quinta-feira, 6 de maio de 2021

Nos passos de Paulo: Missa do Papa João Paulo II em Damasco

Como vimos em nossa postagem anterior, como um “eco” do Grande Jubileu do ano 2000, o Papa João Paulo II realizou em maio de 2001 uma peregrinação “nos passos de São Paulo, Apóstolo”, visitando Atenas (Grécia) e Damasco (Síria).

Segue a homilia da Missa do IV Domingo da Páscoa (ano C), celebrada pelo Papa em Damasco:

Peregrinação Jubilar “seguindo os passos de São Paulo, Apóstolo”
Concelebração Eucarística
Homilia do Papa João Paulo II
Estádio de Abbassyine, Damasco (Síria)
06 de maio de 2001

1. “Saulo, Saulo, porque me persegues?. Ele perguntou: Quem és Tu, Senhor?”. Ele respondeu: Eu sou Jesus, a quem tu persegues. Ergue-te, entra na cidade e te dirão o que tens a fazer” (At 9,4-6).
É como peregrino que vim hoje a Damasco, para reavivar a memória do acontecimento que teve lugar aqui, há dois mil anos: a conversão de São Paulo. Ao ir a Damasco para combater e aprisionar aqueles que confessavam o nome de Cristo, e ao chegar às portas desta cidade, Saulo fez a experiência de uma iluminação extraordinária. Ao longo do caminho, Cristo Ressuscitado apresenta-se a ele e, sob a influência desse encontro, realiza-se uma profunda transformação: de perseguidor, torna-se Apóstolo, de opositor do Evangelho, faz-se missionário. A leitura dos Atos dos Apóstolos recorda com muitos pormenores este acontecimento, que mudou o curso da história: “Este homem é instrumento da minha escolha, para levar o meu nome perante os pagãos, os reis e os filhos de Israel. Eu mesmo lhe hei de mostrar quanto ele tem de sofrer pelo meu nome” (At 9,15-16).


Beatitude (Gregorios III Laham), agradeço-lhe profundamente as amáveis palavras de boas-vindas no início desta celebração. Através da sua pessoa, saúdo com afeto os Bispos e também os membros da Igreja Católica Greco-Melquita, da qual Vossa Beatitude é Patriarca. Transmito os meus votos mais calorosos igualmente aos Cardeais, Patriarcas, Bispos, Sacerdotes e fiéis leigos de todas as comunidades católicas, da Síria e dos outros países desta região. Alegro-me com a presença fraternal dos Patriarcas, dos Bispos e dos fiéis das outras Igrejas e Comunidades eclesiais. Cumprimento-os com grande afabilidade. Estou cordialmente grato ao Ministro que representa o Presidente da República e aos membros da comunidade muçulmana que, nesta ocasião, quiseram unir-se aos seus amigos cristãos.

2. O extraordinário acontecimento que teve lugar não distante daqui foi decisivo para o futuro de Paulo e da Igreja. O encontro com Cristo transformou radicalmente a existência do Apóstolo, dado que o atingiu no mais íntimo do seu ser e o abriu de maneira plena à verdade divina. Paulo aceitou livremente reconhecer esta verdade e comprometer a sua vida no seguimento de Cristo. Acolhendo a luz divina e recebendo o Batismo, o seu ser profundo tornou-se conforme ao ser de Cristo; assim, a sua vida foi transformada e ele encontrou a felicidade, ao depositar a sua fé e confiança n’Aquele que o chamara das trevas para a sua luz admirável (cf. 2Tm 1,12; Ef 5,8; Rm 13,12). Com efeito, o encontro na fé com o Ressuscitado é uma luz no caminho dos homens, uma luz que transforma a existência. No rosto resplandecente de Cristo, a verdade de Deus manifesta-se de maneira evidente. Também nós devemos conservar o nosso olhar fixo no Senhor! Cristo, luz do mundo, derramai sobre nós e sobre todos os homens esta luminosidade proveniente do céu, que arrebatou o vosso Apóstolo! Iluminai e purificai os olhos do nosso coração, para aprendermos a ver tudo à luz da vossa verdade e do vosso amor pela humanidade!
A Igreja não dispõe de outra luz para transmitir ao mundo, senão a luz que provém do seu Senhor. Nós, que fomos batizados na Morte e na Ressurreição de Cristo, recebemos a iluminação divina e nos foi concedido sermos filhos da Luz. Recordemos a bonita exclamação de São João Damasceno, que põe em evidência a origem da nossa comum vocação eclesial: “Tu fizeste-me vir à luz, adotando-me como teu filho, e Tu inscreveste-me entre os membros da tua Igreja santa e imaculada” (Exposição da fé ortodoxa, 1)! Ao longo do nosso caminho, a Palavra de Deus é uma lâmpada esplendorosa; ela permite-nos conhecer a verdade que liberta e santifica.

