quarta-feira, 21 de dezembro de 2022

História da Solenidade de Santa Maria, Mãe de Deus

Salve, ó Santa Mãe de Deus, vós destes à luz o Rei que governa o céu e a terra pelos séculos eternos” [1].

No dia 01 de janeiro, oitavo dia após a Solenidade do Natal do Senhor, a Igreja de Rito Romano celebra a Solenidade de Santa Maria, Mãe de Deus. “Mãe de Deus” é, com efeito, o título por excelência com o qual as Igrejas do Oriente e do Ocidente invocam a Virgem Maria.

Santa Maria, Mãe de Deus
(Abside da antiga Catedral de Constantinopla, Santa Sofia ou Hagia Sophia)

1. As primeiras celebrações associadas ao dia 01 de janeiro

Desde o ano 42 a. C. o dia 01 de janeiro marca o início do ano civil na tradição romana. Uma vez que esse dia era marcado por festas populares, muitas vezes com excessos na comida e na bebida, e por práticas supersticiosas, as primeiras celebrações desse dia no Rito Romano tinham um caráter penitencial, a fim de afastar os cristãos de tais costumes pagãos.

Santo Agostinho (†430) em seu Sermão 198 exortava os cristãos nesse dia às típicas práticas “quaresmais”: jejum, esmola e oração, exortação que seria retomada pelo II Concílio de Tours (567) e pelo IV Concílio de Toledo (633).

“Que eles [os pagãos] deem presentes de Ano Novo: vós, porém, dareis esmolas; que eles cantem canções licenciosas: vós, porém, vos deixareis atrair pela Palavra de Deus; que eles se apressem em ir ao teatro: vós, porém, vos apressareis em ir à igreja; que eles se embriaguem: vós, porém, vos entregareis ao jejum” [2].

Os Sacramentários Veronense (séc. V-VI) e Gelasiano (séc. VII-VIII) traziam para o dia 01 de janeiro uma Missa Ad prohibendum ab idolis (Para afastar dos ídolos). A partir do Sacramentário Gregoriano (final do séc. VIII), porém, essa Missa já não aparece, embora algumas orações desse dia tenham conservado o pedido pelo perdão dos pecados.

2. A Festa da Mãe de Deus no dia 01 de janeiro

Em Roma, após a fixação da celebração do Natal do Senhor no dia 25 de dezembro (século IV), o dia 01 de janeiro logo passou a ser dedicado à memória da Mãe de Deus, como atesta o Lecionário de Würzburg (início do século VII).

Vemos aqui a influência das “festas associadas” da tradição bizantina: após a festa de um evento da história da salvação celebram-se os personagens que dele participaram [3]. Até hoje, no Rito Bizantino, a Sinaxe da Mãe de Deus é celebrada no dia 26 de dezembro, no dia seguinte ao Natal.

Confira nossa postagem sobre o ícone da Sinaxe da Santa Mãe de Deus clicando aqui.

Concílio de Éfeso (431)
(Basílica de Notre Dame de Fourvière - Lyon, França)

A festa certamente ganhou impulso após a definição do dogma da Maternidade Divina de Maria pelo Concílio de Éfeso (431), o qual a proclamou como Θεοτόκος (Theotókos) ou “deípara”, isto é, “aquela que deu à luz Deus”:

“Se alguém não confessar que o Emanuel é Deus no sentido verdadeiro e que, portanto, a santa Virgem é deípara (pois gerou segundo a carne o Verbo que é de Deus e veio a ser carne), seja anátema” (Denzinger, n. 252).

Os primeiros testemunhos seguros dessa celebração são do início do século VII, embora provavelmente já era celebrada antes. Nesse período a “igreja estacional” para esse dia - isto é, a igreja na qual o Papa celebrava a Missa - era a Basílica de Santa Maria ad Martyres, o antigo Panteão romano.

Após o pontificado de Gregório IV (†844), porém, a igreja estacional passou a ser a Basílica de Santa Maria in Trastevere, uma vez que o Papa teria mandado construir nesta igreja um oratório em honra do presépio (ad praesepe), como na Basílica de Santa Maria Maior.

