Esta é a sexta e última postagem sobre o Documento "A Reciprocidade entre a Fé e os Sacramentos na Economia Sacramental", promulgado pela Comissão Teológica Internacional em 2020, que por sua relevância e extensão (195 parágrafos) dividimos em seis partes (confira os links para as anteriores no final desta postagem).
Aqui trazemos a segunda parte do capítulo IV, que iniciamos na postagem anterior, dedicado ao sacramento do Matrimônio e sua relação com a fé, além da Conclusão do Documento (nn. 168-195):
Comissão
Teológica Internacional
A Reciprocidade entre a Fé e os Sacramentos na Economia Sacramental
Sumário:
4. A reciprocidade entre fé e Matrimônio
4.3 A intenção e constituição do
vínculo matrimonial na ausência de fé
a) A intenção é
necessária para que haja sacramento
b) Compreensão
cultural predominante sobre o Matrimônio
c) A falta de
fé pode comprometer a intenção de contrair Matrimônio natural
5. Conclusão: A reciprocidade entre fé e sacramentos na economia
sacramental
4.3 A intenção e a constituição do vínculo matrimonial na ausência de fé
a) A intenção é necessária para que haja um sacramento
168. [Necessidade da intenção]. Como já dissemos [218] (cf. §§ 67-69), pertence à doutrina tradicional dos sacramentos a convicção de que para o sacramento a ser dado se exige pelo menos a intenção de fazer o que a Igreja faz: “Todos esses sacramentos se realizados por três elementos: das coisas, como a matéria; das palavras, como forma; e da pessoa do ministro, que confere o sacramento com a intenção de fazer o que a Igreja faz (cum intentione faciendi quod facit Ecclesia). Se um deles estiver faltando, o sacramento não se realiza” [219]. De acordo com a opinião comum da teologia latina, os ministros do sacramento do Matrimônio são os cônjuges, que se doam reciprocamente o Matrimônio [220]. No caso do Matrimônio sacramental, se requer ao menos a intenção de realizar um Matrimônio natural. Contudo, o Matrimônio natural, tal como o entende a Igreja, inclui como propriedades essenciais a indissolubilidade, a fidelidade e a ordenação ao bem dos cônjuges e ao bem da prole. Portanto, se a intenção de contrair Matrimônio não inclui essas propriedades, ao menos implicitamente, se dá uma carência grave na intenção, capaz de pôr em questão a própria existência do Matrimônio natural, base necessária para o Matrimônio sacramental [221].
169. [Inter-relação entre fé e
intenção]. Com ênfase variada, o Magistério dos três últimos Pontífices
constata a interconexão entre uma fé viva e explícita e a intenção de celebrar
um verdadeiro Matrimônio natural: indissolúvel e exclusivo, focado no bem dos
cônjuges, mediante sincera caridade oblativa, e aberto à prole. João Paulo II
pede para não se aceitar os cônjuges que rejeitam “de modo explícito e formal o
que a Igreja realiza ao celebrar Matrimônios entre batizados” (cf. § 153), uma vez que mantém a
necessidade “da reta intenção de se casar segundo a realidade natural do
matrimônio” (cf. § 154). Bento XVI
destaca o notável impacto da ausência de fé na concepção da vida, nas relações,
no próprio vínculo matrimonial e no bem dos cônjuges, podendo chegar a “ferir
também os bens do Matrimônio” (cf. §
161). Francisco indica como raiz da crise do Matrimônio a “crise do
conhecimento iluminado pela fé” (cf.
