sexta-feira, 21 de maio de 2021

Reciprocidade entre fé e sacramentos (5): Matrimônio

Ao longo dessa semana estamos apresentando aqui em nosso blog o Documento "A Reciprocidade entre a Fé e os Sacramentos na Economia Sacramental", promulgado pela Comissão Teológica Internacional em 2020, que por sua relevância e extensão (195 parágrafos) dividimos em seis partes.

As primeiras duas partes cobriram os capítulos I e II, sobre à relação entre fé e sacramentos em geral (nn. 1-41 e nn. 42-79), enquanto as duas postagens seguintes foram dedicadas ao capítulo III, sobre os sacramentos da Iniciação Cristã:  Batismo e Confirmação (nn. 80-101) e Eucaristia (nn. 102-131).

Cabe-nos agora, portanto, iniciar aqui o capítulo IV (nn. 132-167), que reflete sobre o sacramento do Matrimônio e sua relação com a fé:

Comissão Teológica Internacional
A Reciprocidade entre a Fé e os Sacramentos na Economia Sacramental

Sumário:
4. A reciprocidade entre fé e Matrimônio
4.1 O sacramento do Matrimônio
    a) Fundamentação bíblica
    b) Luzes a partir da tradição
    c) O Matrimônio como sacramento
    d) A fé e os bens do Matrimônio
4.2 Uma quaestio dubia: A qualidade sacramental do Matrimônio dos “batizados não-crentes”
    a) Abordagem da questão
    b) Estado e termos da questão

4. A reciprocidade entre fé e Matrimônio

132. [Problemática]. Se há um sacramento no qual a reciprocidade essencial entre fé e sacramentos, por várias razões, é posta em prova, este é o Matrimônio. Na própria definição do sacramento do Matrimônio, segundo a Igreja latina, a fé não aparece de modo explícito (cf. § 143). Fica pressuposto, por assim dizer, pelo fato prévio do Batismo, o sacramento da fé por excelência. Além disso, para a validade do Matrimônio entre batizados na Igreja latina não se requer a intenção de celebrar um sacramento [151]: não é necessário o desejo ou a consciência da sacramentalidade da união matrimonial, mas apenas a intenção de contrair um matrimônio natural, isto é, de acordo com a ordem da criação, com as propriedades que a Igreja considera inerentes ao matrimônio natural. Dentro dessa compreensão do Matrimônio, compete à teologia elucidar o complexo caso de Matrimônios entre “batizados não-crentes”. Uma defesa definitiva da sacramentalidade de tais uniões minaria a reciprocidade essencial entre fé e sacramentos, como característica da economia sacramental, apoiando, pelo menos no caso do Matrimônio, um automatismo sacramental que temos rejeitado como impróprio da fé cristã (cf. cap. 2).

133. [Abordagem]. Cientes da dificuldade da questão colocada sob o título “Reciprocidade entre fé e Matrimônio”, procederemos da seguinte maneira. Primeiro, já que, mesmo compartilhando um tronco comum, há diferenças notáveis ​​na teologia do Matrimônio entre a tradição latina e a oriental, nos concentramos exclusivamente no entendimento latino. A rica tradição oriental possui uma fisionomia própria. Apontamos alguns aspectos distintos entre ambas. Enquanto na teologia latina predomina a compreensão de que os cônjuges são os ministros do sacramento e que esse acontece através do mútuo consentimento livre dos cônjuges, para a tradição oriental a bênção do Bispo ou do sacerdote pertence em si à essência do sacramento [152]. Somente ao ministro sagrado foi conferido o poder de invocar o Espírito (epiclese) para que ele realize a santificação inerente ao sacramento. Possui uma própria regulamentação canônica completa [153]. Isto se deve a uma concepção do sacramento do Matrimônio que brota de uma teologia com personalidade e perfil próprios, na qual se põe em primeiro plano os efeitos santificantes do sacramento [154].
134. Em segundo lugar, tratamos, de acordo com a metodologia habitual (cf. § 80), com suas adaptações, o caso ordinário do sacramento do Matrimônio. Em seguida, investigamos a questão duvidosa sobre a qualidade sacramental dos Matrimônios entre “batizados não-crentes”, com uma abordagem dupla: o estado da questão e uma proposta teológica de solução, congruente com a reciprocidade entre fé e sacramentos, que não nega a teologia matrimonial vigente.


4.1 O sacramento do Matrimônio

a) Fundamentação bíblica

135. [O Matrimônio no desígnio divino]. Ainda que cada sacramento tenha uma singularidade específica, o caso do Matrimônio se destaca por sua particularidade. O Matrimônio, como tal, pertence à ordem criatural, dentro do desígnio divino (cf. Gaudium et Spes, n. 48). A realidade natural do Matrimônio repousa na capacidade relacional entre pessoas de sexo diferente, homem e mulher (Gn 1,27), estreitamente ligada à fecundidade (Gn 1,28), que culmina em uma forma de união que forma “uma só carne” (cf. Gn 2,23-24). O diálogo sacramental de Deus ao longo de toda a economia divina da salvação encontra aqui uma realidade criada por Deus à sua imagem, à imagem do Deus trinitário [155], absolutamente capaz de expressar a relação amorosa, de aliança entre Deus e o povo, sua esposa, sempre representada simbolicamente por uma mulher. Na perspectiva cristã, essa realidade criatural se converte em sacramento, um sinal visível do amor de Cristo pela Igreja (Ef 5,25.31-32).

136. [O Matrimônio no ensinamento de Jesus]. Diante da prática do repúdio (Dt 22,19.29; 24,1-4), Jesus reitera o projeto original de Deus: “O que Deus uniu, o homem não separe” (Mc 10,9; Mt 19,6; cf. Gn 2,24; 1Cor 6,16), esclarecendo que o repúdio foi uma concessão devida a dureza de coração (Mc 10,5 e Mt 19,8). Ao longo da história foi muito controvertida a interpretação da cláusula de Mateus: “que todo aquele que repudiar sua mulher - exceto por motivo de ‘fornicação’ uniões ilegítimas (πορνείᾳ) - e desposar outra, comete adultério” (Mt 19,9; cf. 5,32). Após inúmeras discussões, não se chegou a um consenso sobre a porneia nem sobre as consequências precisas que teria. A tradição latina sempre excluiu a possibilidade de uma segunda união por esse motivo [156], subsequente a uma primeira união válida (cf. Mc 10,10-11), o que concorda com a perplexidade dos discípulos segundo o texto de Mateus (Mt 19,10).