No final do século VII, porém, quando o Papa Sérgio I (†701), de origem síria, popularizou diversas celebrações orientais em Roma - Anunciação (25 de março), Apresentação do Senhor (02 de fevereiro), Natividade de Maria (08 de setembro) e Dormição-Assunção (15 de agosto) -, todas marcadas por solenes procissões, a celebração mariana de 01 de janeiro perdeu importância, passando a ser simplesmente a “Oitava do Natal” (In Octava Nativitatis Domini).

3. A celebração da Circuncisão do Senhor

A Festa da Circuncisão do Senhor tem sua origem na Espanha, em meados do século VI, quando começou a organizar-se o Rito Hispano-Mozárabe a partir da cidade de Toledo.

Uma vez que nesse Rito a Festa da Mãe de Deus é celebrada no dia 18 de dezembro, oito dias antes do Natal, para o dia 01 de janeiro, oito dias após o Natal, em consonância com o Evangelho (Lc 2,21), foi instituída a Festa da Circuncisão do Senhor (In Circuncisione Domini).

Santa Mãe de Deus com as virgens previdentes e imprevidentes (Mt 25)
(Fachada da Basílica de Santa Maria in Trastevere, Roma)

Da Espanha a Festa da Circuncisão logo passou à França (Rito Franco-Galicano), sendo mencionada no II Concílio de Tours (567), e posteriormente também à Arquidiocese de Milão, no norte da Itália (que possui um rito próprio, o Rito Ambrosiano, no qual se celebra a Festa da Maternidade Divina de Maria no domingo anterior ao Natal).

Para saber mais, confira nossa postagem sobre a história da Festa da Circuncisão do Senhor.

Em Roma a Festa da Circuncisão chegou mais tarde, entre os séculos XIII e XIV. Não obstante, no Rito Romano o dia 01 de janeiro permaneceu sempre ligado à Mãe de Deus, como demonstra, por exemplo, a coleta (oração do dia) “Deus, qui salútis aetérnae...” , conservada até hoje, de caráter fortemente mariano, a qual remonta ao Sacramentário Gregoriano. Outros textos, por sua vez, eram retomados da Solenidade do Natal.

“Ó Deus, que pela virgindade fecunda de Maria destes à humanidade a salvação eterna, dai-nos contar sempre com a sua intercessão, pois ela nos trouxe o autor da vida. Por nosso Senhor Jesus Cristo, vosso Filho, na unidade do Espírito Santo. Amém” (Missal Romano, p. 159).

4. A festa da Santa Mãe de Deus resgatada por Pio XI

No dia 25 de dezembro de 1931 o Papa Pio XI (†1939) publica a Encíclica Lux Veritatis por ocasião da comemoração do XV centenário do Concílio de Éfeso. Ao concluir a Encíclica, o Papa anuncia o propósito de instituir a festa da Santa Mãe de Deus para toda a Igreja:

“Desejamos que desta comemoração secular não falte lembrança litúrgica, que sirva para afervorar no clero e no povo maior devoção para com a Mãe de Deus. Por isso, mandamos à Sagrada Congregação dos Ritos que seja publicado o Ofício e a Missa da Maternidade Divina, a ser celebrada na Igreja universal” [4].

No ano seguinte, com efeito, a Congregação dos Ritos publicou os textos para a festa da “Maternitatis Beatae Mariae Virginis”, a ser celebrada no dia 11 de outubro [5]. A escolha dessa data não está bem clara: certamente não está relacionada ao Concílio de Éfeso, que teve lugar entre junho e julho de 431.

Pio XI: Papa que resgatou a Festa da Mãe de Deus em 1931

Dentre as contribuições do Papa Pio XI à Liturgia destaca-se também a instituição da Festa de Cristo Rei (1925).

Aparentemente em alguns lugares já se celebrava uma festa em honra da Maternidade Divina de Maria: em Portugal desde o século XVIII no primeiro domingo de maio; e em outros lugares no segundo domingo de outubro, data certamente relacionada à comemoração de Nossa Senhora do Rosário (07 de outubro).

Uma vez que já o Papa São Pio X (†1914) havia realizado reformas litúrgicas buscando recuperar a centralidade do domingo, a Congregação dos Ritos escolheu o dia 11 de outubro, o dia litúrgico livre mais próximo do segundo domingo desse mês.