§ 163) e cita a falta de fé como um possível motivo para a simulação no
consentimento (cf. § 164). A
jurisprudência da Rota Romana segue a linha apontada por Bento XVI (cf. § 156). Precisando ainda mais, as
instâncias eclesiais mencionadas e os dois últimos Pontífices estimam que a
falta de fé viva e explícita suscita suspeitas fundadas sobre a intenção de
realmente celebrar um Matrimônio indissolúvel, definitivo e exclusivo, como
doação recíproca gratuita e aberta à prole, mesmo que em princípio não excluam
a possibilidade de isso ocorrer. Em nenhum caso se trata de um automatismo
sacramental simplista.
b) Compreensão cultural predominante sobre o Matrimônio
170. [Cultura predominante e compreensão do Matrimônio]. Em países cuja cultura predominante propõe a poligamia como um valor, o que é oposto ao desígnio divino (cf. Gn 1,26; 2,18-24), parece mais difícil considerar que, na ausência de fé explícita, a intenção de contrair Matrimônio inclua em si a exclusividade, inerente ao Matrimônio natural, de acordo com a concepção cristã. Além disso, o contexto cultural da poligamia, juntamente com outros aspectos que podem ocorrer independentemente da poligamia, colide com o “princípio de paridade” dos cônjuges, com base no fato da criação à imagem e semelhança de Deus [222], inerente ao mesmo bem dos cônjuges (bonum coniugum), um dos bens fundamentais do Matrimônio natural. Por outro lado, um tipo de exercício prático de poligamia, como realidade factual, se espalhou por muitos países ocidentais, onde a existência de um vínculo matrimonial ou de casal não é entendida como um obstáculo para viver simultaneamente outras realidades que, segundo a Igreja, pertencem exclusivamente à ordem conjugal.
171. Anos atrás, em países
tradicionalmente cristãos, havia um consenso sobre a realidade do Matrimônio,
que era formado pela influência exercida pela fé cristã na sociedade. Nesse
contexto, pode-se partir do ponto de que todo Matrimônio natural, com
independência de uma vida de fé viva e explícita, incluía as propriedades do Matrimônio
natural na sua intenção, tal como o entende a Igreja. Hoje em dia, com o
enraizamento e a difusão de outras concepções de família claramente divergentes
da católica, se impõe maior cautela, que geram novos problemas doutrinais e
pastorais.
172. O fato de que o Matrimônio seja
uma realidade criacional implica que a antropologia faça parte intrínseca de
sua essência em dois sentidos, estreitamente ligados entre si. Por um lado,
entra totalmente em jogo a concepção do que a pessoa humana é alguém que, como
ser relacional, realiza seu próprio ser na doação de si mesmo. Por outro lado,
também toca a essência do Matrimônio a compreensão da diferenciação sexual,
homem e mulher, como elemento do plano divino orientado à procriação e à
aliança conjugal, como reflexo da aliança divina: de Deus com o povo de Israel
e de Cristo com a Igreja. Ambos os elementos entram em cena plenamente no Matrimônio
natural: indissolúvel, exclusivo, focado no bem recíproco dos cônjuges, por
meio do amor interpessoal, e no bem da prole. Assim, a Igreja aparece, às vezes
de forma solitária e sob ataque, como baluarte cultural que preserva a
realidade natural própria do Matrimônio. No entanto, sem cair em lamentações
catastróficas, um olhar sincero ao nosso contexto cultural não pode deixar de
constatar como se vão consolidando cada vez mais, como axiomas inquestionáveis
na cultura pós-moderna, aspectos que levam a questionar em sua raiz
antropológica a base natural do Matrimônio. Assim, sem pretender ser exaustivo,
a tendência predominante inclui como evidentes, por exemplo, essas convicções
generalizadas, arraigadas e, às vezes, sancionadas pela legislação, claramente
contrárias à fé católica:
a) A busca da autorrealização pessoal,
centrada na satisfação do eu, como a meta maior da vida, que justifica as
decisões éticas mais substantivas, também no âmbito matrimonial e familiar.
