Já foram três as postagens aqui em nosso blog dedicadas a apresentar o Documento "A Reciprocidade entre a Fé e os Sacramentos na Economia Sacramental", promulgado pela Comissão Teológica Internacional em 2020. Por sua relevância e extensão (195 parágrafos), o projeto é publicá-lo dividido em seis partes.
As primeiras duas partes cobriram os capítulos I e II, dedicados à relação entre fé e sacramentos em geral (nn. 1-41 e nn. 42-79). Na terceira postagem iniciamos o capítulo III, dedicado especificamente aos sacramentos da Iniciação Cristã. Após o Batismo e a Confirmação (nn. 80-101), segue a reflexão sobre a Eucaristia (nn. 102-131):
Comissão
Teológica Internacional
A Reciprocidade entre a Fé e os Sacramentos na Economia Sacramental
Sumário:
3. A reciprocidade
entre fé e sacramentos na Iniciação Cristã
3.3 Reciprocidade entre fé e Eucaristia
a) Fundamentação bíblica
b) Fé e Eucaristia
c) Problemática atual
d) Luzes a partir da Tradição
e) Proposta pastoral: Fé para a
Eucaristia
3. A reciprocidade
entre fé e sacramentos na Iniciação Cristã
3.3 Reciprocidade entre fé e Eucaristia
a) Fundamentação bíblica
102. O acontecimento da Última Ceia (Mt 26,26-29; Mc 14,22-26; Lc 22,14-23; 1Cor 11,23-26)
sempre foi considerado a instituição da Eucaristia. A esses relatos
fundamentais devemos acrescentar outros nos quais a Igreja viu um teor
eucarístico: as multiplicações dos pães (Mc 6,30-44 e par.; 8,1-10
e par.; Jo 6,1-14), as advertências de Paulo à comunidade de
Corinto (1Cor 10-11); ou o episódio que encerra o encontro dos
discípulos de Emaús com o Ressuscitado (Lc 24,30-31.35). Seguindo a
força do mandato “Fazei isso em memória de mim” (1Cor 11,24-25; Lc 22,19),
desde o início (por exemplo, At 2,42.46; 20,7; 27,35) até
hoje, onde há cristãos e Igreja, se celebra a Eucaristia, o memorial da Paixão
e Ressurreição do Senhor até que Ele volte, sua entrega salvífica por “muitos”,
por todos (cf. Rm 5,18-19;
8,32).
103. Na Última Ceia, o Senhor Jesus condensa o significado de toda a sua vida, de sua Morte iminente e de sua futura Ressurreição, para transmiti-la a seus discípulos como memorial e sinal eminente de seu amor. Por isso, o que ali aconteceu e a memória sacramental de sua Paixão e Ressurreição mostram uma densidade extraordinária. A Igreja celebra na Eucaristia a “presencialização” e atualização da entrega de Cristo por todos nós ao Pai, de seu sacrifício. Na Eucaristia, a ação de graças ao Pai “por Cristo, com Cristo e em Cristo” [115], que se faz presente pela ação do Espírito, a Igreja se une a Cristo, associa-se a Ele e se torna seu Corpo. Por esse motivo, foi possível afirmar com verdade que a Igreja nasce da Eucaristia [116]. Como a Eucaristia reúne a própria essência da vida de Cristo e, portanto, da vida cristã, é a fonte e o ponto culminante da vida cristã (Sacrosanctum Concilium, n. 10; Lumen Gentium, n. 11).
b) Fé e Eucaristia
104. [Fé trinitária]. Cada Eucaristia começa “em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo”: com uma memória da fórmula batismal, do credo trinitário, que percorre e permeia toda a celebração. “O primeiro conteúdo da fé eucarística é o próprio mistério de Deus, amor trinitário” [117]. Na Eucaristia, pois, entramos na comunhão de vida com o amor do Deus trinitário. Como sinal máximo de seu amor, o Pai entregou seu Filho para nossa salvação; o qual, por sua vez, ofereceu a si mesmo “movido pelo Espírito eterno” (Hb 9,14). Na Eucaristia, somos feitos participantes dessa corrente amorosa, inserida na intimidade divina. Ao Deus trinitário apresentamos o melhor louvor possível por Cristo na unidade do Espírito, como proclama solenemente a doxologia com a qual culmina a Oração Eucarística. A ação de graças ao Pai, pelo Filho entregue por nós através do dom do Espírito, é confirmada com o louvor que compromete o testemunho pessoal na vida cotidiana.