137. [O Matrimônio e o mystérion]. A própria presença de Jesus nas bodas de Caná (Jo 2,1-12), com todo o seu significado de bodas messiânicas, juntamente com outras alusões de natureza nupcial (Mt 9,15 e par.; Mt 25,5-6), acentuam a capacidade da relação conjugal de expressar aspectos profundos do mistério de Deus, como, por exemplo, a sua fidelidade diante de nossa infidelidade à sua aliança (cf. Ez 16.23; Os 2; Jr 3,1-10; Is 54). A Carta aos Efésios (Ef 5,31-32) correlaciona expressamente a aliança matrimonial com o mystérion (sacramentum) da aliança irrevogável entre Cristo e a Igreja. A partir do conjunto do testemunho bíblico, a Igreja considerou a indissolubilidade como um elemento fundamental tanto do matrimônio natural quanto do Matrimônio entre cristãos. A união entre homem e mulher, indissolúvel por natureza, realiza sua verdade na fidelidade e no bem da prole. Após a recepção do Batismo (da configuração dos cônjuges com Cristo e da sua santificação pela habitação do Espírito), de certo modo, torna-se por si mesma uma representação sacramental da fidelidade de Cristo [157]. O amor entre os esposos cristãos não é estranho à nova fonte de sua vida cristã e de sua fé. Na vida cristã, fé e amor não podem ser absolutamente dissociados.

138. [O Matrimônio: Qualificado pela fé]. Seguindo São Paulo, a Igreja também entendeu o relacionamento conjugal como algo altamente qualificado pela presença da fé (cf. 1Cor 7,12-16). No caso do Matrimônio de um cristão com um não-cristão, Paulo diz o seguinte: “Pois o marido não cristão é santificado pela esposa, e a esposa não cristã é santificada pelo marido cristão” (1Cor 7,14). Nesta passagem (especialmente 1Cor 7,15), se fundamenta o chamado privilégio paulino, no qual se vislumbra uma qualificação superior, na ordem da graça, do Matrimônio sacramental sobre o natural.

Mosaico das "Bodas de Caná"

b) Luzes a partir da Tradição

139. O típico “casar-se no Senhor”, próprio dos cristãos, foi se expressando de diferentes maneiras ao longo da história. Segundo a Carta a Diogneto, no princípio os cristãos não se diferenciavam: “Eles se casam como todos” [158]. No entanto, isso logo foi evoluindo. Inácio de Antioquia já mantém a conveniência de comunicar o enlace ao Bispo [159]. Tertuliano, por sua vez, elogia as uniões que a Igreja abençoa [160]. Além da interpretação precisa do alcance das expressões desses primeiros teólogos, destaca-se como o acontecimento do Matrimônio não era estranho à fé dos contraentes nem da comunidade eclesial. A partir dos séculos IV e V, a bênção eclesial, por parte de um ministro, era costume estabelecido [161]. A partir de então, se vai gestando uma Liturgia cristã própria [162], integrando costumes tipicamente pagãos e transformando-os, como é o caso da velatio [163], a coroação [164], a entrega da noiva, a união das mãos [165], a bênção dos anéis, as arras ou o beijo dos esposos; ao mesmo tempo em que se acrescentam outros, como a apresentação aos cônjuges da “taça comum”, típica da Liturgia bizantina [166]. A Liturgia matrimonial, em suas orações e na interpretação dos gestos, expressa o lugar único do Matrimônio na economia divina, com alusões aos textos bíblicos sobre o Matrimônio. Tanto Pedro Lombardo quanto o II Concílio Lateranense consideram o Matrimônio um sacramento; algo que confirmaram tanto o Concílio de Florença como o de Trento com convicção total [167]. Neste último Concílio, determina-se a necessidade da forma canônica para a validade do sacramento, sem modificar a compreensão doutrinal do mesmo, mostrando assim que se trata de uma realidade eclesial e que pertence à ordem da fé, que se realiza in facie Ecclesiae  [168], contra a doutrina dos reformadores, que considera o Matrimônio uma questão puramente civil [169]. Dessa maneira, o caráter eclesial do Matrimônio é reconhecido, longe de entendê-lo como um assunto privado entre os cônjuges.

c) O Matrimônio como sacramento

140. Se os sacramentos pressupõem a fé (Sacrosanctum Concilium, n. 59), o Matrimônio não é exceção: “Os pastores, movidos pelo amor a Cristo, devem acolher os noivos e, antes de tudo, promover e fortalecer sua fé: pois o sacramento do Matrimônio a pressupõe e exige” [170]. Uma união matrimonial entre um homem e uma mulher, ambos não batizados, do ponto de vista da fé cristã, é uma realidade criatural tremendamente valiosa, capaz de ser elevada à ordem sobrenatural, por exemplo, no caso de uma ulterior conversão dos cônjuges. Ou seja, no casamento “natural” há uma realidade significativa aberta à sua plena realização e conclusão em Cristo. Nas primeiras comunidades, a realidade matrimonial não é vivida à margem da fé. Os cristãos vivem a aliança conjugal “no Senhor” (1Cor 7,39). Determinados comportamentos públicos e contrários à fé no âmbito dos relacionamentos de casal podem se tornar causa de excomunhão da comunidade (1Cor 5). Pois o amor conjugal entre esposos cristãos se tornou um sinal, um sacramento, que expressa o amor de Cristo à sua Igreja. Esse sinal de amor irrevogável apenas expressa o que significa se esse mesmo vínculo é indissolúvel, aspecto já presente “desde o princípio” no desígnio divino e que, portanto, configura essencialmente a realidade de todo Matrimônio autêntico em seu núcleo teológico. Desse modo, essa realidade humana tão profunda como é o amor de um casal, tão característica de nosso ser relacional, a capacidade de doação mútua entre cônjuges e filhos, expressa o mais profundo do mistério divino: o amor.
141. Dois católicos batizados, confirmados e com prática eucarística habitual, dão um belo e significativo passo à frente em sua vida de fé quando celebram seu Matrimônio. Eles recebem a graça do sacramento do Matrimônio, que consiste basicamente no fato de que agora “significam e participam do mistério da unidade do amor fecundo entre Cristo e a Igreja (cf. Ef 5,32), auxiliam-se mutuamente para a santidade, pela vida conjugal e pela procriação e educação dos filhos” [171]. Seus caminhos de fé se uniram para testemunhar a força do amor de Cristo pela Igreja, para o enriquecimento mútuo, para a educação cristã dos filhos e para a santificação recíproca [172]. Eles formam uma “Igreja doméstica” [173]; “são fortalecidos e como que consagrados em ordem aos deveres do seu estado por meio de um sacramento especial” (Gaudium et Spes, n. 48). Deste modo, dão andamento concreto à maturidade da fé, própria da Confirmação, assumindo um estado de vida cristã (cf. Lumen Gentium, n. 11) e responsabilidades na comunidade cristã. Na celebração de seu Matrimônio, sua fé é pressuposta, expressa, nutrida e fortalecida pela ação de Cristo no sacramento - quem “permanece com eles” (Gaudium et Spes, n. 48) -, com a aliança matrimonial e com a vida familiar que agora empreendem sob a bênção de Deus e da Igreja. O Matrimônio católico expressa com intensidade que é um projeto de vida concebido e alentado pela fé [174], como um modo de santificação recíproca, em que os cônjuges exercem o sacerdócio comum ao doar-se reciprocamente o sacramento [175] (cf. Lumen Gentium, n. 10). A consciência e o propósito de ser um sacramento do amor de Deus pressupõem e expressam a fé pessoal de cada um dos cônjuges. Assim, ele realmente aparece como um sacramento da fé, no qual tanto Jesus Cristo como o Espírito Santo, o Espírito de Amor (cf. Rm 5,5), atuam eficazmente. O amor que os cônjuges professam um ao outro já está determinado pela realidade de batizados. A santificação que o sacramento opera impulsiona esse amor sobrenatural na realização da comunidade conjugal e familiar.