Essa concepção se opõe ao sentido de sacrifício amoroso e a oblação como a
maior conquista da verdade da pessoa, que a fé cristã propõe, alcançando,
assim, de maneira magnífica seu sentido e realização.
b) Uma mentalidade do tipo “machista”, que desvaloriza a mulher, prejudicando a paridade conjugal ligada ao bem dos cônjuges, entendendo o Matrimônio como uma aliança entre dois que não seriam iguais pelo desígnio divino, natureza e direitos jurídicos, contra a concepção bíblica e a fé cristã [223]. A postura contracultural de Jesus, contra o divórcio (cf. Mt 19,3-8), era uma defesa da parte mais fraca da cultura da época: a mulher.
c) Uma “ideologia de gênero”, que nega
qualquer determinação biológica de caráter sexual na construção da identidade
de gênero, minando a complementaridade entre os sexos inscrita no plano do
Criador.
d) Uma mentalidade divorcista, que mina
a compreensão da indissolubilidade matrimonial. Pelo contrário, leva a
considerar os vínculos conjugais, mais comumente denominados de “casais”, como
realidades essencialmente passíveis de revisão, em contradição direta com o
ensinamento de Jesus a esse respeito em Mc 10,9 e Mt 19,6
(cf. Gn 2,24).
e) Uma concepção do corpo como
propriedade pessoal absoluta, disponível gratuitamente para obter o máximo
prazer, especialmente no campo das relações sexuais, desligadas de um vínculo
conjugal institucional e estável. No entanto, Paulo afirma a pertença do corpo
ao Senhor, excluindo a imoralidade (πορνεία), de tal maneira que o corpo se
torna um meio para a glorificação de Deus (cf. 1Cor 6,13-20).
f) A dissociação entre o ato conjugal e a procriação, contra toda a tradição da Igreja católica, da Escritura (Gn 1,28) até os dias atuais [224].
g) A equiparação ética, e às vezes
jurídica, de todas as formas de nivelamento. Assim, se propagam não apenas
uniões sucessivas, as uniões de fato, sem contrato matrimonial formal, mas
também uniões de pessoas do mesmo sexo. As uniões sucessivas, na verdade, negam
a indissolubilidade. As convivências temporárias ou experimentais ignoram a
indissolubilidade. As uniões de pessoas do mesmo sexo não reconhecem o
significado antropológico da diferença de sexos (Gn 1,27; 2,22-24),
inerente à compreensão natural do Matrimônio, segundo a fé católica.
c) A falta de fé pode comprometer a intenção de contrair Matrimônio natural
173. [A falta de fé pode comprometer
a intenção de celebrar um Matrimônio que inclua algum dos bens do Matrimônio].
Do ponto de vista da teologia dogmática, há motivos para duvidar de que no caso
de Matrimônios entre “batizados não-crentes”, de acordo com a tipologia aqui
descrita, ocorra um sacramento da fé devido a um grave defeito na intenção de
contrair um Matrimônio natural, presumivelmente como uma consequência muito
possível, quase inerente, da falta de fé, enunciada de maneira diferente pelos
dois últimos Pontífices. A falta de fé no caso dos “batizados não-crentes”, de
tipologia mencionada, pode ser qualificada como inequívoca e determinante das
concepções de vida. Portanto, as dúvidas mencionadas pelos Pontífices de
maneira genérica podem ser assumidas na íntegra para esses casos. Não se não
pode desejar, pretender ou amar o que se desconhece ou se rejeita
explicitamente.
174. [Incidência da ausência de fé nos bens naturais do Matrimônio]. No Matrimônio cristão há um vínculo, muito maior do que em qualquer outro sacramento, entre a realidade criatural e a sobrenatural, entre a ordem da criação e a da redenção. “O Matrimônio foi instituído por Deus criador” [225] e, em seguida, elevado à dignidade de sacramento. Dado esse vínculo tão próximo, entende-se que uma modificação da realidade natural do Matrimônio, um afastamento do projeto criador, afeta diretamente a realidade sobrenatural, o sacramento. Tal vínculo também ocorre em um sentido inverso, ao menos no caso extremo de Matrimônios entre “batizados não-crentes”. Pois a negação expressa da realidade sobrenatural, o abandono explícito da fé, inclusive às vezes com um ato formal, ou a total ausência de adesão à fé, batizados que nunca assumiram pessoalmente a fé, coloca essas pessoas totalmente à mercê das opiniões sociais vigentes em matéria matrimonial e familiar, bloqueando seu acesso à fonte criatural do Matrimônio.
