São Leão Magno
Tratado 75
O
Espírito da verdade vos guiará até a plena verdade
Que a presente
solenidade, amadíssimos, deve ser venerada entre as principais festas, é algo
que intui qualquer coração católico; pois não é possível duvidar da grande
reverência que este dia merece, o qual foi consagrado pelo Espírito Santo com o
estupendo milagre de seu dom. Este dia é, de fato, o décimo a partir daquele em
que o Senhor subiu à extremidade dos céus para sentar-se à direita do Pai, e o
quinquagésimo a partir do dia de sua Ressurreição, dia que para nós brilhou
naquele no qual teve sua origem, e que contém em si grandes mistérios tanto da
antiga quanto da nova economia. Neles se manifesta com muita clareza que a
graça foi preanunciada pela Lei e que a Lei recebeu sua plenitude pela graça.
Na realidade, assim como cinquenta dias depois da imolação do cordeiro foi
entregue em outro tempo a Lei, no monte Sinai, ao povo hebreu libertado dos
egípcios, da mesma forma, após a Paixão de Cristo, na qual foi imolado o
verdadeiro Cordeiro de Deus, cinquenta dias depois de sua Ressurreição desceu o
Espírito Santo sobre os Apóstolos e sobre o grupo dos crentes, a fim de que
facilmente o cristão conheça atento que os começos do Antigo Testamento
serviram de base para os primeiros passos do Evangelho, e que a segunda aliança
foi selada pelo mesmo Espírito que tinha instituído a primeira.
Pois, como nos
assegura a história apostólica, todos os
discípulos estavam juntos no dia de Pentecostes. De repente veio um ruído do
céu, como de um vento forte, ressoou em toda a casa aonde se encontravam. Viram
aparecer algumas línguas de fogo, que se repartiam, pousando sobre cada um
deles. Todos ficaram cheios do Espírito Santo, e começaram a falar em línguas
estrangeiras, cada um na língua que o Espírito lhe sugeria. Ó, que veloz é
a palavra da sabedoria, e quando o mestre é Deus, prontamente se aprende o que
se ensina! Não foi necessário intérprete para entender, nem aprendizagem para
poder utilizá-las, nem tempo para estudá-las, mas, o Espírito da verdade,
soprando aonde quer, os diferentes idiomas de cada nação se converteram em
línguas universais na boca da Igreja. E foi a partir deste dia que ressoou a
trombeta da pregação evangélica; a partir deste dia a chuva de carismas e os
rios de bênçãos regaram todo lugar deserto e toda terra árida: porque para
repovoar a face da terra o Espírito de
Deus pairava sobre a face das águas, e, para afugentar as antigas trevas,
cintilavam os fulgores de uma nova luz, quando ao clamor do esplendor de
algumas línguas cintilantes, nasceu a norma do Senhor que ilumina e a palavra
ardente, as quais, para iluminar as inteligências e aniquilar o pecado,
foram-lhe conferidas a capacidade de iluminar e a força de abrasar.
Todavia, ainda
que a forma mesma, amadíssimos, em que se desenrolaram os acontecimentos fosse
realmente admirável, nem ficava a menor dúvida de que, naquela exultante
harmonia de todas as linguagens humanas, esteve presente a majestade do
Espírito Santo: contudo, ninguém deve cair no erro de crer que, naqueles
fenômenos que os olhos humanos contemplaram, se fez presente a sua própria
substância. Não: a natureza invisível, que possui em comum com o Pai e o Filho,
mostrou o caráter de seu dom e de sua obra mediante os sinais que ela mesma
escolheu, porém reteve na intimidade de sua deidade o que é próprio de sua
essência; pois assim como o Pai e o Filho não podem ser vistos por olhos
humanos, o mesmo ocorre com o Espírito Santo. Realmente, na Trindade divina
nada há de diferente, nada desigual; e quantos atributos possam ser pensados
daquela substância, não se distinguem nem no poder, nem na glória, nem na
eternidade. E mesmo quando na propriedade das Pessoas um é o Pai, outro o Filho
e outro distinto o Espírito Santo, apesar disso, não é diversa nem a deidade
nem a natureza. E se é certo que o Filho Unigênito nasce do Pai e que o
Espírito Santo é espírito do Pai e do Filho, no entanto, não o é como uma
criatura qualquer que fosse propriedade conjunta do Pai e do Filho, mas como
quem comparte a vida e o poder com ambos, e o comparte desde toda a eternidade,
visto que é subsistente assim como o Pai e o Filho.
Por isso, o
Senhor, à véspera de sua Paixão, ao prometer aos discípulos a vinda do Espírito
Santo, lhes disse: Muitas coisas me
restam para dizer-vos, mas não podeis suportá-las agora; quando Ele vier, o
Espírito da verdade, vos guiará até a plena verdade. Pois o que falar não será
seu, falará do que ouve e vos comunicará o que está por vir. Tudo o que o Pai
tem é meu. Por isso vos disse que tomará do que é meu e vos anunciará.
Disto se deduz que o Pai, o Filho e o Espírito não vivem em regime de separação
de bens, mas tudo o que o Pai tem, o tem o Filho e o tem o Espírito Santo; nem
houve momento algum em que na Trindade não se desse esta comunhão, pois na
Trindade possuir tudo e existir sempre são conceitos sinônimos. Tratando-se da
Trindade devemos excluir as categorias de tempo, de procedência ou
diferenciais; e se ninguém pode explicar o que Deus é, que não se atreva também
a afirmar o que Ele não é. Mas escusável é, de fato, não expressar-se
dignamente sobre esta inefável natureza do que definir o que lhe é contrário.
Portanto, tudo
quanto um coração piedoso é capaz de conceber referente à sempiterna e
incomutável glória do Pai, deve entendê-lo inseparável e indiferentemente ao
mesmo tempo do Filho e do Espírito Santo. Em consequência, confessamos que esta
Trindade é um só Deus, visto que nestas três Pessoas não se dá diversidade
alguma nem na substância, nem no poder, nem na vontade, nem na operação.
Fonte: Lecionário Patrístico Dominical, pp. 362-364. Para adquiri-lo no site da Editora Vozes, clique aqui.
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