d) A fé e os bens do Matrimônio

142. A presença da fé e a ação eficaz da graça sacramental impelem os cônjuges a realizar os bens próprios do Matrimônio: “Esta união íntima, já que é o dom recíproco de duas pessoas, exige, do mesmo modo que o bem dos filhos, a inteira fidelidade dos cônjuges e a indissolubilidade da sua união” (Gaudium et Spes, n. 48). A indissolubilidade (cf. Gaudium et Spes, n. 49) é entendida pela fé como uma nota essencial da relação conjugal, porque, de outro modo, se afastaria do plano original de Deus (Gn 2,23-24) e deixaria de ser sinal visível do amor irrevogável de Cristo à sua Igreja. A fidelidade entre os esposos e a busca generosa do bem do outro cônjuge (cf. Gaudium et Spes, n. 49) é vivida como algo que flui com suavidade e coerência da fé e do relacionamento pessoal com o Senhor Jesus. Pois a fé nos coloca em um relacionamento pessoal com Jesus Cristo, ao mesmo tempo em que nos apresenta como um modelo a seguir Aquele que deu a sua vida pelos pecadores (p. ex: Mc 10,45; Rm 5,6-8; 14,15; Ef 5,2; 1Jo 4,9-10). A partir da fé, os esposos cristãos procuram traduzir em sua vida conjugal e familiar a máxima segundo a qual “há mais felicidade em dar que em receber” (At 20,35). Pela fé, a fecundidade (cf. Gaudium et Spes, n. 50) está inscrita no plano de Deus (Gn 1,28), sendo a prole um dos seus sinais de bênção. O amor do Deus trinitário nos ensina, pela fé, que o amor verdadeiro sempre inclui a máxima reciprocidade amorosa e a máxima abertura para o outro. Por isso, a fé impede compreender o Matrimônio como uma espécie de egoísmo calculado do casal. Uma fé ativa de ambos os esposos inclui a compreensão de que Deus, como autor do Matrimônio, “o dotou de diversos bens e fins” (Gaudium et Spes, n. 48), que os cônjuges cristãos se esforçam para viver e cultivar. Consequentemente, uma fé viva e compartilhada no âmbito da união matrimonial reduz a possibilidade de que tanto em cada cônjuge quanto no casal se enraízem tendências egocêntricas ou individualistas, apesar da pressão do ambiente da cultura circundante.


4.2 Uma quaestio dubia: A qualidade sacramental do Matrimônio dos “batizados não-crentes”

a) Abordagem da questão

143. [Definição]. O Matrimônio é uma realidade criatural. Pelo Batismo, o vínculo natural eleva-se a um sinal sobrenatural: “A aliança matrimonial, pela qual o homem e a mulher constituem entre si uma comunhão de vida toda, é ordenada por sua índole natural ao bem dos cônjuges e à geração e educação da prole, e foi elevada, entre os batizados, à dignidade de sacramento, por Cristo Senhor” [176]. De acordo com a doutrina teológica e a práxis canônica atualmente em vigor, todo contrato matrimonial válido entre batizados é “por si mesmo” sacramento [177], mesmo na ausência de fé dos contraentes. Quer dizer, no caso dos batizados se afirma a inseparabilidade entre um contrato matrimonial válido, correspondente à ordem criatural do Matrimônio, e o sacramento. Os batizados não poderiam ter entrado simultaneamente na ordem sacramental, por meio do Batismo, sem que isso afetasse uma realidade tão determinante da vida e capaz de um significado sacramental como o Matrimônio, que ficaria subtraído da ordem sacramental à qual pertencem irrevogavelmente os cônjuges após o Batismo (cf. §§ 166d e 167d). Essa doutrina deve ser aplicada também ao caso da união conjugal entre “batizados não-crentes”? Nesse assunto delicado, a “reciprocidade entre fé e sacramentos”, o que defendemos, parece ser questionada. Para resolver adequadamente o problema, é necessário precisar o estado e os termos da questão de um modo mais detalhado.

144. [“Batizados não-crentes”]. Entendemos por “batizados não crentes” aquelas pessoas nas quais não há um sinal de presença da natureza dialogal da fé, próprio da resposta pessoal do fiel à interlocução sacramental do Deus trinitário, tal e como expusemos no capítulo II. Esta categoria abrange dois tipos de pessoas. As pessoas que receberam o Batismo na infância, mas mais tarde, por qualquer motivo, não chegaram a realizar um ato pessoal de fé, que envolvesse seu entendimento e sua vontade. Este é um caso muito frequente nos países tradicionalmente cristãos, onde uma descristianização muito ampla da sociedade é acompanhada por uma grande negligência na educação da fé. Também nos referimos às pessoas batizadas que negam conscientemente a fé de modo explícito e não se consideram fiéis católicos nem cristãos. Inclusive, em determinadas ocasiões, realizam um ato formal de abandono da fé católica e de separação da Igreja, sem que o motivo do ato formal de abandono da Igreja Católica seja o ingresso em outra igreja, comunidade ou confissão cristã. Nos dois casos, a presença de uma “disposição para crer” não é percebida [178].