175. Com efeito, se considerarmos conjuntamente a axiomática cultural dominante, anteriormente descrita, e a linha de reflexão de Bento XVI em seu último discurso à Rota Romana, de 26 de janeiro de 2013, pode-se afirmar que, na clara e explícita ausência de fé, a intenção sobre os bens essenciais do Matrimônio sofre um grave prejuízo. Bento XVI ilustrou isso claramente no que diz respeito ao bem dos cônjuges. Seu ponto de partida foi o seguinte: “No contexto do Ano da Fé, gostaria de analisar, de modo especial, alguns aspectos da relação entre fé e Matrimônio, observando como a atual crise da fé, que atinge várias partes do mundo, traz consigo uma crise da sociedade conjugal” [226]. Em outras palavras, o elemento sobrenatural afeta diretamente a realidade natural.
E ele continua mais adiante: “A ninguém passa despercebido como sobre a escolha do ser humano de se unir com um vínculo que dure toda a vida influa sobre a perspectiva de base de cada um, isto é, se for ancorada num plano meramente humano, ou se abra à luz da fé no Senhor. De fato, só abrindo-se à verdade de Deus é possível compreender, e realizar concretamente também na vida conjugal e familiar, a verdade do homem como seu filho, regenerado pelo Batismo” [227].
176. A verdade do homem no Matrimônio natural pertence ao plano de Deus. Bento XVI vincula a capacidade oblativa do verdadeiro amor generoso, bem dos cônjuges, à abertura ao amor verdadeiro, que é Deus, a partir da íntima unidade entre verdade e amor. Para que o amor específico ao bem dos cônjuges seja dado, é necessário estar aberto à verdade última do amor, ao amor de Deus. Em uma sociedade que apregoa a auto-realização pessoal como o bem supremo, parece muito difícil que, em uma notável e explícita ausência de fé, o vínculo conjugal seja entendido a partir do amor oblativo. Nas palavras de Bento XVI: “‘Quem permanecer em Mim e Eu nele, dará muito fruto, porque sem Mim nada podeis fazer’ (Jo 15,5): assim ensinava Jesus aos seus discípulos, recordando-lhes a incapacidade substancial do ser humano de realizar sozinho o que é necessário para a consecução do bem verdadeiro” [228]. A compreensão da vida e a prática do amor como autotranscendência altruísta, que busca acima de tudo o bem da outra pessoa, se aperfeiçoam com a graça divina.
177. O amor oblativo e a autotranscendência
altruísta não se limitam ao bem recíproco dos cônjuges, mas afetam plenamente o
bem da prole, o esplêndido fruto da fecundidade do amor conjugal. Se o bem do
amor entre os cônjuges é danificado em sua raiz, não pode não afetar também
direta e explicitamente o bem da prole.
178. A falta de fé por si mesma inclui
sérias dúvidas sobre a indissolubilidade em nosso contexto cultural. A maneira
social profundamente enraizada de entender o vínculo matrimonial: altamente
desejável em sua permanência, mas claramente revisável no entendimento do que é
propriamente como vínculo; assim como a proliferação tão tristemente abundante
de separações, fazem com que, sem uma fonte específica de conhecimento, a fé
como um meio de adesão ao plano criacional de Deus, exista razões para duvidar
de que há uma verdadeira intenção de indissolubilidade do vínculo ao contrair Matrimônio.
179. Em resumo, articulamos esses
pontos. A fé determina fundamentalmente a antropologia que é vivida. A
realidade substancial do Matrimônio é de natureza antropológica, criatural. Uma
total ausência de fé também determina a antropologia e, com ela, a realidade
natural do Matrimônio, que fica mais à mercê da axiomática cultural dominante.
