Homilia
na Solenidade de São Vicente, Padroeiro do Patriarcado de Lisboa
O grão caído na terra, que
continua a dar fruto
“Se o grão de trigo
cair na terra e não morrer, fica só ele; mas, se morrer, dá muito fruto” (Jo 12,24). Ouvimos esta frase a
Jesus, na solenidade de São Vicente, Padroeiro principal do Patriarcado e ícone
ancestral da cidade de Lisboa.
Fazemo-lo no atual contexto pandêmico, com todo o cuidado
requerido, em atenção ao bem de todos. Tendo muito presentes os que neste
momento mais lutam para minorar os seus danos e sufragando a muitos, que
entretanto faleceram.
Com tudo isto, qual o eco daquela frase de Jesus? Que
reflexão sugere e que consequência induz?
Refere o grão de trigo, depois a terra onde se desfaz e
finalmente o fruto, o muito fruto que alcança. Sequência imprescindível e
completa, aliás comprovada em quem a enunciou. Estamos aqui, dois milênios
depois da vida e morte de Jesus - pequeno grão, quase despercebido na
vastíssima terra em que caiu. E o mesmo fato de estarmos aqui, confirma a
verdade da frase que proferiu, correspondendo em absoluto à vida que viveu. Deu
muito fruto, como quer frutificar em cada um de nós. Nada se garantiu de fora,
tudo se realizou por si. Todas as tradições evangélicas, acentuando este ou
aquele aspecto da vida de Jesus, são unânimes neste ponto. O cálice que quis
beber foi o da sua entrega por nós e a sede que gritou na cruz foi a que
havemos de ter por Ele. Partilha total do que trouxe de Deus Pai - corpo,
sangue, alma e divindade - tudo desfeito na terra que somos, para nos refazer
n’Ele e com Ele.
Não desistamos de nos admirar com tal fato. Fato e não
apenas ideia a concretizar talvez. Estamos aqui, ouvindo estas palavras e
refazendo estes gestos, unicamente porque Alguém, já distante no tempo e
afastado no lugar, caiu à terra como um grão de trigo e agora se alarga na
imensa seara que somos.
Reparemos na desproporção: um só grão de trigo e uma seara
depois... A única razão que explica a ultrapassagem de qualquer limite espaço-temporal
encontra-se na totalidade da entrega. Qualitativa, porque assim nos deu tudo o
que recebeu de Deus Pai; e quantitativa, porque morreu por todos, tornando
aquela hora nona em que expirou no tempo inteiro da humanidade de antes e
depois. É este o “muito fruto”, só assim alcançado.
Transportava-O um
Espírito que nos legou também. Espírito que levou tantos homens e mulheres,
século após século e nas mais diversas circunstâncias, a reproduzirem o mesmo
movimento de entrega total, por essa terra além. Em quantos canoniza, a Igreja
reconhece a entrega de Jesus reproduzida, sendo esse o devido critério. Não se
guardaram nem se perderam em si mesmos. Compartilharam o que tinham,
desfizeram-se como grãos de trigo no rincão que lhes coube da vasta terra de
todos. Muitas vezes sem ninguém, ou quase ninguém, dar por isso na altura, como
aconteceu com Jesus. Reconhecidos depois, pelo fruto que tiveram e muito bem
fez a tantos.
É esta a qualidade evangélica das coisas e a comprovação
inegável que alcançam, à luz da Páscoa de Cristo. A vida amplia-se
infinitamente quando, do princípio ao fim do seu percurso natural, se faz
sobrenatural pela totalidade da entrega. Nem precisa de muito tempo, podendo
consumar-se num momento, desde que seja inteiramente dom.
Assim foi com São
Vicente, diácono de Cristo na antiga Saragoça, supliciado em Valência. Não
sabemos muito do que foi antes. Sabemos sobretudo o que foi então, quando
chegou a altura de servir os seus irmãos com o testemunho total da fé que o
transportava. E, precisamente por ser total, mesmo no suplício, alcançou fama e
fruto que ninguém conteve. Nem demorou muito o renome e o louvor do seu
exemplo, nos sermões de Agostinho ou na poesia de Prudêncio, prova certa do
fruto que alcançara.