145. [Formulação preliminar da questão]Portanto, a questão que se coloca é se dois “batizados não crentes” solteiros, de sexos diferentes, de qualquer um dos dois tipos descritos, se desposam mediante uma celebração sacramental ou de algum outro modo de união válida: acontece um sacramento? O assunto é objeto de debate e gerou uma literatura abundante. Sua solução não é clara, uma vez que diversos elementos de grande importância entram em jogo com interação simultânea. A seguir, iremos visitar alguns marcos significativos de seu desenvolvimento nos últimos anos, nos ensinamentos dos últimos Pontífices, bem como nas instâncias eclesiais oficiais, para nos situarmos com responsabilidade nos termos da questão.

b) Status e termos da questão

146. [Comissão Teológica Internacional]Em 1977, a Comissão Teológica Internacional produziu um documento intitulado A doutrina católica sobre o sacramento do Matrimônio. Entre os tópicos abordados figuram: a sacramentalidade do Matrimônio, o Matrimônio entre “batizados não-crentes” e a inseparabilidade entre contrato e sacramento. Foram sustentadas uma série de teses, muito sutis, que permitem perceber a tensão entre a convicção da necessidade de fé para a celebração de um sacramento e a relutância em declarar a fé como determinante para a sacramentalidade do Matrimônio. Das afirmações do Documento, que não reproduzimos na sua íntegra, destacam-se as seguintes para o nosso tema.
147. A existência de uma relação constitutiva e recíproca entre indissolubilidade e sacramentalidade. E eles especificaram: “A sacramentalidade constitui o fundamento último, embora não o único, da indissolubilidade do Matrimônio” (§ 2.2.).
148. Quanto à inter-relação entre fé e sacramento do Matrimônio, sustentaram que no sacramento do Matrimônio a fonte da graça é Jesus Cristo, não a fé dos sujeitos contratantes. E eles delimitaram: “Isso não significa, porém, que no sacramento do Matrimônio a graça seja dada fora da fé ou sem alguma fé” (§ 2.3.). A fé seria “causa dispositiva” para a frutuosidade e não para a validade.
149. Sobre os “batizados não-crentes”, eles disseram: “O fato dos ‘batizados não-crentes’ põe, hoje, um novo problema teológico e um grave dilema pastoral, sobretudo se emerge claramente a ausência e a rejeição da fé. A intenção requerida - a intenção de fazer o que Cristo e a Igreja fazem - é a condição mínima necessária para que exista verdadeiramente um ato humano de compromisso no plano da realidade sacramental. Certamente, não é necessário confundir o problema da intenção com o da fé pessoal dos contraentes; mas também não é possível separar totalmente. Em última análise, a verdadeira intenção nasce e se nutre de uma fé viva (grifo nosso). No caso em que não se perceba nenhum traço de fé enquanto tal (no sentido do termo “crença”, disposição para crer) nem qualquer desejo de graça e salvação, se coloca o problema de saber, na realidade, se a intenção geral e verdadeiramente sacramental, da qual acabamos de falar, está presente ou não, e se o Matrimônio foi ou não validamente contraído. A fé pessoal das partes contratantes não constitui, como foi demonstrado, a sacramentalidade do Matrimônio, mas a ausência de fé pessoal compromete a validade do sacramento” (§ 2.3.).
Em seu comentário, publicado juntamente com o Documento, o então secretário da Comissão, Dom Delhaye, afirma: “A chave do problema está na intenção, na intenção de fazer o que a Igreja faz ao oferecer um sacramento permanente que envolve indissolubilidade, fidelidade e fertilidade” [179].
150. Posteriormente, o Documento da Comissão reafirma a inseparabilidade entre contrato e sacramento: “Para a Igreja, de fato, entre dois batizados, não existe matrimônio natural separado do sacramento, mas unicamente um Matrimônio natural elevado à dignidade de sacramento” (§ 3.5.).

151. [São João Paulo II]. Durante o Pontificado de João Paulo II, ele se voltou repetidamente para o tema do Matrimônio dos “batizados não-crentes” e a necessidade da fé para o sacramento do Matrimônio. A proposição 12.4 aprovada pela V Assembleia Geral do Sínodo dos Bispos, que versou sobre a família, realizada em 1980, dizia: “Que seja examinado com mais seriedade se a afirmação segundo a qual um Matrimônio válido entre batizados é sempre um sacramento se aplica também àqueles que perderam a fé. Que disto se extraiam imediatamente consequências jurídicas e pastorais” [180].
152. Na Exortação pós-sinodal Familiaris consortio, João Paulo II sustentará, de modo consequente, que o ato conjugal fica intrinsecamente qualificado pela realidade sobrenatural à qual os batizados pertencem de modo irrevogável, além da consciência expressa desta realidade [181]. Sobre o nosso tema, ele indica com clareza: “Querer estabelecer critérios ulteriores de admissão à celebração eclesial do Matrimônio, que deveriam considerar o grau de fé dos nubentes, compreende, além do mais, riscos graves. Antes de tudo, o de pronunciar juízos infundados e discriminatórios; depois, o risco de levantar dúvidas sobre a validade de Matrimônios já celebrados, com dano grave para as comunidades cristãs, e de novas inquietações injustificadas para a consciência dos esposos; de cairia no perigo de contestar ou de pôr em dúvida a sacramentalidade de muitos Matrimônios de irmãos separados da comunhão plena com a Igreja Católica, contradizendo assim a tradição eclesial” [182].
153. Apesar de tudo, ele não deixa de reconhecer a possibilidade de que os contraentes solicitem simultaneamente a celebração eclesial do Matrimônio e deem “sinais de rejeição explícita e formal do que a Igreja faz quando celebra o Matrimônio de batizados”. Nesse caso, ele sentencia: “o pastor não pode admiti-las à celebração” [183]. Podemos interpretar que, nesse caso, não haveria sacramento verdadeiro. Em outras palavras, João Paulo II exige um mínimo, mesmo que seja apenas a ausência de rejeição explícita e formal do que a Igreja realiza. Portanto, a seu modo, ele também rejeita o que podemos denominar de automatismo sacramental absoluto [184].
154. Mais tarde, em um discurso importante à Rota Romana, em 30 de janeiro de 2003, ele advertiu claramente a inexistência de dois tipos de Matrimônio, um natural e outro sobrenatural: “A Igreja não recusa a celebração das núpcias a quem está bene dispositus, mesmo se imperfeitamente preparado do ponto de vista sobrenatural, sob condição de que tenha a reta intenção de casar segundo a realidade natural da conjugalidade. Com efeito, não se pode configurar, paralelamente com o Matrimônio natural, outro modelo de Matrimônio cristão com específicos requisitos sobrenaturais” [185]. Essa opinião já havia sido claramente defendida por João Paulo II em outro discurso à Rota Romana, em 01 de fevereiro de 2001 [186]. No ano de 2001, ele enfatizou que a fé não deveria ser solicitada como requisito mínimo, algo estranho à tradição [187]. Ele ratificou os fins naturais do Matrimônio e que o Matrimônio consiste em uma realidade natural, não exclusivamente sobrenatural. Nesse contexto, ele acrescenta: “o obscurecimento da dimensão natural do Matrimônio, com a sua redução a uma mera experiência subjetiva, comporta também a implícita negação da sua sacramentalidade” [188]. Em outras palavras, a base de tudo reside na realidade natural, criacional.