Uma falta de fé desse tamanho em tal contexto permite duvidar com fundamento
sobre a existência de um verdadeiro Matrimônio natural, base imprescindível
sobre a qual se fundamenta o Matrimônio sacramental. Em outros termos: no caso
dos “batizados não-crentes” descritos, devido à falta de fé não se pode
pressupor como garantida a intenção de celebrar um Matrimônio natural, embora
também não possa ser excluída em sua origem.
180. [Da sacramentalidade]. Este ponto de vista está em total conformidade com a concepção de sacramentalidade que estamos defendendo (cf. esp. § 16). Lembremos que esta consiste na correlação inseparável entre uma realidade visível, externa, o significante, e outra de natureza sobrenatural, invisível, significada. A concepção do Matrimônio católico está baseada nesse entendimento da sacramentalidade. Portanto, para que haja um Matrimônio sacramental se requer, como realidade visível externa, um tipo de amor que, devido às suas qualidades particulares (bens do casamento: Gaudium et Spes, n. 48-50), juntamente com o auxílio recebido pela graça, possa significar o amor de Deus. Dito de outra forma: um vínculo matrimonial que não incluísse a indissolubilidade, a fidelidade, a disposição oblativa em relação ao outro cônjuge e abertura à prole não seria um sinal capaz de significar o amor de Cristo pela Igreja. A Igreja entende que, nesse tipo de vínculo, não aflora a verdade do amor matrimonial.
181. [Conclusão]. Nossa proposta
rejeita dois extremos. De um lado, um automatismo sacramental absoluto (cf. esp. §§ 41 e 78): todo Matrimônio
entre batizados seria sacramento, seja pela presença de uma fé mínima atuante
ligada ao “caráter” ou pela intervenção de Cristo e a Igreja pressuposta pelo Batismo.
De outro lado, um ceticismo sacramental elitista: qualquer grau de ausência de
fé viciaria a intenção e, portanto, invalidaria o sacramento. Afirmamos que, no
caso de uma ausência de fé tão explícita e clara como a dos “batizados
não-crentes”, como foi descrito, as dúvidas sérias sobre uma intenção que
inclua os bens do Matrimônio natural, tal como os entende a Igreja, permitem
sustentar reservas sérias sobre a existência de um Matrimônio sacramental.
Portanto, é coerente com a práxis sacramental de a Igreja negar o sacramento do
Matrimônio àqueles que o solicitam nessas condições, como João Paulo II já
sustentava (cf. §§ 153 e 169).
182. [Cuidado pastoral]. Tanto o contexto cultural descrito (cf. §§ 156, 170-172) quanto a existência de Matrimônios entre “batizados não-crentes” são um estímulo para que a pastoral matrimonial desenvolva todo seu vigor e potencialidade, em unidade com as sugestões de João Paulo II e Francisco [229]. O esplendor da profunda humanidade vivida nas famílias cristãs, cujo coração é a fé vivida por todos os seus membros, será um farol e uma estrela capaz de atrair e convencer. Um de seus objetivos poderia ser, precisamente, esses Matrimônios de “batizados não-crentes”, pois um despertar da fé significaria a eclosão da força da graça sacramental. De qualquer forma, a melhor resposta ao “desejo da família” que, apesar das dificuldades, é vivida em todos os lugares é “a alegria do amor que é vivida nas famílias” [230].
