Dando
início às Catequeses do Papa João Paulo II sobre os salmos e cânticos das Laudes, propomos hoje as duas Catequeses introdutórias, proferidas nos dias 28
de março e 04 de abril de 2001.
1. Os salmos na
Tradição da Igreja
28 de março de 2001
1. Na Carta Apostólica Novo millennio ineunte manifestei o desejo de que a
Igreja se distinga cada vez mais na “arte da oração”, aprendendo-a sempre de
novo dos lábios do Mestre divino (cf.
n. 32). Este empenho deve ser vivido sobretudo na Liturgia, fonte e ápice da
vida eclesial. Nesta linha é importante prestar uma maior atenção pastoral à
promoção da Liturgia das Horas como oração de todo o Povo de Deus
(cf. ibid., 34). De fato, se os sacerdotes e
os religiosos têm um precioso mandamento para celebrá-la, ela é contudo
proposta ardentemente também aos leigos.
Propunha esta finalidade, há
cerca de trinta anos, o meu venerado predecessor Paulo VI, com a Constituição Laudis canticum, na qual
delineava o modelo vigente desta oração, desejando que os salmos e os cânticos,
estrutura básica da Liturgia das Horas,
fossem compreendidos “com renovado amor pelo Povo de Deus”.
É encorajador o fato de
muitos leigos, quer nas paróquias quer nas associações eclesiais, terem
aprendido a valorizá-la. Contudo, ela permanece uma oração que requer uma
adequada formação catequética e bíblica, para poder apreciá-la profundamente.
Com esta finalidade,
iniciamos hoje uma série de catequeses sobre os salmos e sobre os cânticos
propostos na oração matutina das Laudes. Desta forma, desejo encorajar e ajudar
todos a rezar com as mesmas palavras usadas por Jesus e que se encontram há
milênios na oração de Israel e da Igreja.
Primeira página do Livro dos Salmos na Bíblia de Fécamp (séc. XIII) A letra B (dentro da qual está o rei Davi) é a inicial do Sl 1 em latim: "Beatus" - "Bem-aventurado" |
2. Podemos introduzir-nos na
compreensão dos salmos através de vários caminhos. O primeiro consistiria em
apresentar a sua estrutura literária, os seus autores, a sua formação, os
contextos em que surgiram. Depois, seria sugestiva uma leitura que realçasse o
seu caráter poético, que por vezes alcança níveis altíssimos de intuição lírica
e de expressão simbólica. Não menos interessante seria percorrer novamente os salmos
considerando os vários sentimentos do ânimo humano que eles manifestam:
alegria, reconhecimento, ação de graças, amor, ternura, entusiasmo, mas também
sofrimento intenso, recriminação, pedido de ajuda e de justiça, que por vezes
acabam em cólera e imprecações. Nos salmos, o ser humano encontra-se a si
próprio completamente.
A nossa leitura terá
sobretudo por finalidade evidenciar o significado religioso dos salmos, mostrando
como eles, mesmo tendo sido escritos há tantos séculos por crentes
hebreus, podem ser incluídos na oração dos discípulos de Cristo. Por isso,
nos deixaremos ajudar pelos resultados da exegese, mas nos colocaremos juntos
na escola da Tradição, sobretudo escutando os Padres da Igreja.
3. Com efeito, com profunda
penetração espiritual, eles souberam discernir e indicar a grande “chave” de
leitura dos salmos no próprio Cristo, na plenitude do seu mistério. Os Padres
estavam convencidos disto: nos salmos fala-se de Cristo. De fato, Jesus
ressuscitado aplicou a si próprio os salmos quando disse aos
discípulos: “era necessário que se cumprisse tudo quanto a Meu respeito
está escrito em Moisés, nos Profetas e nos Salmos” (Lc 24,44). Os Padres acrescentam que
nos salmos se fala a Cristo ou até que é Cristo quem fala. Dizendo isto, eles
não pensavam apenas na pessoa individual de Jesus, mas no Christus totus, no Cristo total, formado por
Cristo Cabeça e pelos seus membros.
Surge assim, para o cristão,
a possibilidade de ler o Saltério à luz de todo o mistério de Cristo.
Precisamente esta ótica faz emergir também a sua dimensão eclesial, que é
realçada de maneira particular pelo cântico coral dos salmos. Compreende-se
desta forma como os salmos tenham sido assumidos, desde os primeiros séculos,
como oração pelo Povo de Deus. Se, em alguns períodos históricos, se verificou
uma tendência para preferir outras orações, foi grande mérito dos monges manter
alta na Igreja a chama do Saltério. Um deles, São Romualdo de Camaldoli, no
início do segundo milênio cristão, chegou a defender que, como afirma o seu
biógrafo Bruno de Querfurt, são os salmos o único caminho para experimentar uma
oração verdadeiramente profunda: “Una via in psalmis” (Passio
Sanctorum Benedicti et Johannes ac sociorum eorundem: MPH VI, 1983, 427).