105. [Unidade de fé e caridade]. O Ato Penitencial, situado no início da Celebração Eucarística, manifesta a necessidade de todo fiel sincero de receber o perdão dos pecados, de reconciliar-se com Deus e com os irmãos, para poder entrar em comunhão com Deus. Além disso, o Ato Penitencial ressalta a inseparabilidade da comunhão vertical com Cristo, cuja entrega se fará memória a seguir (anámnesis), da horizontal, com outros cristãos e, além dela, com todos os seres humanos. A verdadeira fé eucarística é sempre uma fé ativa através da caridade (cf. Gl 5,6). Na Eucaristia: “o amor a Deus e o amor ao próximo estão agora verdadeiramente juntos: o Deus encarnado atrai-nos todos a Si. Assim se compreende por que o termo ágape se tenha tornado também um nome da Eucaristia: nesta a ágape de Deus vem corporalmente a nós, para continuar a sua ação em nós e através de nós” [118].
106. [Fé como resposta à Palavra de Deus]. Desde o século XI, o mesmo Credo com o qual se conclui o rito batismal torna-se uma parte fixa da Celebração Eucarística nos domingos e solenidades. Essa confissão de fé é simultaneamente uma resposta à Palavra de Deus e uma expressão de unidade entre os fiéis. Pela fé, na proclamação da Palavra ouvimos a voz de Cristo [119]. A dimensão profética da fé também aflora. Uma palavra poderosa, capaz de transformar o mundo, tal como acontece no seio da Celebração Eucarística com os dons que se apresentam e a assembleia que celebra. Assim, começa a transformação escatológica, da qual a Igreja, Corpo de Cristo, é uma antecipação.
107. [Dimensão pneumatológica da fé]. A natureza pneumatológica dos sacramentos aparece com clareza na Celebração Eucarística. No atual rito latino há uma dupla epiclese. A primeira sobre os dons, que serão transformados no Corpo entregue e no Sangue derramado de Jesus Cristo. A segunda sobre a assembleia, que, por sua vez, também se transforma no Corpo de Cristo, entrando em comunhão viva com todos os santos. Essa comunhão já é evidente no canto solene do Sanctus, no qual as vozes do céu e da terra se unem em louvor comum. Por isso, na Liturgia Eucarística participamos da Liturgia celestial (cf. Sacrosanctum Concilium, n. 8). Portanto, a dimensão pneumatológica da fé eclesial entra em jogo substancialmente na Eucaristia e ilumina o poder que possui o Espírito para transformar tanto o fiel quanto a realidade do mundo, elevá-los e conduzi-los à comunhão e ao louvor divino.
108. [Fé como adesão ao mistério]. Após as palavras de consagração, o celebrante proclama: Mysterium fidei (Mistério da fé) [120]. Esta aclamação solene é, ao mesmo tempo, uma afirmação, um anúncio e um convite dirigido a todos. Tanto é assim que a Eucaristia é um mistério de fé, que sem fé não pode ser entendida nem tampouco celebrada. A aclamação manifesta que a verdade sacramental do que se celebra, que as espécies de pão e vinho se tornaram o Corpo e o Sangue de Cristo, é propriamente um mistério de fé. Assim como os olhos da fé perceberam em Jesus de Nazaré o Messias de Deus, assim também esses mesmos olhos percebem agora a presença sacramental de Jesus Cristo [121]. O mistério de Cristo é conhecido através da revelação (cf. 1Cor 2,7-11; Cl 1,26-27; 2,2; Ef 1,9; 3,3.9) e da fé.
109. [Fé como reconhecimento da
economia sacramental]. Na recitação da solene Oração Eucarística, na ação
de graças e nas súplicas se faz memória dos grandes marcos da economia
sacramental: da criação à consumação escatológica final. Em particular, se faz
memória da entrega do Senhor Jesus na Cruz, de sua Ressurreição e do próprio
significado que o Senhor deu à sua Morte redentora no momento da Última Ceia. A
fé, no conjunto da economia divina, é educada e reforçada na Liturgia Eucarística.
110. [Dimensão escatológica da fé]. Na celebração sacramental do mistério se encontram o passado, memória do que aconteceu; o presente, “presencialização” do que aconteceu; e o futuro, antecipação da plenitude final que aguardamos [122]. A novidade escatológica iniciada pelo Verbo mediante sua Encarnação, vida, Morte e Ressurreição já começou a realizar-se na cristificação da assembleia e do mundo que acontece na Eucaristia.
