO III: Para as Missas dos Santos, dos Comuns, para
Diversas Necessidades e Votivas. Tradução portuguesa da 2ª edição típica para o
Brasil. São Paulo: Paulus, 1997, p. x.
[19] ibid., p. x.
[20] ibid., p. x.
[21] ibid., p. x.
[22] ibid., p. x.
[23] ibid., p. x.
[24] ibid., p. x.
[25] ibid., p. x.
[26] SAGRADA COMUNHÃO e
o culto do Mistério Eucarístico fora da Missa. Edição típica em tradução
portuguesa para o Brasil. São Paulo: Paulus, 2000, p. 69.
[27] LECIONÁRIO para
Missas de Nossa Senhora. Brasília: Edições CNBB, 2016, p. 97.
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