4. Com esta afirmação, à
primeira vista exagerada, na realidade ele ancorava-se na melhor tradição dos
primeiros séculos cristãos, quando o Saltério se tinha tornado o livro por
excelência da oração eclesial. Esta foi a opção vencedora em relação às
tendências heréticas que continuamente atacavam a unidade de fé e de comunhão.
A respeito disto, é interessante a maravilhosa leitura que Santo Atanásio
escreveu a Marcelino na primeira metade do século IV, quando a heresia ariana se
alastrava, atentando contra a fé na divindade de Cristo. Perante os hereges que
atraíam a si o povo também com cânticos e orações que eram agradáveis aos seus
sentimentos religiosos, o grande Padre da Igreja dedicou-se com todas as suas
energias a ensinar o Saltério transmitido pela Escritura (cf. PG 27,12ss.) Foi assim que ao “Pai nosso”, a oração do Senhor por
antonomásia, se acrescentou a praxe, que depressa se tornou universal entre os
batizados, da oração dos salmos.
5. Graças também à oração
comunitária dos salmos, a consciência cristã recordou e compreendeu que é
impossível dirigir-se ao Pai que habita nos céus sem uma autêntica comunhão de
vida com os irmãos e as irmãs que habitam na terra. Além disso, inserindo-se
vitalmente na tradição orante dos hebreus, os cristãos aprenderam a rezar
cantando as magnalia Dei, isto é, as grandes maravilhas
realizadas por Deus quer na criação do mundo e da humanidade, quer na história
de Israel e da Igreja. Esta forma de oração tirada das Escrituras não exclui
decerto expressões mais livres, e elas continuarão não só a caracterizar a
oração pessoal, mas também a enriquecer a própria oração litúrgica, por exemplo,
com hinos e cânticos. O livro do Saltério permanece contudo a fonte ideal da
oração cristã, e nele se continuará a inspirar a Igreja no novo milênio.
04
de abril de 2001
1. Antes de iniciar o comentário de cada salmo e cântico de Laudes, completemos hoje a reflexão introdutória que começamos na última catequese. E o fazemos a partir de um aspecto muito querido à tradição espiritual: cantando os salmos, o cristão experimenta uma espécie de sintonia entre o Espírito presente nas Escrituras e o Espírito que nele habita pela graça batismal. Mais do que rezar com palavras próprias, ele faz-se eco dos “gemidos inefáveis” de que fala São Paulo (cf. Rm 8,26), com os quais o Espírito do Senhor impele os cristãos a unirem-se à invocação característica de Jesus: “Abbá, Pai!” (Rm 8,15; Gl 4,6).
Os antigos monges estavam de tal modo seguros desta verdade, que não se preocupavam em cantar os salmos na própria língua materna, bastando-lhes a consciência de ser, de qualquer modo, “órgãos” do Espírito Santo. Estavam convencidos de que a sua fé permitiria aos versículos dos salmos desencadearem uma particular “energia” do Espírito Santo. A mesma convicção se manifesta na característica utilização dos salmos, que foi chamada “oração jaculatória”, da palavra latina “iaculum”, isto é, dardo, para indicar brevíssimas expressões salmódicas que podiam ser “lançadas”, à maneira de flechas de fogo, por exemplo, contra as tentações. João Cassiano, um escritor que viveu entre o IV e o V séculos, recorda que alguns monges tinham descoberto a eficácia extraordinária do brevíssimo incipit do Salmo 69: “Dignai-vos, ó Deus, salvar-me; Senhor, apressai-Vos em socorrer-me”, que desde então se tornou o pórtico de entrada na Liturgia das Horas (cf. Conlationes, 10,10; CPL 512,298ss).
2. Ao lado da presença do Espírito Santo, outra dimensão importante é a da ação sacerdotal que Cristo desenvolve na oração em que associa a si a Igreja, sua Esposa. A esse respeito, referindo-se propriamente à Liturgia das Horas, o Concílio Vaticano II ensina: “Jesus Cristo, Sumo Sacerdote da nova e eterna Aliança, [...] une a si toda a humanidade e associa-a a este cântico divino de louvor. Continua este múnus sacerdotal por intermédio da sua Igreja, que louva o Senhor sem cessar e intercede pela salvação de todo o mundo, não só com a celebração da Eucaristia, mas de vários outros modos, especialmente pela recitação do Ofício Divino” (Sacrosanctum Concilium, n. 83).