111. [Fé e comunhão com Cristo].
A comunhão, como o próprio nome indica, expressa uma união íntima com Cristo,
através do Espírito, impossível sem fé. Não se pode se comunicar intimamente
com alguém o ignorando ou contra sua própria vontade. A fé, que responde com a
palavra “Amém” aos dons eucarísticos, está relacionada com a disposição não
apenas para receber o sacramento, mas representá-lo. Com esta comunhão com
Cristo acontece a santificação pessoal do cristão, concomitante com a comunhão
de vida com Cristo. Esta santificação implica necessariamente um envio.
112. [Caráter missionário da fé]. O envio final com o qual termina a Eucaristia, “Ite, missa est” [123], supõe um retorno missionário à vida cotidiana, para tornar presente nela a vida recebida no sacramento, para se tornar uma Eucaristia para o mundo à semelhança de Cristo e ao seu modo. De fato, na oferta eucarística não apenas se oferece o próprio Jesus Cristo, mas também cada fiel que participa da Eucaristia oferece a si mesmo junto com Cristo (cf. Sacrosanctum Concilium, n. 48; Lumen Gentium, n. 11; Rm 12,1). A oferta pessoal, a aceitação do envio e seu exercício não podem acontecer sem a fé. Tudo o que o cristão fiel recebe no sacramento: o perdão dos pecados veniais, a renovação do Batismo, a pregação da Palavra, a comunhão com Cristo e a transformação em Corpo de Cristo através do Espírito Santo, implica um fortalecimento que o capacita já agora, cristificado, a testemunhar a fé no mundo e transformar a realidade de acordo com o desígnio divino. Assim, após o evento da recepção do dom do Pai, pela entrega do Filho aceito no Espírito, que ocorre em cada Eucaristia, o cristão é expressamente enviado em missão no final da celebração.
113. [Fortalecimento da fé pessoal]. A fé do fiel é enriquecida, robustecida e fortalecida com a íntima comunhão com Cristo. O ser eclesial de quem participa da Eucaristia, sua inserção no corpo visível de Cristo, é atualizado e intensificado. A incorporação a Cristo é de tal grandeza que Agostinho diz aos fiéis: “Se sois membros do Corpo de Cristo, vosso mistério repousa sobre a mesa do Senhor (...) sede o que vedes e recebei aquilo que sois” [124]. Em resumo, pela fé reconhecemos que a Eucaristia é o modo mais intenso da presença de Cristo entre nós, pois é presença real, corporal e substancial [125]. Por esse motivo, a plena participação na Eucaristia, na fé, implica a máxima comunhão com Cristo.
114. [Construção do corpo eclesial]. Na Eucaristia, não apenas a fé individual do fiel é fortalecida, mas a Igreja é gerada nela [126]: Cristo, que a ela se entrega como sacrifício como sua Esposa amada, a constitui em seu corpo [127]. A comunhão entre as Igrejas, no participar da mesma fé recebida, seguindo uma tradição antiquíssima, é expressa através da Comunhão eucarística. A própria Igreja é o Corpo de Cristo, constituído como tal pelo desígnio divino, graças à ação sacramental trinitária. Esse Corpo realiza o que é quando proclama a fé recebida, santifica a história, canta os louvores da Trindade e se empenha missionariamente na proclamação do Evangelho com palavras e obras.
115. [Eucaristia: Expressão máxima da fé sacramental]. Portanto, podemos concluir afirmando que: “A natureza sacramental da fé encontra a sua máxima expressão na Eucaristia. Esta é alimento precioso da fé, encontro com Cristo presente de maneira real no seu ato supremo de amor: o dom de Si mesmo que gera vida” [128].
116. [Necessidade de fé para
participação na Celebração Eucarística]. A admoestação de Paulo aos
cristãos de Corinto é especialmente ilustrativa. Não pode comungar com o Sangue
nem com o Corpo de Cristo quem está envolvido em comportamentos idólatras (1Cor 10,14-22).
A comunhão com “a mesa do Senhor” pede não apenas ter sido iniciado na fé
cristã e ser um membro do Corpo de Cristo, mas também uma coerência da vida com
o que ali é significado. Da mesma forma, uma conduta tão incoerente com a fé
cristã como a divisão comunitária, a falta notável de caridade para com os
irmãos (1Cor 11,21) resulta incompatível com “comer a Ceia do
Senhor” (1Cor 11,20). Isso nos obriga a discernir se vivemos em uma
essencial conformidade com o que celebramos (1Cor 11,29). Em
resumo, a participação eucarística requer uma fé viva, que se manifesta através
da caridade e do abandono de ídolos. A práxis eucarística exige tanto o
exercício da caridade quanto a conformidade doutrinal e a inserção eclesial.