Cabe lembrar alguns versos
de Prudêncio, célebre autor hispânico do século IV para o V. Referem-se ao
martírio de São Vicente e, antes de tudo, à razão de suportá-lo, mais forte do
que o suplício. Como sempre e ainda aqui, o grão de trigo desfaz-se e germina
pela própria força intrínseca que detém. Íntima, inabalável e inteiramente
livre. Do corpo mortal ao corpo imortal, assim confessado pela boca do mártir:
«Há um outro, um outro interior / que homem algum pode ferir / livre de tudo,
sereno, intacto / isento das funestas dores» (in: Paulo Farmhouse Alberto, Santos
e milagres na Idade Média em Portugal. São Vicente, Lisboa,
Traduvárius, 2012, p. 57).
Impressiona sempre verificar nos mártires a plena liberdade
com que se unem a Cristo e à sua cruz. Aí mesmo, onde nem o tormento físico
tolheu a misericórdia pelos outros, do ladrão arrependido aos próprios que o
matavam: «Perdoa-lhes, Pai, porque não sabem o que fazem» (Lc 23,34). Dizer assim,
naquela dolorosa circunstância, só é possível quando a absoluta liberdade
interior coincide com a inteira caridade em relação a todos, todos mesmo. Assim
em Cristo e, por Cristo, em Vicente.
Porque aí não chegamos, é a razão também de aqui estarmos.
Por intercessão de São Vicente, pedimos a liberdade que ele ganhou de Cristo,
ultrapassando o pecado que nos prende pela grande caridade que nos salva. Já
assim se rezava junto das suas relíquias, apenas um século passado sobre o
martírio. São também versos de Prudêncio, que podemos localizar hoje aqui: «Se
este dia de festa celebramos / devidamente, de palavras e coração / se diante
da proteção gozosa / das tuas relíquias nos prostramos / desce até aqui por um
momento / trazendo-nos o favor de Cristo / para que as nossas almas carregadas
/ sintam o alívio da sua indulgência» (ibid.,
p. 78). É sobretudo assim que o grão semeado dá inteiro fruto.
Quando Lisboa passou a ser portuguesa, não tardou que o
nosso primeiro rei lhe trouxesse as relíquias. A nau que transportava os seus
restos mortais e os corvos que os guardavam tornaram-se emblema da cidade. Mas
foi a sua memória mantida que deu muito fruto nos devotos que acorreram e nas
vidas que se refizeram, corporal e espiritualmente falando. Como pode e deve
acontecer conosco, em torno dos restos materiais tão escassos daquela vida tão
grande que assinalam. Mantém-se a desproporção evangélica: um só grão desfeito
na terra, muito fruto garantido assim.
Fazemo-lo no
tempo difícil que vivemos. Com Vicente, a luta era contra a idolatria que
lhe queriam impor. Conosco, é contra a pandemia que rouba muitas vidas e exige
tanto esforço. A idolatria definhava as almas, como a pandemia o faz hoje aos
corpos. Comum é em muitos - e deve ser em todos - a determinação anímica de
persistir, fiéis, solícitos e prestáveis, no que couber a cada um, por ação ou
resguardo, apoiando como puder doentes e cuidadores, pessoas sós ou deprimidas,
mais novos ou mais velhos. E as duas atitudes se conjugam, porque grandes
atuações requerem fortes motivações - como a de Vicente, diácono e mártir. Não
faltam os exemplos concretos de abnegação e serviço, em todas as frentes do
combate à atual pandemia. É essa mesma entrega abnegada, por conhecida ou
discreta que seja, que tem em si mesma a garantia da vitória. Pequenos grãos e
fruto certo na nossa terra comum.
Diácono porque servidor; e mártir por servir até ao fim. Os
nossos diáconos estão e estarão à altura do seu padroeiro. Lembramo-los também,
com a estima que nos merecem pelo seu indispensável ministério. Sem esquecer
tantas pessoas que, na nossa cidade e diocese, em serviços públicos ou outros,
respondem hoje com tanto esforço e generosidade à crise pandémica que sofremos.
Também neles podemos verificar a presença e a ação do mesmo Espírito que de
Cristo passou a Vicente e, com Vicente, se expande e atua. Como grão que caiu na
terra e continuará a dar muito fruto.
Lisboa, 22 de janeiro
de 2021.
+ Manuel,
Cardeal-Patriarca
Fonte: Patriarcado de Lisboa
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