São João Paulo II, protetor das famílias
(Mosaico no Santuário de São João Paulo II em Cracóvia)

155. [A elaboração do Código de Direito Canônico]. Nos trabalhos prévios à elaboração do Código de Direito Canônico, foi discutida amplamente a questão da inseparabilidade entre a realidade natural do Matrimônio e o Matrimônio sacramental como uma realidade salvífica. No final, o legislador optou por manter a doutrina mais comum, sem pretender elucidar doutrinariamente a questão, pois ela não era de sua competência. Ao legislar, são coletadas as premissas teológicas mais comumente aceitas [189]. Essa inseparabilidade foi discutida durante o Concílio de Trento. Entre seus oponentes, destaca-se a figura de Melchor Cano. Não foi definido, embora seja a opinião mais constante. Muitos a qualificaram como doutrina católica [190]. O Código de Direito Canônico a acolhe no cânon 1055, § 2, já mencionado [191].

156. [A jurisprudência da Rota Romana]. A jurisprudência rotal, seguindo a doutrina católica, considera a indissolubilidade como uma propriedade essencial do Matrimônio natural. Contudo, em um contexto cultural e social muito secularizado, no qual convicções muito diferentes daquelas da Igreja se encontram difundidas e arraigadas, questiona-se, de fato, se na ausência de fé se aceita a indissolubilidade do Matrimônio. Assim, desde já há alguns anos, a jurisprudência estima que a falta de fé possa afetar a intenção de celebrar um Matrimônio natural [192]. De algum modo parece ecoar esta sensibilidade na proposição 40 da XI Assembleia Geral do Sínodo dos Bispos, realizada em outubro de 2005, sob o pontificado de Bento XVI, que tratou sobre a Eucaristia. Nele, em atenção aos divorciados que se casaram ​​novamente, dizia-se: “O Sínodo incentiva que se façam todos os esforços possíveis para assegurar o caráter pastoral, a presença, a correta e a solícita atividade dos tribunais eclesiásticos quanto às causas da nulidade matrimonial (cf. Dignitas connubii), seja para aprofundar ulteriormente os elementos essenciais para a validade do Matrimônio, como também em conta também os problemas emergentes do contexto de profunda transformação antropológica de nosso tempo, pelo qual os próprios fiéis correm o risco de ser condicionados, especialmente se tiverem falta de uma sólida formação cristã” (grifo nosso) [193].

157. [J. Ratzinger - Bento XVI]. O então Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, Cardeal Joseph Ratzinger, declarou claramente em 1997: “Deveria ser esclarecido se todo Matrimônio entre batizados é ipso facto sacramental. De fato, o próprio Código indica que só o contrato matrimonial ‘válido’ entre batizados é ao mesmo tempo sacramento (cf. CIC, cân. 1055 § 2). À essência do sacramento pertence a fé; permanece para ser esclarecida a questão jurídica sobre qual evidência de ‘não-fé’ tenha como consequência que o sacramento não se realize” [194]. Em uma opinião que emitiu como Papa, Bento XVI, em um discurso a sacerdotes em 2005, indica que o problema é muito difícil, que a fé como motivo da invalidade ainda abriga dúvidas e que continua exigindo aprofundamento [195].
158. Em seu último discurso à Rota Romana, em 26 de janeiro de 2013 [196], o Papa Bento XVI voltou a aprofundar esta questão, tão importante para ele. Extraímos algumas de suas contribuições. No início de suas reflexões, ele alude à questão da fé e da intenção, de acordo com a Comissão Teológica Internacional, cujo Documento menciona: “O pacto indissolúvel entre homem e mulher não exige, para fins da sacramentalidade, a fé pessoal dos nubentes; o que é exigido, como condição mínima necessária, é a intenção de fazer o que a Igreja faz. Mas se é importante não confundir o problema da intenção com o da fé pessoal dos contraentes, contudo não é possível separá-los totalmente” [197].
159. Em seguida, ele explica como a fé e a abertura a Deus determina grandemente a concepção da vida em todas as suas facetas e, especificamente, em algo tão delicado quanto um vínculo para toda a vida (indissolubilidade, exclusividade e fidelidade). “A recusa da proposta divina, com efeito, conduz a um desequilíbrio profundo em todas as relações humanas, incluída a matrimonial, e facilita uma compreensão errada da liberdade e da auto-realização”. Daí segue, de acordo com Bento XVI, “um desequilíbrio profundo em todas as relações humanas, incluída a matrimonial”. Se “facilita uma compreensão errada da liberdade e da auto-realização que, unida à fuga da paciente tolerância do sofrimento, condena o homem a fechar-se no seu egoísmo e egocentrismo” [198].
160. Desta falta de fé não se deduz automaticamente a impossibilidade de um matrimônio natural. Porém: “A fé em Deus, apoiada pela graça divina, é um elemento muito importante para viver a dedicação mútua e a fidelidade conjugal (...) Mas certamente o fechamento a Deus ou a recusa da dimensão sagrada da união conjugal e do seu valor na ordem da graça torna árdua a encarnação concreta do modelo altíssimo de Matrimônio concebido pela Igreja segundo o desígnio de Deus, podendo chegar a minar a própria validade do pacto quando, como assume a consolidada jurisprudência deste Tribunal, se traduz numa recusa de um princípio da mesma obrigação conjugal de fidelidade, ou seja, dos outros elementos ou propriedades essenciais do Matrimônio” [199].
161. Mais adiante, ele adentra como a fé incide decisivamente sobre o bem dos cônjuges: “Na realidade, no propósito dos esposos cristãos de viver uma verdadeira communio coniugalis há um dinamismo próprio da fé, motivo pelo qual a confessio, a resposta pessoal sincera ao anúncio salvífico, envolve o crente no mote de amor de Deus” [200]. Ele continua afirmando como a confissão de fé, longe de permanecer em um nível abstrato, envolve plenamente a pessoa na caridade confessada, uma vez que verdade e amor são inseparáveis. E conclui: “Não se deve prescindir da consideração que se possam verificar casos nos quais, precisamente devido à ausência de fé, o bem dos cônjuges resulte comprometido, isto é, excluído do próprio consenso” [201]. De tal maneira que a carência de fé “possa, mesmo se não necessariamente, ferir também os bens do Matrimônio, a partir do momento que a referência à ordem natural querida por Deus é inerente ao pacto conjugal (cf. Gn 2, 24)” [202].