183. [Visibilidade sacramental da
graça]. A economia sacramental, como economia encarnada, exige em si uma
visibilidade da graça. A Igreja, herdeira e continuadora da obra de Cristo,
constitui esse sinal visível na história. Seu sentido não se limita a buscar os
meios de salvação para os próprios fiéis, mas torna visível a graça salvadora
de Deus no mundo. Se a Igreja desaparecesse, a tangibilidade histórica da
salvação em Jesus Cristo desapareceria. Por esse motivo, a Igreja mesma presta
um serviço para todos: ela é o meio e o instrumento que proclama a presença do
desígnio universal de salvação em Jesus Cristo na história. Todo cristão
participa dessa missão eclesial, que cada sacramento reforça à sua maneira. Em
cada sacramento há uma recepção do dom de Deus, uma configuração com Cristo e
uma missão eclesial para a vida do mundo.
184. Como a esfera sacramental se refere à visibilidade externa e verificável, quando o acesso aos sacramentos é negado, por exemplo, no caso de divorciados “recasados” ou outros, não se pode tirar uma conclusão disto sobre toda a verdade da qualidade da fé dessa pessoa. Os cristãos de outras confissões cristãs não estão em plena comunhão visível, sacramental, com a Igreja Católica, devido à persistência de diferenças significativas na doutrina e na vida cristã. Por isso, a celebração sacramental não pode tornar visível uma comunhão plena [231]. No entanto, não está excluído por princípio que a união com Cristo de um cristão não católico, através da caridade e da oração, possa ser mais intensa que a de um católico, apesar de que o segundo goze da plenitude objetiva dos meios salvíficos. Como afirma a Liturgia, o julgamento final sobre a qualidade da fé de cada pessoa pertence apenas a Deus: “cuja fé somente tu conheceste” [232].
185. [Crescimento, catecumenato].
A fé, como virtude, é uma realidade dinâmica. Pode crescer, fortalecer,
amadurecer; mas também experimenta seus opostos. O catecumenato ajuda para que
a recepção dos sacramentos se dê com uma fé mais consciente do que é recebido e
do que é comprometido. A caridade pastoral haverá de decidir os termos
concretos do catecumenato, de acordo com o sacramento em questão e das pessoas
que o solicitam, levando muito em consideração a qualidade e a intensidade do
contexto religioso de onde provêm. A formação de catequistas e seu testemunho
de vida é decisivo. Por outro lado, a própria recepção do sacramento, com o
compromisso que implica, convida a prosseguir o catecumenato, por meio da
catequese mistagógica, certamente após os sacramentos da Iniciação
e do Matrimônio. Tanto o crescimento da fé quanto um tipo de catecumenato
contínuo estão sendo bem-sucedidos em alguns dos chamados novos movimentos
eclesiais. Neles se consegue alcançar uma socialização da fé e da pertença
eclesial. Além disso, neles a dimensão sacramental da fé é fortemente
enfatizada, através da ênfase na recepção agradecida do dom, na adoração ao
Senhor, na frequente recepção dos sacramentos, enfatizando acima de tudo o dom
irrevogável de Deus, que vincula sua graça aos sacramentos sem condicioná-los à
perfeição dos ministros nem aos méritos de quem os recebem. Os sacramentos se
fortalecem a partir do horizonte vertical da sacramentalidade, pois não se
apoiam em si mesmos para testemunhar horizontalmente perante o mundo como a
graça de Deus se manifesta na fraqueza (cf. 2Cor 12,9).
186. [Inserção na economia
sacramental pela fé e pelos sacramentos]. A inserção do cristão na economia
sacramental acontece através da fé e dos sacramentos. Os sacramentos oferecem
àqueles que o desejam e adequadamente se dispõem a algo tão valioso quanto o
penhor da vida eterna e a proximidade amorosa de Cristo.
187. Na realização da economia
sacramental, como o desenrolar da Encarnação e de sua lógica, o Mistério Pascal
se mostra como o ponto culminante no qual se realiza o amor de Deus ao extremo
(Jo 13,1; 15,13). O cristão, através do Batismo, sacramento da fé,
incorpora-se a esse mistério, participando da Morte e da Ressurreição de Jesus
de maneira sacramental (Rm 6,3-4), ao mesmo tempo em que se torna
pedra viva da Igreja. Assim, a vida cristã se inicia com a inserção no núcleo
essencial da economia sacramental.