117. A instituição penitencial da Igreja antiga excluía da Comunhão eucarística (não da Igreja) durante um tempo o fiel que renegara publicamente a sua fé ou que violara o Credo e as normas de vida da Igreja. O pecador, tornado tal por ocasião de escândalo público, após uma confissão pública, era expulso da Comunhão eucarística por um tempo (excomunhão), para, posteriormente, ser solenemente recebido novamente depois de ter comprido a penitência (reconciliação). Assim, se tornava visível que a penitência não era apenas útil para a reconciliação do pecador com Cristo, mas também para a purificação da Igreja. O penitente se entende a si mesmo como pedra de uma Igreja que deve ser luz do mundo. Ao deixar de sê-lo por causa de um pecado público, se fazia necessário de certo modo extirpá-lo (excomunhão), “repará-lo” por meio da penitência e voltar a colocá-lo (reconciliação) [129]. Apesar da mudança no modo de celebrar a Penitência, que não é mais pública, a teologia subjacente não mudou. No entanto, essa estreita correlação entre Penitência e Eucaristia foi obscurecida hoje em dia em muitos ambientes praticantes.
c) Problemática atual
118. Muitos daqueles que se consideram
católicos consideram que a presença regular à Eucaristia dominical é excessiva.
Outros mantêm a prática da comunhão frequente ou sempre que participam da
Eucaristia, sem recorrer a algum tempo ao sacramento da Confissão. Não poucos
participam da Eucaristia como uma devoção pessoal, livremente de acordo com
suas próprias necessidades ou sentimentos. Em grandes festas litúrgicas,
especialmente no Natal, na Páscoa ou em algumas festas locais profundamente
enraizadas, assim como em algumas celebrações específicas (casamentos e
funerais) frequentam fiéis que não habitualmente participam da Eucaristia,
inclusive da Comunhão, com toda tranquilidade de consciência e se sentindo
dispensados até o ano seguinte ou até a próxima ocasião excepcional. Essas
práticas, ainda que teologicamente inconsistentes, refletem o influxo
persistente da fé cristã em pessoas pouco praticantes ou distantes. Esse
restante de influência cristã, embora com desvios, pode ser um ponto de partida
para uma reintegração eclesial mais consciente e oferece a possibilidade de
reviver uma fé amortecida. Porém, eles também manifestam, em sua ambivalência,
como, de muitas maneiras, acontece uma distância entre o que a Igreja professa
ser celebrado na Eucaristia, os requisitos para participar plenamente dela, as
consequências que isso implica na vida cotidiana e o que muitos fiéis buscam em
celebrações ocasionais ou esporádicas da Eucaristia.
d) Luzes a partir da Tradição
119. Desde os tempos mais antigos foram estabelecidas condições para a recepção da Eucaristia. Como já indicamos, Paulo adverte a quem se aproxima da Eucaristia: “pois aquele que come e bebe sem discernir o Corpo do Senhor, come e bebe a própria condenação” (1Cor 11,29), destacando algumas exigências indispensáveis. Do Evangelho de João pode-se inferir que a recepção das espécies sacramentais sem fé, ou seja, sem o Espírito, não tem proveito nenhum, pois requer a fé (cf. Jo 6,63-69). Justino menciona como requisitos necessários: crer que os dons são o que eles significam, o recebedor deve ser batizado e não deve negar a doutrina de Cristo por toda a sua vida [130]. A recém-mencionada exortação paulina ressoa novamente na Didaché: “Se alguém é santo, venha! Quem não o é, se converta!” [131], e de modo semelhante nas Constituições Apostólicas [132]. Isso também se reflete no convite litúrgico “o santo aos santos” [133], que já tinha sido comentado por Teodoro de Mopsuéstia. Com os “santos” se refere, em primeiro lugar, como Paulo já fizera, aos batizados, aqueles que vivem com a Igreja. Esse sentimento se manifesta tanto nas homilias de João Crisóstomo [134] quanto em Cipriano: não se pode dissociar a comunhão com Cristo da comunhão com a Igreja [135]. O doutor da Eucaristia exige que seus sacerdotes, se necessário, afastem algumas pessoas [136]. Também Agostinho, com igual clareza, adverte que o alimento sacramental produz efeito salvífico e vida somente se consumido “espiritualmente”, com fé em seu conteúdo invisível e com uma consciência reta [137], isto é, com uma vida que corresponde ao amor a Cristo e aos seus membros.