162. [Francisco]. A necessidade de um estudo mais aprofundado, solicitado por Bento XVI, permanece válido, de acordo com as constatações prévias das últimas assembleias sinodais sobre a família e das declarações do Papa Francisco. Assim, o Instrumentum laboris para a III Assembleia Geral Extraordinária do Sínodo dos Bispos (2014) incluiu sumariamente a nossa questão: “Em muitos casos, indicados de modo particular na Europa e na América do Norte, pede-se para facilitar o procedimento em vista da nulidade matrimonial; a este propósito, indica-se a necessidade de aprofundar a questão da relação entre fé e sacramento do Matrimônio - como foi sugerido diversas vezes por Bento XVI” [203]. A Relatio Synodi, que serve tanto como conclusão da III Assembleia Geral Extraordinária como de Lineamenta para a XIV Assembleia Geral do Sínodo, também alude à questão [204]; do mesmo modo como o Instrumentum laboris para a XIV Assembleia (2015) [205]. A Exortação pós-sinodal Amoris laetitia adverte em sua Introdução: “A complexidade dos temas tratados mostrou-nos a necessidade de continuar a aprofundar, com liberdade, algumas questões doutrinais, morais, espirituais e pastorais” [206]. E acrescenta: “Em todo o caso, precisamos refletir mais sobre a ação divina no rito nupcial, que aparece muito evidenciada nas Igrejas Orientais ao ressaltarem a importância da bênção sobre os contraentes como sinal do dom do Espírito” [207]. A presente reflexão sobre a “reciprocidade entre fé e matrimônio” se situa modestamente nesse caminho.
163. O Papa Francisco também abordou nossa questão em diversas circunstâncias. No discurso à Rota Romana de 23 de janeiro de 2015 [208], se referiu aos possíveis vícios de origem no consentimento, que podem afetar a validade, apontando como isso pode ocorrer “diretamente por defeito de validade intencional, quer por grave déficit na compreensão do próprio Matrimônio a ponto de determinar a vontade (cf. cân. 1099)” [209]. E acrescentou: “A crise do Matrimônio, de fato, muitas vezes é na sua raiz crise de conhecimento iluminado pela fé, ou seja, da adesão a Deus e ao seu desígnio de amor realizado em Jesus Cristo” [210].
164. Seguindo esta linha, a Carta Apostólica na forma de Motu Proprio Mitis iudex Dominus Iesus [211], de 15 de agosto de 2015, declara: “Entre as circunstâncias que podem permitir o tratamento da causa de nulidade do Matrimônio através do processo mais breve, segundo os cânones 1683-1687, contam-se, por exemplo: aquela falta de fé que pode gerar a simulação do consentimento ou o erro que determina a vontade” [212]. Assim, a falta de fé pode resultar um fator determinante para a validade.
165. No ano seguinte, a 22 de janeiro de 2016, ao falar para a Rota Romana [213], se manifestou nesse sentido: “É bom reafirmar com clareza que a qualidade da fé não é condição fundamental do consenso matrimonial que, segundo a doutrina de sempre, só pode ser minado a nível natural (cf. CIC, cân. 1055 §§ 1 e 2)” [214]. E ele endossou a doutrina que apoia a presença do habitus fidei operativo após o Batismo, mesmo sem uma fé psicologicamente perceptível. E conclui: “As faltas da formação na fé e também o erro acerca da unidade, da indissolubilidade e da dignidade sacramental do Matrimônio viciam o consenso matrimonial unicamente se determinam a vontade (cf. CIC, cân. 1099). Precisamente por isto os erros que se referem à sacramentalidade do Matrimônio devem ser avaliados muito atentamente” [215].

Papa Francisco abençoa recém-casados em uma Audiência

166. [Os termos da questão]A partir desta breve visão geral dos ensinamentos dos últimos Pontífices sobre o nosso tema, bem como das instâncias eclesiais, parece claro que a questão de fundo não está totalmente resolvida, embora seja bastante focada. Fazendo um balanço interpretativo e sistematizado, esses aspectos entram em jogo na inter-relação e na tensão dinâmica:
a) Como em todo o sacramento, no Matrimônio se dá uma transmissão da graça de Cristo. Essa graça não é devida à fé dos ministros, de acordo com a tradição latina dos contraentes, senão a um dom de Cristo, que está ativamente presente no pacto conjugal, e do Espírito.
b) Não pode haver sacramento sem fé. Uma espécie de automatismo sacramental negaria a natureza dialogal da economia sacramental, que se estrutura sobre a conexão íntima entre fé e sacramentos (cf. cap. 2). Assim, pois, para que haja sacramento no caso do Matrimônio entre “batizados não-crentes” deve haver alguma fé atuante, independentemente da dificuldade para determiná-la positivamente, seja nos cônjuges seja no julgamento na sua totalidade pela Igreja Mãe.
c) A dificuldade prática de verificar a ausência de fé dos cônjuges é um problema pastoralmente árduo e complexo (cf. § 61). No entanto, cabe à teologia esclarecer dogmaticamente esse ponto tão nuclear para uma compreensão correta do sacramento do Matrimônio.
d) O Batismo validamente recebido enxertou irrevogavelmente os batizados na economia sacramental, com a impressão do “caráter” (cf. § 65). Sua realidade pessoal, além de seus atos conscientes de entendimento e vontade, característicos da fé [216], já está marcada por essa pertença sem que o pecado ou a ausência de uma fé, seja informe ou formada, possa apagar ou anular o que produziu o dom irrevogável de Cristo.
e) A doutrina católica mais estabelecida sustenta a inseparabilidade entre contrato e sacramento (cf. § 155). O esclarecimento definitivo deste aspecto permanece pendente. A separação entre contrato e sacramento teria um impacto direto sobre o assunto em questão. Dado o estado atual da doutrina católica, parece oportuno aderir à opinião mais comum hoje em dia sobre a inseparabilidade entre contrato e sacramento.
f) A fé dos cônjuges é determinante para a frutuosidade do sacramento (cf. § 68). A validade, e com ela a sacramentalidade, depende de que tenha havido um verdadeiro vínculo matrimonial: um Matrimônio natural.
g) O mínimo imprescindível para que haja um sacramento reside na intenção de contrair um verdadeiro Matrimônio natural (cf. § 154).
h) No caso do sacramento do Matrimônio, a fé e a intenção não podem ser identificadas, mas também não podem ser completamente separadas (cf. §§ 149 e 158). Sendo claro que a verdade sacramental do Matrimônio depende da intenção e que a fé influencia a intenção, não está totalmente claro como e em que medida a falta de fé afeta a intenção.
Propomos aprofundar neste último ponto o caso descrito dos “batizados não-crentes” (cf. § 144), aspecto congruente com a reciprocidade entre fé e sacramentos que estamos defendendo.