5. A reforma do Concílio Vaticano II

Vale lembrar que o próprio Concílio Vaticano II, convocado pelo Papa São João XXIII (†1963), teve início no dia 11 de outubro de 1962. Não obstante, a reforma litúrgica buscou recuperar a antiga data de 01 de janeiro para a “Sollemnitas Sanctae Dei Genetricis Mariae”, como recorda Dom Annibale Bugnini (†1982):

“A Liturgia do dia 01 de janeiro sempre foi uma Liturgia compósita. Através dos séculos acumularam-se nesse dia diversos ritos: Maternidade de Maria, oitava de Natal, Circuncisão, nome de Jesus, primeiro dia do ano, jornada pela paz. A expressão litúrgica não podia resultar senão compósita, única em todo o ano. No ‘Consilium’ todos os temas encontravam defensores benévolos. (...) Prevaleceu a festa primitiva da Maternidade de Maria, que remonta às origens da Liturgia romana e aproxima Roma do Oriente” [6].

A escolha não foi isenta de críticas por parte de alguns liturgistas, que defendiam priorizar a celebração do início do ano civil e do Dia Mundial da Paz, instituído pelo Papa São Paulo VI (†1978).

Ícone da Santa Mãe de Deus “Hodigitria

Contudo, o mesmo Pontífice defendeu a escolha do dia 01 de janeiro para a Solenidade de Santa Maria, Mãe de Deus em sua Exortação Apostólica Marialis cultus, promulgada em 1974, recordando também o tema da paz:

“A reatada Solenidade de Santa Maria Mãe de Deus (...), colocada como está, segundo o que aconselhava o uso antigo da Urbe, no dia 01 de janeiro, destina-se a celebrar a parte tida por Maria neste mistério de salvação e a exaltar a dignidade singular que daí advém para a ‘Santa Mãe pela qual recebemos o Autor da vida’; é, além disso, ocasião propícia para renovar a adoração ao recém-nascido ‘Príncipe da Paz’, para ouvir ainda uma vez o grato anúncio angélico (cf. Lc 2,14), para implorar de Deus, tendo como medianeira a ‘Rainha da Paz’, o dom supremo da paz” (Marialis cultus, n. 5).

Quanto à eucologia da Missa, foi conservada a oração do dia, como vimos acima, enquanto as orações sobre as oferendas e após a Comunhão foram “resgatadas” dos antigos Sacramentários (Veronense e Gelasiano) [7]. Particularmente adequado nessa celebração o uso do Prefácio da Virgem Maria I, “De Maternitate Beatae Mariae Virginis”.

A Liturgia da Palavra, por sua vez, busca harmonizar os diversos “temas” desse dia, como indica o Elenco das Leituras da Missa, n. 95: “Na oitava do Natal e Solenidade de Santa Maria, Mãe de Deus, as leituras tratam da Virgem, Mãe de Deus, e da imposição do Santíssimo Nome de Jesus” [8].

O Evangelho (Lc 2,16-21) une o relato da visita dos pastores à Mãe e ao recém-nascido, a qual “guardava todas as coisas em seu coração” (v. 19), ao versículo sobre a circuncisão e à imposição do nome a Jesus no oitavo dia.

Mosaico do Natal do Senhor
(Basílica de Santa Maria in Trastevere, Roma)

A 1ª leitura (Nm 6,22-27), com a célebre “bênção sacerdotal de Aarão”, serve como bênção sobre o novo ano que se inicia, recordação da paz e invocação do nome do Senhor: “Invocarão o meu nome e Eu os abençoarei” (v. 27). O Salmo 66, por sua vez, é tanto uma ação de graças quanto uma súplica pela bênção: “Que Deus nos dê a sua graça e sua bênção” (v. 2).

A 2ª leitura (Gl 4,4-7), por fim, recorda a participação de Maria no mistério da Encarnação e atesta a submissão de Cristo à Lei, a qual se verifica na sua circuncisão: “Deus enviou o seu Filho, nascido de uma mulher, nascido sujeito à Lei” (v. 4).