120. A teologia escolástica chama essa disposição de “fé formada” (fides formata), uma fé configurada pelo amor [138] (cf. §§ 62-64). Nesse sentido, Tomás de Aquino distingue: o conteúdo deste sacramento só pode ser recebido na fé, pois é um “sacramento da fé” (mysterium fidei) [139]. A “infidelidade” (infidelitas) torna inepto em grau eminente para a recepção do sacramento, pois a descrença “separa da unidade da Igreja” [140], unidade que a Eucaristia significa. Em determinadas circunstâncias, no entanto, quando “quer receber o que a Igreja dá”, pode receber o sacramento, mesmo que a sua fé seja deficiente em relação a seu conteúdo [141]. Alguém que crê na presença de Cristo na Eucaristia, mas não se encontra em estado de graça e recebe o sacramento, comete um pecado grave [142]. Tomás argumenta que foi cometida uma mentira (falsitas): o que o sacramento expressa, o amor que une Cristo a seus fiéis, não ocorre no recebedor [143]. Tomás percebe que, para uma participação frutífera no Batismo e na Eucaristia, se requer em cada caso um grau diverso de disposição gerada pela fé. Para o Batismo, a intenção é suficiente para receber o que a Igreja dá. Na Comunhão, no entanto, é necessário entender o sacramento enquanto tal e crer [144].
121. Nas tradições litúrgicas, particularmente no Oriente, se percebe com clareza a interconexão entre a fé, o amor e a recepção da Eucaristia, como, por exemplo, no chamado do povo à comunhão: “Aproxima-te com fé, caridade e temor de Deus” [145]. Na Liturgia de São João Crisóstomo e na de São Basílio, tanto o diácono como o sacerdote e o povo recitam uma confissão de fé cristológica expressa perante Cristo, presente em Corpo e Sangue, pouco antes de comungar: “Creio, Senhor, e confesso que tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo, Aquele que veio ao mundo para salvar os pecadores. Creio também que este é o teu Corpo imaculado e este é o teu precioso Sangue...” [146]. A tradição siríaca, testemunhada por Efrém, entende que as promessas ligadas às duas árvores do Éden (Gn 2,17; 3,22) devem ser verdadeiramente cumpridas. O erro inicial ao comer da “árvore do conhecimento do bem e do mal” produziu uma queda, que logo teve de ser corrigida. O comer da “árvore da vida” se torna realidade na Comunhão eucarística com a oferenda eucarística de Cristo na árvore da cruz [147]. Na Celebração Eucarística, a Liturgia da Palavra se torna em um comer, frutífero e corretivo, da “árvore do conhecimento do bem e do mal”. Depois dessa refeição correta, todos estão convidados a comer da “árvore da vida” na Comunhão eucarística.
e) Proposta pastoral: Fé para a Eucaristia
122. O Batismo supõe o começo de uma peregrinação, cujo ponto culminante é alcançado apenas no eschaton. Por esse motivo, os cristãos recebem repetidamente o sacramento da Eucaristia, alimento para a jornada. Por isso, a Igreja nunca deixou de se reunir para celebrar o mistério da Páscoa, de ler neste contexto “em todas as Escrituras o que a Ele dizia respeito” (Lc 24,27) e de celebrar o banquete em que se transmite a autodoação do Salvador Crucificado e Ressuscitado no hoje dos fiéis. Contudo, não se pode receber adequadamente o dom que implica o sacrifício existencial de Cristo se não se estiver disposto a se deixar configurar existencialmente por esse dom a partir da fé. Sem fé, nem Pilatos, nem os soldados romanos, nem a plebe captaram como, na Morte na cruz de Jesus Cristo, Deus estava reconciliando o mundo consigo mesmo (2Cor 5,19); sem fé, não se percebe que quem estava pendurado no madeiro é o Filho de Deus (Mc 15,39). O olhar do fiel vê não apenas sangue e água saindo do lado traspassado, mas a Igreja, fundada no Batismo e na Eucaristia (cf. Jo 19,34). O sangue e a água que fluem daí são a fonte e o poder da Igreja [148]. O Filho de Deus se torna verdadeiramente “Emmanuel” em cada cristão através da participação no Corpo e no Sangue de Cristo [149].