167. [Possíveis alternativas teóricas para resolver a questão]. Mas, primeiro, para concluir, vejamos o elenco de possíveis soluções teóricas para nosso tema e sua solução teológica, de acordo com a perspectiva teológica que fundamentamos previamente e estamos construindo (cap. 2).

a) Em primeiro lugar, um automatismo sacramental absoluto poderia ser defendido. O fato do Batismo implicaria, independentemente da fé dos contraentes, que o contrato matrimonial seja elevado “eo ipso” à realidade sobrenatural do sacramento. Essa solução colide com a índole dialogal da economia sacramental que temos exposto razoavelmente, então, a descartamos.
b) Uma segunda possibilidade seria defender a separação entre contrato e sacramento. Sendo correto que a identidade entre contrato e sacramento não foi definida solenemente, seria necessário, para considerar essa separação como teologicamente verdadeira, fornecer um argumento específico convincente a esse respeito. Renunciamos explorar essa via e seguimos os termos mais habituais da teologia católica atual sobre o Matrimônio.
c) Uma terceira opção afirmaria a presença da fé eclesial, apesar da ausência de uma fé pessoal das partes contraentes. A fé eclesial supriria a ausência da fé pessoal por parte dos contraentes. Esta opção, no entanto, também apresenta seus problemas. Por um lado, a essência do sacramento é dada no consentimento entre os cônjuges. A partir desta base, a Igreja pode exigir certos requisitos formais para sua validade, como de fato acontece hoje, como fruto de uma longa história. Por outro lado, ao longo da exploração da natureza dialogal da economia sacramental (cap. 2), mostramos como a fé eclesial antecede e acompanha a fé pessoal, mas nunca a supre completamente. Atribuir a sacramentalidade do Matrimônio exclusivamente à fé eclesial implicaria negar a natureza interpessoal da economia sacramental.
d) Uma quarta possibilidade consiste em atribuir a sacramentalidade à eficácia ligada ao “caráter” impresso no Batismo. O “caráter” é devido à irrevogabilidade do dom de Cristo. Implica a inserção na realidade sacramental da economia. Ele capacita ao exercício dialogal da sacramentalidade, sem que por si mesmo supor um exercício ativo da sacramentalidade. O habitus, ligado ao “caráter”, é uma disposição para agir; não um desempenho nem um ato. Requer que seja exercido por um poder, como, por exemplo, a vontade [217]. Assim, pois, com a impressão do “caráter” e ao infundir o hábito, afirma-se, com toda veemência, a interlocução sacramental por parte de Deus, mas falta a resposta dialogal, de índole pessoal, por parte do sujeito agraciado, que permaneceu, no entanto, capacitado para dar essa resposta.
e) Como já antecipamos, resta a possibilidade de discutir sobre a intenção, uma vez que, para a validade de todo sacramento, deve ser dada a intenção de fazer o que a Igreja pretende em cada sacramento.