188. O mistério de Cristo incluiu, em
sua doação, o dom de seu Espírito, como grande dom do Ressuscitado. Em
Pentecostes, com a recepção do Espírito, no culminar de sua própria
constituição, a Igreja estava plenamente consciente de ser agraciada e enviada
a uma missão universal. O cristão se incorpora ao evento de Pentecostes através
dos sacramentos da Iniciação, com o fortalecimento de sua fé e
responsabilidade, tanto ad intra da comunidade
eclesial quanto ad extra como “discípulo
missionário”.
189. Na Última Ceia, Jesus antecipou,
em gestos e palavras, o significado de toda a sua vida e de seu próprio
mistério: Corpo entregue e Sangue derramado por “muitos”. Na Eucaristia, o
cristão recebe novamente o dom do Senhor, que ele aceita expressamente como tal
ao dizer “Amém”, para continuar sendo um membro ativo do Corpo de Cristo
presente no mundo.
190. A dinâmica da economia sacramental
pode ser lida como aliança de Deus com seu povo, uma imagem à qual as conotações
nupciais não são estranhas. No conjunto do mistério de Cristo, acontece a
renovação definitiva e irrevogável da aliança de Deus com seu povo por meio de
Cristo. Os cônjuges cristãos, ao desposar-se “no Senhor”, tornam-se um sinal
que testemunha o amor que preside a relação de Cristo com a Igreja.
191. Com sua vida, Morte e Ressurreição,
Jesus trouxe a salvação de Deus, que inclui o perdão dos pecados, a
reconciliação com Deus e a reconciliação entre os irmãos, derrubando o muro da
separação (Ef 2,4-6. 11-14). Quando o cristão contradiz o
significado do Evangelho e do seguimento de Cristo, ao receber o sacramento da Penitência
com fé arrependida, ele se reconcilia com Deus e com a Igreja. Assim, se por um
lado a Igreja se renova, o perdoado se torna embaixador do perdão de Deus em
Jesus Cristo.
192. Jesus se aproximou de muitos
doentes, confortando-os, curando-os e perdoando seus pecados. Quem recebe a Unção
se une sacramentalmente a Cristo neste momento em que o poder da doença e da
morte parece triunfar, para proclamar pela fé a vitória de Cristo e a esperança
da vida eterna.
193. Jesus reuniu em torno de si um
grupo de discípulos e seguidores, aos quais Ele instruía nos mistérios do reino
de Deus e manifestava o mistério de sua pessoa. Aqueles que respondem pela fé
ao chamado do Senhor e recebem o sacramento da Ordem são configurados com
Cristo, como Cabeça e Pastor, para continuar anunciando o Evangelho, guiando a
comunidade à semelhança do Bom Pastor e oferecendo o sacrifício vivo e santo.
194. [Natureza sacramental da fé].
A economia divina da salvação começa com a criação, se realiza na história e
caminha em direção à consumação eterna. Contudo, nem todo olhar para a história
capta nela a presença da ação de Deus; por exemplo, que a saída do Egito foi uma
libertação feita por Deus. Da mesma forma, é possível saber que Jesus Cristo
fez milagres ou que foi crucificado, mas apenas o olhar da fé reconhece nos
milagres sinais de sua messianidade (cf. Lc 7,18-23)
e divindade (cf. Mt 14,33;
Lc 5,8; Jo 5) e não o poder de Belzebu (cf. Mc 3,22); ou que na
cruz ocorreu o perdão dos pecados (cf. Mt 27,39-44),
a reconciliação com Deus (2Cor 5,18-20) e não apenas uma execução.