123. [Fé sacramental e Eucaristia].
Sem uma fé sacramental, a participação na Eucaristia, especialmente a Comunhão,
não faz sentido. A Eucaristia não se refere a uma relação indiferenciada ou
genérica com a divindade. A fé sacramental, que intervém na celebração da
Eucaristia, é uma fé trinitária. Na Eucaristia, professamos um relacionamento
vivo com o Deus trinitário: agradecemos ao Pai pelo dom recebido da salvação, que
aconteceu por meio da entrega de seu Filho na força do Espírito, que agora é
lembrada e atualizada na celebração.
124. A fé sacramental supõe que tal
ação da Trindade seja reconhecida e que o banquete eucarístico seja percebido
como uma autêntica antecipação do banquete escatológico futuro. A força de Deus
já irrompe, transforma e santifica os fiéis, tornando-os concidadãos dos santos
(Ef 2,19) e cidadãos da Jerusalém celestial (cf. Hb 12,22; Ap 21–22; Hb 11,13).
125. A fé sacramental também se
expressa na irrevogável auto-vinculação de Jesus Cristo com o sacramento (ex
opere operato), com as espécies do pão e do vinho consagrados pela
invocação do Espírito na epiclese, com o resultado de que o receptor
não apenas pode esperar, mas também sabe na fé que, em um determinado momento,
recebe o que as espécies consagradas significam.
126. A fé sacramental também implica a
sacramentalização do próprio destinatário: ele não apenas recebe um sacramento,
mas ele mesmo se torna, em certo sentido, um “sacramento”, no sentido de que se
operou uma intensa conformação com Cristo pela ação do Espírito Santo e agora
ele vive em estreita união com Cristo e a Igreja, o que lhe permite oferecer-se
a Deus como um sacrifício vivo e espiritual (cf. Rm 12,1) e testemunhar a vida cristã. Dito
através de imagens: em uma pedra viva da comunidade confessante, da qual o
Concílio Vaticano II afirma que é o meio e o instrumento de Cristo para levar a
todos os seres humanos para a sua casa.
127. [Fé sacramental e comunhão
eclesial na Eucaristia]. A partir deste ponto de vista, a realização
individual da fé pessoal não pode ser separada da fé da comunidade que celebra
o sacramento. Há unidade e continuidade entre o que se celebra (lex orandi),
o que se crê (lex credendi) e o que se vive (lex vivendi), em
cujo quadro flui a vida cristã, a oração pessoal e a celebração sacramental.
Dado que a verdade que os cristãos confessam é uma pessoa, Jesus Cristo, também
há de ser representada pessoalmente pelos Apóstolos e por seus sucessores. A Comunhão
eucarística com Cristo de cada indivíduo deve ser verificada mediante a
comunhão de fé com o Papa e com o Bispo local, mencionados nominalmente em cada
Celebração Eucarística. Quem comunga não confessa apenas a Cristo, mas também
comunga com a confissão de fé da comunidade em que participa da Eucaristia.
128. Traduzido em outras categorias,
isso significa uma adesão clara e consciente à fé da Igreja, que inclui, de
modo explícito, a fé trinitária incorporada no Credo; a fé cristológica,
concentrada no significado redentor da Morte de Cristo, o Filho de Deus, o
Senhor, “para muitos” e “para mim”, e na Ressurreição; a fé pneumatológica,
particularmente ativa e presente através da dupla epiclese, fundamental na celebração; e a fé no que significa a Eucaristia como sacramento do Corpo de
Cristo e do corpo eclesial. Tudo isso enquadrado em um itinerário de fé, que
aspira, confiando na força poderosa do Espírito e em sua ajuda
permanente, a conformar a própria vida com o mistério de Cristo e testemunhá-lo
com alegria em meio às vicissitudes da vida. Neste caminho, o cristão acorre
com frequência ao alimento eucarístico, para receber o dom da comunhão com
Cristo, a fim de continuar crescendo na fé, na esperança e no amor até a vida
eterna.
129. [Incoerência na participação eucarística sem fé no que celebra]. A participação plena na Eucaristia significa a comunhão com o Corpo de Cristo (cf. Lumen Gentium, n. 3) e com a Igreja. Não parece possível aproximar-se dela com coerência se: não se reconhece o que significa a presença sacramental de Cristo na Eucaristia; se rejeita a fé trinitária da Igreja, invocada em diversos momentos durante a celebração, selada com a recitação do Credo; se a caridade cristã sofre graves deficiências na vida pessoal; se cometeu algum ato consciente e deliberado em uma matéria que compromete seriamente o que diz a fé e a moral eclesial (pecado mortal) [150].