Notas:
[151] cf. Código de Direito Canônico, cân. 1099.
[152] cf. Código dos Cânones das Igrejas Orientais, cân. 828.
[153] cf. ibid., Titulus XVI: De cultu divino et praesertim de sacramentis. Caput VII: De Matrimonio, cân. 776-866.
[154] “Ex Christi institutione matrimonium validum inter baptizatos eo ipso est sacramentum, quo coniuges ad imaginem indefectibilis unionis Christi cum Ecclesia a Deo uniuntur gratiaque sacramentali veluti consecrantur et roborantur” (ibid., cân. 776, § 2).
[155] cf. Comissão Teológica Internacional, Comunhão e serviço: A pessoa humana criada à imagem de Deus (2004), nn. 32-33.39.
[156] cf. Concílio de Trento, XIV Sessão. Cânones sobre o sacramento do Matrimônio, cân. 7 (DH 1807).
[157] cf. Agostinho, De nuptiis et concupiscentia, I, X, 11 (CSEL 42, 222-224; PL 40, 420).
[158] Ep. ad Diognetum, 5,6 (Funk, 137).
[159] Inácio de Antioquia, Ep. ad Polycarpum, 5,2 (Funk, 107; FuP 1, 186).
[160] Tertuliano, Ad Uxorem II, 8 (CCSL 1, 393; SCh 273, 148).
[161] cf. Gregório Nazianzeno, Ep. 231 (PG 37, 373); Ambrosiaster, Comm. in Epist. I ad Cor 7,40 (PL 17, 225); Comm. in Epist I ad Tim 3,12 (PL 17, 470); Pseudo-Agostinho, Quaest. Novi et Veteris Testamenti, CXXVII (CSEL 50, 400); Ambrósio, Epist. 19 ad Vigilium trident., 7 (PL 16, 984-985); Predestinatus, III, 31 (PL 53, 670).
[162] cf. Sacramentário Reginensis, 316 (Rerum ecclesiasticarum documenta, series major, Fontes 4, ed. LK Mohlberg, 1447, 1449, 1453); Hanc igitur do Sacramentário Veronense, 85 (Mohlberg, 1107).
[163] cf. Sacramentário de Hadrianum, 836 (ed. J. Deshusses); Paulino de Nola, Carmen 25, 199-232 (CSEL 30, 244-245).
[164] cf. João Crisóstomo, In I Tim. Cap. II, hom. IX, 2 (PG 62, 546).
[165] cf. Gregório Nazianzeno, Ep. 193 (PG 37, 316-318).
[166] Para mais detalhes, cf. A. Raès, Le mariage, sa célébration et sa spiritualité dans les Églises d’Orient, Chevetogne 1959; K. Ritzer, Formen, Riten und Religiöses Brauchtum der Eheschliessung in den Christlichen Kirchen des ersten Jahrtausends, Münster 1962; B. Kleinheyer; E. Von Severus; R. Kaczynski (eds.), Gottesdienst der Kirche. Handbuch der Liturgiewissenschaft 8. Sakramentliche Feiern II, Regensburg 1984.
[167] Pedro Lombardo, Summa Sentenciarum IV. d. 2 e 26 (PL 192, 842 e 908); II Concílio de Latrão, cân. 23 (DH 718); Concílio de Florença, Decreto para os Armênios (DH 1327); Concílio de Trento, VII sessão. Decreto sobre os sacramentos. Cânones sobre os sacramentos em geral, cân. 1 (DH 1601).
[168] Concílio de Trento, XIV Sessão. Cânones sobre uma reforma do Matrimônio. Decreto “Tametsi” (DH 1813-1816).
[169] M. Lutero, De captivitate babylonica, De matrimonio (WA 6,550); J. Calvino, Inst. Christ. Lib. IV, c. 19,34 (Corp. Reform. 32,1121).
[170] Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos, Ordo celebrandi Matrimonium, Praenotanda § 16 (1989), com referência ao Concílio Vaticano II, na Constituição Sacrosanctum Concilium, n. 59. A mesma ideia se encontra nas Praenotanda § 7 de 1969.
[171] Concílio Vaticano II, Constituição Dogmática Lumen Gentium, n. 11; cf. n. 41; Catecismo da Igreja Católica, § 1641-1642.
[172] cf. Pio XI, Encíclica Casti connubii (31 de dezembro de 1930).
[173] cf. At 16,15; 18,8; Concílio Vaticano II, Constituição Dogmática Lumen Gentium, n. 11; Catecismo da Igreja Católica, § 1655-1657.
[174] cf. Francisco, Exortação Apostólica Amoris laetitia (19 de março de 2016), n. 218.
[175] cf. idem, Exortação Apostólica Gaudete et exsultate, n. 141.
[176] Catecismo da Igreja Católica, § 1601; que cita literalmente o Código de Direito Canônico, cân. 1055, § 1.
[177] “Quare inter baptizatos nequit matrimonialis contractus validus consistere, quin sit eo ipso sacramentum” (Código de Direito Canônico, cân. 1055, § 2).
[178] cf. Comissão Teológica Internacional, A doutrina católica sobre o sacramento do Matrimônio (1977), § 2.3.
[179] Comentário II.
[180] “As 43 proposições do Sínodo dos Bispos sobre a família”: Ecclesia, n. 2039 (18 a 25 de julho de 1981), p. 894. A proposição 12.4 foi aprovada com 196 votos a favor, 7 contra e 3 abstenções. (As 43 proposições do Sínodo dos Eventos da Família: La Documentation Catholique, 1809 [7 de junho de 1981], p. 540). Veja a proposição 12 completa, que trata diretamente do nosso tema.
[181] São João Paulo II, Exortação Apostólica Familiaris consortio (22 de novembro de 1981), nn. 13.68.
[182] ibid., n. 68.
[183] ibid., n. 165.[184] cf. Concílio de Trento, VII sessão. Cânones sobre os sacramentos em geral, cânon 6 (DH 1606). Veja a nota 82.
[185] São João Paulo II, Discurso ao Tribunal da Rota Romana, 30 de janeiro de 2003, n. 8.
[186] idem, Discurso ao Tribunal da Rota Romana, 1º de fevereiro de 2001.
[187] ibid., n. 8.
[188] ibid.
[189] cf. Communicationes, 9 (1977), 122.
[190] cf. Communicationes, 15 (1983), 222.
[191] Ver nota 177.
[192] cf. Sentença coram Stankiewicz, 19 de abril de 1991: SRRD 83, 280-290.
[193] “Proposições do Sínodo dos Bispos sobre a Eucaristia”: Ecclesiam n. 3284 (19 de novembro de 2005) 34.
[194] J. Ratzinger, “Introduzione”, in: Congregação para a Doutrina da Fé, Sulla pastorale dei divorziati risposati (Documenti e Studi 17), LEV, Città del Vaticano, 1998, 27-28.
[195] Bento XVI, Discurso aos sacerdotes da Diocese de Aosta, 25 de julho de 2005.
[196] idem, Discurso ao Tribunal da Rota Romana, 26 de janeiro de 2013.
[197] ibid., n. 1.
[198] ibid., n. 2.
[199] ibid.
[200] ibid., n. 3.
[201] ibid., n. 4.
[202] ibid.
[203] Sínodo dos Bispos, III Assembleia Geral Extraordinária: Desafios pastorais da família no contexto da evangelização. Instrumentum Laboris (2014), 96.
[204] “De acordo com outras propostas, deve-se considerar a possibilidade de dar relevância ao papel da fé dos noivos para a validade do sacramento do Matrimônio, tendo presente que, entre batizados, todos os Matrimônios válidos são sacramentos” (Relatio Synodi, 48).
[205] Sínodo dos Bispos, XIV Assembleia Geral Ordinária: A vocação e missão da família na Igreja e no mundo contemporâneo. Instrumentum laboris (2015), 114-115.
[206] Francisco, Exortação Apostólica Amoris laetitia, n. 2.
[207] ibid., n. 75.
[208] idem, Discurso ao Tribunal da Rota Romana, 23 de janeiro de 2015.
[209] ibid.
[210] ibid.
[211] idem, Motu proprio Mitis iudex Dominus Iesus, 15 de agosto de 2015.
[212] ibid., artigo 14, § 1.
[213] idem, Discurso ao Tribunal da Rota Romana, 22 de janeiro de 2016.
[214] ibid.
[215] ibid.
[216] cf. Tomás de Aquino, STh II-II, q. 4 a.4.
[217] cf. ibid., STh I-II, q. 49-51.

Fonte: Santa Sé, com pequenas correções feitas pelo autor deste blog.

A sexta e última parte do Documento a ser publicada é: Matrimônio (2): nn. 168-195.

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