3. “Olhei e vi uma grande multidão que ninguém podia contar, de todas as nações, povos e línguas: estavam diante do trono e diante do Cordeiro, de vestes brancos e com palmas em suas mãos” (Ap 7,9).
Este texto da Liturgia de hoje, tirado do Livro do Apocalipse, mostra à sua maneira a obra que se realizou mediante o ministério apostólico de São Paulo. Com efeito, ele ocupou um lugar essencial no anúncio do Evangelho, para além dos confins da terra de Jesus. Todo o mundo então conhecido, a começar pelos países que se debruçam sobre o Mediterrâneo, se tornou terra de evangelização paulina. E podemos dizer que em seguida, ao longo dos séculos até à nossa época, o imenso desenvolvimento do anúncio evangélico constitui de certa forma a continuação lógica do ministério do Apóstolo das Nações. Até os nossos dias, a Igreja traz em si mesma os frutos da sua atividade apostólica e refere-se constantemente ao ministério missionário de São Paulo que, para inteiras gerações de cristãos, se tornou pioneiro e inspirador de toda a missão.
A exemplo de São Paulo, a Igreja é convidada a alargar o seu olhar até às extremidades do mundo, a fim de continuar a missão que lhe foi confiada, de transmitir a luz do Ressuscitado a todos os povos e a cada uma das culturas, no respeito da liberdade das pessoas e das comunidades humanas e espirituais. A imensa multidão de homens de todas as origens é chamada a dar glória a Deus. Assim, como afirma Santo Efrém: “Os tesouros que Tu nos concedes, não tens qualquer necessidade de transmiti-los a nós. Tu só precisas de uma coisa: que dilatemos o nosso coração para conter os teus bens, entregando-te a nossa vontade e escutando-te com os nossos ouvidos. Todas as obras refulgem com coroas que a sabedoria dos teus lábios lhes teceu, dizendo: tudo isto é muito bom” (Diathermane, 2, 5-7).
Assim como São Paulo, também os discípulos de Cristo enfrentam um grande desafio: eles devem transmitir a Boa Nova numa linguagem adequada a cada cultura, sem perder a sua substância, nem desvirtuar o seu sentido. Portanto, não tenhais medo de dar testemunho, também vós, mediante a palavra e toda a vossa vida, desta alegre notícia entre os vossos irmãos e as vossas irmãs: Deus ama todos os homens e convida-os a constituir uma única família na caridade, pois todos eles são irmãos!

4. Esta jubilosa noticia deve impelir todos os discípulos de Cristo a buscar ardentemente os caminhos da unidade porque, ao fazerem sua a oração do Senhor: “A fim de que todos sejam um”, eles oferecem um testemunho cada vez mais autêntico e credível. Regozijo-me profundamente pelas relações fraternas que já existem entre os membros das Igrejas cristãs do vosso país, enquanto vos encorajo a desenvolvê-las na verdade e na prudência, em comunhão com os vossos Patriarcas e Bispos. No alvorecer do terceiro milênio, Cristo chama-nos a ajudarmo-nos uns aos outros na caridade, que fomenta a nossa unidade. Sede orgulhosos das grandes tradições litúrgicas e espirituais das vossas Igrejas do Oriente! Elas pertencem ao patrimônio da única Igreja de Cristo e constituem pontes de união entre as diferentes sensibilidades. Desde o início do Cristianismo a vossa terra conheceu uma vida cristã florescente. Na linhagem espiritual de Inácio de Antioquia, de Efrém, de Simeão ou de João Dasmasceno, os nomes de numerosos Padres, monges, eremitas e de muitos outros Santos, que são a glória das vossas Igrejas, permanecem presentes na memória viva da Igreja universal. Através do vosso apego à terra dos vossos antepassados, aceitando com generosidade viver a vossa fé, hoje também vós, por vossa vez, dais testemunho da fecundidade da mensagem evangélica, que foi transmitida de geração em geração.
Juntamente com os vossos compatriotas, sem distinção de pertença comunitária, continuai sem descanso os vossos esforços com vista à edificação de uma sociedade fraterna, justa e solidária, onde cada um seja plenamente reconhecido na sua dignidade humana e nos seus direitos fundamentais. Nesta terra santa, os cristãos, os muçulmanos e os hebreus são chamados a trabalhar em conjunto, com confiança e audácia, e a fazer com que se manifeste sem tardar o dia em que cada povo poderá ver os seus direitos legítimos respeitados e viver na paz e no entendimento mútuo. Oxalá no meio de vós os pobres, os enfermos, as pessoas portadoras de deficiência e todos os indivíduos feridos na vida sejam sempre irmãos e irmãs respeitados e amados! O Evangelho constitui um poderoso fator de transformação do mundo. Que mediante o vosso testemunho de vida, os homens de hoje possam descobrir a resposta às suas aspirações mais profundas e os fundamentos para a convivência no seio da sociedade!