Quanto à Liturgia das Horas, além da reflexão de Santo Atanásio de Alexandria (†373) lida no Ofício das Leituras e das antífonas (de origem grega), vale destacar os três hinos próprios:
I e II Vésperas: Corde natus ex Paréntis (Quem nos deu todas as coisas);
Ofício das Leituras: Radix Iesse iam flóruit (Raiz judaica floresce);
Laudes: Fit porta Christi pérvia (Eis do Senhor a porta aberta).

Virgem Mãe de Deus, Aquele que o universo não pode conter, se encerrou feito homem em vosso seio” [9].

Ícone da Santa Mãe de Deus “Eleousa

Confira também:
Notas:

[1] Antífona de entrada da Missa da Solenidade da Santa Mãe de Deus. Esta antífona, no original em latim “Salve, Sancta Parens”, foi composta pelo poeta romano Sedúlio (séc. V).

[2] AGOSTINHO, Sermão 198, 2; in: ADAM, Adolf. O Ano Litúrgico: Sua história e seu significado segundo a renovação litúrgica. São Paulo: Loyola, 2019, p. 101.

[3] Para saber mais, cf. BERGER, Rupert. Festa associada. in: Dicionário de Liturgia Pastoral: Obra de consulta sobre todas as questões referentes à Liturgia. São Paulo: Loyola, 2010, pp. 165-166.

[4] cf. SAMPEL, Edson Luiz [org.]. Principais documentos dos Papas sobre Nossa Senhora: do Beato Pio IX a Francisco. São Paulo: Fons Sapientiae, 2017, pp. 75-80.
O texto original da Encíclica (em latim) foi publicado em: Acta Apostolicae Sedis, vol. XXIII (1931), pp. 493-517. Disponível no site da Santa Sé.

[5] cf. Acta Apostolicae Sedis, vol. XXIV (1932), pp. 151-159. Disponível no site da Santa Sé.

[6] BUGNINI, Annibale. A reforma litúrgica: 1948-1975. São Paulo: Paulinas; Paulus; Loyola, 2018, p. 272, nota 5.

[7] cf. MISSAL ROMANO. Tradução portuguesa da 2ª edição típica para o Brasil. São Paulo: Paulus, 1991, pp. 159-160.

[8] ALDAZÁBAL, José. A Mesa da Palavra I: Elenco das Leituras da Missa - Texto e Comentário. São Paulo: Paulinas, 2007, p. 95.

[9] Antífona de entrada da Missa votiva de Santa Maria, Mãe de Deus (para o Tempo do Natal). Trata-se do formulário n. 4 da Coletânea de Missas de Nossa Senhora (MISSAS DE NOSSA SENHORA. Edições CNBB: Brasília, 2016, pp. 47-50).

Referências:

ADAM, Adolf. O Ano Litúrgico: Sua história e seu significado segundo a renovação litúrgica. São Paulo: Loyola, 2019, pp. 101-103.

AUGÉ, Matias. Ano Litúrgico: É o próprio Cristo presente na sua Igreja. São Paulo: Paulinas, 2019, pp. 286-287.293-295.

BERGAMINI, Augusto. Cristo, festa da Igreja: O Ano Litúrgico. São Paulo: Paulinas, 2004, pp. 453-456.

LODI, Enzo. Os Santos do Calendário Romano: Rezar com os Santos na Liturgia. São Paulo: Paulus, 1992, pp. 35-39.

RIGHETTI, Mario. Historia de la Liturgia, v. I: Introducción general; El año litúrgico; El Breviario. Madrid: BAC, 1955, pp. 707-711.

SARTOR, Danilo. Mãe de Deus: Celebração litúrgica. in: DE FIORES, Stefano; MEO, Salvatore [org.]. Dicionário de Mariologia. São Paulo; Paulus, 1995, pp. 790-793.

SCHUSTER, Cardeal Alfredo Ildefonso. Liber Sacramentorum: Note storiche e liturgiche sul Messale Romano; vol. II: L’inaugurazione del Regno Messianico (La Sacra Liturgia dall’Avvento alla Settuagesima). Torino-Roma: Marietti, 1930, pp. 187-189.

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