195. Por isso, seguindo Agostinho e Orígenes [233], podemos distinguir o que podemos chamar de uma visão simplesmente historicista dos eventos da história da salvação. Essa se caracteriza por limitar-se ao conhecimento dos acontecimentos, dando credibilidade às testemunhas que os narram, mas sem compreender seu significado histórico-salvífico. No entanto, o olhar próprio da fé, pelo dom do Espírito Santo, não apenas conhece os acontecimentos históricos em sua materialidade histórica, mas também percebe neles a sua natureza salvífica. Em outras palavras, esse olhar penetra na autêntica realidade sacramental do que acontece: ao captar a visibilidade do histórico, se percebe a profundidade da graça presente e atuante nesses acontecimentos. A esta forma de fé, que é propriamente a fé cristã, corresponde não apenas a intuição da presença da ação divina na história visível, mas também a capacidade de perceber a conexão desses acontecimentos com a esperança na vida futura. Por isso, esse tipo de fé não apenas crê na vida eterna, na Santíssima Trindade e em Cristo nosso Senhor, mas também é o tipo de fé próprio das pessoas que reconheceram o Ressuscitado nas aparições. Sem essa fé, a história não assume a forma de uma economia divina da salvação; mas se resume em um acúmulo de fatos, cujo significado é difícil de discernir, ou, de qualquer forma, seu significado é atribuído de fora. No entanto, com o dom da fé, o significado do curso dos fatos históricos está no significado que o próprio Deus lhes dá: a economia divina preside e governa a história, levando-a à vida eterna. Em suma, como a economia trinitária divina é de natureza sacramental, a fé cristã é genuinamente sacramental.
Notas:
[218] cf. também § 86 e o texto citado de Cirilo de Jerusalém, referindo-se ao Batismo.
[219] Concílio de Florença, Bula sobre a união com os armênios Exultate Deo (DH 1312).
[220] cf. Catecismo da Igreja Católica, § 1623.
[221] cf. Código de Direito Canônico, cân. 1101.
[222] cf. Comissão Teológica Internacional, Comunhão e serviço: A pessoa humana criada à imagem de Deus (2004), nn. 32-39.
[223] cf. Bento XVI, Discurso ao Tribunal da Rota Romana, 26 de janeiro de 2013, n. 3.
[224] cf. Concílio Vaticano II, Constituição Pastoral Gaudium et Spes, n. 50; São Paulo VI, Encíclica Humanae vitae (25 de julho de 1968), especialmente o n. 12.
[225] cf. Comissão Teológica Internacional, Doutrina Católica sobre o Matrimônio [1977], cap. 3.
[226] Bento XVI, Discurso ao Tribunal da Rota Romana, 26 de janeiro de 2013, n. 1.
[227] ibid., n. 2.
[228] ibid.
[229] cf. São João Paulo II, Exortação Apostólica Familiaris consortio, especialmente a IV parte: “A pastoral familiar: etapas, estruturas, responsáveis e situações”; Francisco, Exortação Apostólica Amoris laetitia, especialmente o capítulo VI: “Algumas perspectivas pastorais”.
[230] Francisco, Exortação Apostólica Amoris laetitia, n. 1.
[231] Para casos extraordinários, cf. Código de Direito Canônico, cân. 844, § 5 e Código dos Cânones das Igrejas Orientais, cân. 671, § 5; Pontifício Conselho para a Promoção da Unidade dos Cristãos, Diretório para a aplicação dos princípios e normas sobre o ecumenismo (25 de março de 1993), § 122-131.
[232] Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos, Missal Romano, Oração Eucarística para diversas necessidades D.
[233] cf. Agostinho, De vera rel. 50,99 (CCSL 32, 251); De Trin. I, 6,11; II, 17,29; IV, 3,6 (CCSL 50, 40; 119-120; 166-169); Enarr. in Ps. 65,5 (CCSL 39, 842-844); Ep. 120,3,15; 147 (PL 33, 459; 596-622); Orígenes, Com. Rm. 2,14 (PG 14, 913ss.); Hom. in Lc. 1,4 (SCh 87, 104-106).
Fonte: Santa Sé, com pequenas correções feitas pelo autor deste blog.
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