130. [Caminhos de crescimento].
Quem está a caminho de Cristo acorre à Eucaristia dominical não porque é uma
obrigação estabelecida pela Igreja, mas por causa do desejo de ser fortalecido
pela misericórdia amorosa do Senhor. Esse desejo inclui a disposição para a
necessária reconciliação sacramental com Cristo e a Igreja, quando é
necessário. Contudo, mesmo sem a pressão emocional do desejo, quem participa da
fé católica sabe que se uniu a uma comunidade com uma estrutura sacramental.
Por isso, ele também está consciente de que a sua participação sacramental e,
especificamente, a Eucaristia, faz parte do testemunho público com o qual se comprometeu
livremente: testemunhar a realidade sacramental da fé para tornar claro a
visibilidade da graça e, assim, fortalecer a sacramentalidade da Igreja, sua
comunidade de pertença.
131. Devido à causalidade recíproca que
há entre a fé e a Eucaristia, em lugares onde não houve ou não há habitualmente
celebração da Missa e da catequese sacramental, devido aos limites da
instituição eclesial, torna-se mais difícil descobrir o significado da práxis
eucarística dominical. Ao mesmo tempo, a falta de participação frequente à mesa
da Palavra de Deus e do Corpo de Cristo, por falhas pessoais ou pastorais, é
uma carência que dificulta o crescimento em direção a uma fé sacramental mais
plena. Além de cuidar das Celebrações Eucarísticas em todos os seus contornos,
de acordo com o que nelas se significa, é oportuno propor caminhos para a
reinserção na fé eclesial, quando perdida, que culminem na Eucaristia como
coroação desse retorno; e também outro tipo de celebrações não eucarísticas e
espaços de encontro, oração e catequese para pessoas com uma assimilação cristã
difusa, cuja evangelização não amadureceu ainda para participar de modo
consciente da Eucaristia.
Notas:
[115] Doxologia que conclui a Oração Eucarística. cf. Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos, Missal Romano, 3ª ed. típica, § 119.127.136.144.
[116] cf. São João Paulo II, Encíclica Ecclesia de Eucharistia (17 de abril de 2003), especialmente os nn. 1.21-25.
[117] Bento XVI, Exortação Apostólica Sacramentum caritatis, n. 7.
[118] idem, Encíclica Deus caritas est, n. 14. cf. Exortação Apostólica Sacramentum caritatis, especialmente os nn. 88-89.
[119] “Quando as Sagradas Escrituras são lidas na Igreja, o próprio Deus fala ao seu povo, e Cristo, presente em sua Palavra, anuncia o Evangelho” (Introdução Geral do Missal Romano, § 29).
[120] Cânon Romano, in: Missal Romano, 3ª ed. típica, § 112. Ver o comentário de Bento XVI, Exortação Apóstólica Sacramentum caritatis, n. 6.
[121] cf. Tomás de Aquino, STh III, q.76 a.7. O conhecido hino “Adoro te devote” expressa magnificamente o que dizemos. Aqui está um exemplo: “In cruce latébat sola Déitas, / At hic látet simul et humánitas; / Ambo támen crédens átque cónfitens, / Peto quod petívit latro pœnitens” (Rituale Romanum de sacra Communione et de cultu mysterii eucharistici extra Missam, § 198).
[122] Francisco, Encíclica Lumen fidei, n. 44. Uma famosa antífona o acolhe esplendidamente: “O sacrum convivium in quo Christus sumitur: recolitur memoria passionis ejus: mens impletur gratia: et futurae gloriae nobis pignus datur” (Antífona ad Magnificat, II Vesperas Sanctissimi Corporis et Sanguinis Christi, in: Liturgia Horarum iuxta ritum romanun, v. III, Tempus per annum. Hebdomadae I-XVII, 54).
[123] Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos, Missal Romano, Ritos finais, § 144.
[124] “Si ergo vos estis corpus Christi et membra, mysterium vestrum in mensa Dominica positum est (…) Estote quod videtis, et accipite quod estis” (Agostinho, Sermo 272; PL 38, 1247s).
[125] São Paulo VI, Encíclica Mysterium fidei (03 de setembro de 1965), n. 5.
[126] cf. São João Paulo II, Encíclica Ecclesia de Eucharistia, passim.