5. Famílias cristãs, a Igreja conta convosco e confia em vós para comunicar aos vossos filhos a fé que recebestes ao longo dos séculos, desde o Apóstolo Paulo. Permanecendo unidos e abertos a todos, defendendo sempre o direito à vida desde a sua concepção, sede portadores de luz, em plena conformidade com o desígnio de Deus e com as verdadeiras exigências da pessoa humana! Reservai um lugar importante à oração, à escuta da Palavra de Deus e à formação cristã, e nelas encontrareis um eficaz apoio para enfrentar as dificuldades da vida quotidiana e os imensos desafios do mundo contemporâneo. A participação regular na Eucaristia dominical constitui uma necessidade para toda a vida cristã fiel e coerente. Ela é um dom privilegiado em que se concretiza e se anuncia a comunhão com Deus e com os irmãos.
Irmãos e irmãs, não vos canseis de procurar o rosto de Cristo que se manifesta a vós. É nele que encontrareis o segredo da verdadeira liberdade e da alegria do coração! Deixai vibrar no mais profundo de vós mesmos o desejo de fraternidade genuína entre todos os homens! Colocando-vos com entusiasmo ao serviço do próximo, encontrareis um sentido para a vossa vida, pois a identidade cristã não consiste na oposição aos outros, mas na capacidade de sair de si mesmo para ir ao encontro dos irmãos. A abertura ao mundo, com clarividência e sem medo, faz parte da vocação do cristão, consciente da sua própria identidade e radicado no seu patrimônio religioso que expressa a riqueza do testemunho da Igreja.

6. “As minhas ovelhas ouvem a minha voz; Eu as conheço e elas me seguem. Dei-lhes a vida eterna e nunca hão de perecer, e ninguém as arrebatará das minhas mãos. Meu Pai, que as deu a mim, é maior do que todos; e ninguém pode arrebatá-las da mão do meu Pai. Eu e o Pai somos um” (Jo 10,27-30).
Estas são as palavras do Evangelho de hoje, através das quais o próprio Jesus Cristo nos faz ver o admirável dinamismo da evangelização. Deus que, numerosas vezes e de diversas maneiras, tinha falado aos antepassados pelos profetas, enfim falou pelo seu Filho (cf. Hb 1,1-2). Este Filho, da mesma substância do Pai, é o Verbo da vida. É Ele mesmo que dá a vida eterna. Ele veio para que tenhamos vida, e a tenhamos em abundância (cf. Jo 10,10). Às portas de Damasco, no seu encontro com Cristo Ressuscitado, São Paulo descobriu esta verdade e por fim o conteúdo da sua pregação. A maravilhosa realidade da Cruz de Cristo, na qual se realiza a Redenção do mundo, apresenta-se diante dele. Paulo compreendeu esta realidade e consagrou-lhe toda a sua vida.
Irmãos e irmãs, elevemos o nosso olhar para a Cruz de Cristo, para nela descobrir a fonte da nossa esperança! Nela encontramos um autêntico caminho de vida e de felicidade. Contemplemos o rosto amoroso de Deus, que nos oferece o seu Filho para que todos nós tenhamos “um só coração e uma só alma” (At 4,32). Acolhamo-lo nas nossas vidas para que nos inspire e realize o mistério de comunhão que encarna e manifesta a própria essência da Igreja.
A vossa pertença à Igreja deve ser para vós e para os vossos irmãos e irmãs um sinal de esperança que recorda que o Senhor encontra cada um no seu caminho, com frequência de maneira misteriosa e inesperada, como aconteceu com São Paulo no caminho de Damasco, quando o envolveu com a sua luz fulgurante.
Possa o Ressuscitado, neste ano em que os cristãos celebraram a Páscoa em conjunto, conceder-nos o dom da comunhão na caridade!

Estátua da "Conversão de São Paulo" em Damasco

Fonte: Santa Sé.

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