[127] cf. Bento XVI, Exortação Apostólica Sacramentum caritatis, nn. 14.27.
[128] Francisco, Encíclica Lumen fidei, n. 44.
[129] cf. Hermas, O Pastor, Comp. IX (Funk, 211 e ss.).
[130] Justino, 1 Apol. 66s (Wartelle, 190s).
[131] Didaqué, 10,6; 9,5 (Funk, 6; 5).
[132] Constituições Apostólicas, VII, 26,6 (CSh 336, 57): “Se alguém é santo, aproxime-se; mas quem não é, que se torne através da penitência”.
[133] Τὰ Ἅγια τοῖϛ Ἁγίοιϛ. Presente em: Liturgia de São João Crisóstomo; Liturgia de São Basílio; Liturgia dos dons pré-santificados.
[134] João Crisóstomo, Hom. In Matth. 82,4 (PG 58, 743): fé na presença real; Hom. 25,3 (PG 57, 330 s); Hom. 7,6 (PG 57, 79 s); Super Rom. Hom. 8 (9), 8 (PG 60, 464-466): amor ao próximo; Super Hebr. 17,4-5 (PG 63, 131-134).
[135] Cipriano, Epistula 57,2 (CSEL 3/2, 651-652).
[136] João Crisóstomo, In Matth. Hom. 82,5. 6 (PG 58, 743-746): responsabilidade do sacerdote na administração.
[137] Agostinho, In Johannis Ev., XXVI, 11 (CCSL 36, 264 s.).
[138] Tomás de Aquino, STh III, q. 80 a.4.
[139] cf. também Boaventura, IV Sent. dist. 9 a.1 qq. 1-4: "sacramentaliter, spiritualiter manducare".
[140] Tomás de Aquino, STh III, q. 80 a.5 ad 2.
[141] “Si infidelis sumat species sacramentales, corpus Christi sub sacramento sumit. Unde manducat Christum sacramentaliter, si ly “sacramentaliter” determinat verbum ex parte manducati. Si autem ex parte manducantis, tunc proprie loquendo non manducat sacramentaliter; quia non utitur eo quod accipit ut sacramento, sed ut simplici cibo. Nisi forte infidelis intenderet recipere illud quod Ecclesia confert, licet non haberet fidem veram circa alios articulos vel etiam hoc sacramentum” (Tomás de Aquino, STh III, q. 80 a.3 a 2; grifo nosso).
[142] cf. Tomás de Aquino, STh III, q.79 a.3.
[143] “Quicumque ergo hoc sacramentum sumit, ex hoc ipso significat, se esse Christo unitum et membris eius incorporatum. Quod quidem fit per fidem formatam” (Tomás de Aquino, STh III, q.80 a.4).
[144] Tomás de Aquino, Sent. IV dist. 9 q.1 a 2 qª.2 ad 2; cf. STh III, q.79 a.7 ad2; a.8 ad 2 (este último sobre a diferença entre o Batismo e a Eucaristia).
[145] Μετὰ φόβου Θεοῦ, πίστεως καὶ ἀγάπης προσέλθετε. Liturgikon, 73.
[146] Πιστεύω, Κύριε, καὶ ὁμολογῶ ὅτι σὺ εἶ ἀληθῶς ὁ Χριστός, ὁ Υἱός τοῦ Θεοῦ τοῦ ζῶντος, ὁ ἐλθὼν εἰς τὸν κόσμον ἁμαρτωλοὺς σῶσαι, ὧν πρῶτός εἰμι ἐγώ. Ἔτι πιστεύω, ὅτι τοῦτο αὐτό ἐστι τὸ ἄχράντον Σῶμα σου, καὶ τοῦτο αὐτό ἐστι τὸ τίμιον Αἷμα σου. Liturgia de São João Crisóstomo (Liturgikon, 69-73); Liturgia de São Basílio (ibid., 133-135). De modo semelhante, a Liturgia Copta: Die koptische Liturgie, ubers. Und kommentiert von Karam Khella (1989), 186.
[147] Efrém, In Genesim, II, 23 (CSCO 152, 39; 153, 29-30).
[148] idem, Comentário ao Diatessaron, XXI, 11 (CSCO 137, 145; 145, 227-228).
[149] idem, De virginitate, 37,2 (CSCO 223.133).
[150] cf. Catecismo da Igreja Católica, § 1855-1861.
Fonte: Santa Sé, com pequenas correções feitas pelo autor deste blog.
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