A Liturgia das Horas tem também o caráter de oração pública, na qual a Igreja está particularmente envolvida. É esclarecedor, então, descobrir como a Igreja definiu progressivamente este seu empenho específico de oração dividida pelas várias fases do dia. É necessário, por isso, recuar aos primeiros tempos da comunidade apostólica, quando ainda estava em vigor uma estreita ligação entre a oração cristã e a chamada “oração legal”, assim prescrita pela Lei mosaica, que se fazia em determinadas horas do dia no Templo de Jerusalém. Pelo Livro dos Atos sabemos que os Apóstolos “frequentavam diariamente o Templo” (At 2,46), e também que “subiam ao templo para a oração da nona hora” (At 3,1). E, por outra parte, sabemos também que as “orações legais” por excelência eram precisamente as da manhã e da tarde.
3. Pouco a pouco, os discípulos de Jesus descobriram alguns salmos particularmente apropriados a determinados momentos do dia, da semana ou do ano, recolhendo neles um sentido profundo em relação ao mistério cristão. É uma testemunha competente deste processo São Cipriano, que assim escreve na primeira metade do século III: “É necessário, de fato, rezar desde o início do dia para celebrar na oração da manhã a Ressurreição do Senhor. Isto corresponde ao que, uma vez, o Espírito Santo indicava nos Salmos com estas palavras: ‘Atendei à voz do meu clamor, ó meu Rei e meu Deus. A Vós é que rezo; pela manhã, Senhor, ouvis a minha voz, mal nasce o dia exponho o meu pedido e aguardo ansiosamente’ (Sl 5,3-4). [...] Quando, depois, o sol se põe e chega o fim do dia, é necessário pôr-se de novo em oração. De fato, uma vez que Cristo é o verdadeiro sol e o verdadeiro dia, no momento em que o sol e o dia do mundo chegam ao fim, pedindo através da oração que a luz volte para nós, pedimos que Cristo volte a trazer-nos a graça da luz eterna” (De oratione dominica, 35: PL, 39,655).
4. A tradição cristã não se limitou a perpetuar a hebraica, mas renovou algumas coisas que acabaram por caracterizar de modo diverso toda a experiência de oração vivida pelos discípulos de Jesus. De fato, para além de recitarem, de manhã e pela tarde, o Pai nosso, os cristãos escolheram com liberdade os salmos para celebrar com eles a sua oração de cada dia. Ao longo da história, este processo sugeriu a utilização de determinados salmos, particularmente significativos para alguns momentos de fé. Entre estes, tinha o primeiro lugar a oração de vigília, que preparava para o Dia do Senhor, o Domingo, em que se celebrava a Páscoa da Ressurreição.
Uma característica
tipicamente cristã foi, posteriormente, o acrescentar no fim de cada salmo e cântico,
da doxologia trinitária, “Glória ao Pai e ao Filho e ao Espírito Santo”. Assim,
cada salmo e cântico aparecem iluminados pela plenitude de Deus.
5. A oração cristã nasce, alimenta-se e desenvolve-se à volta do acontecimento da fé por excelência, o Mistério Pascal de Cristo. Assim, de manhã e à tarde, ao nascer e ao por do sol, se recordava a Páscoa, a passagem do Senhor da morte à vida. O símbolo de Cristo “luz do mundo” aparece na lâmpada durante a oração de Vésperas, também chamada por isso lucernário. As horas do dia lembram, por sua vez, a narração da Paixão do Senhor, e a hora terça (9h) a descida do Espírito Santo no Pentecostes. A oração da noite, por fim, tem um caráter escatológico, evocando a vigilância recomendada por Jesus na esperança da sua volta (cf. Mc 13,35-37).
Cadenciando deste modo a sua oração, os cristãos responderam ao mandamento do Senhor de “orar sem cessar” (cf. Lc 18,1; 21,36; 1Ts 5,17; Ef 6,18), mas sem esquecer que toda a vida deve, de algum modo, tornar-se oração. Orígenes escreve a este respeito: “Reza sem cessar aquele que une a oração às obras e as obras à oração” (Sobre a oração, XII, 2; PG 11,452C).
Este horizonte, no seu conjunto, constitui o ambiente natural da recitação dos salmos. Se eles são assim sentidos e vividos, a doxologia trinitária que coroa cada salmo torna-se, para cada um dos que acreditam em Cristo, um contínuo mergulhar, sobre as ondas do Espírito e em comunhão com todo o Povo de Deus, no oceano de vida e de paz em que está imerso com o Batismo, ou seja, no mistério do Pai e do Filho e do Espírito Santo.
Rei Davi, o grande "patrono" dos salmos (Gerard van Honthorst, séc. XVII) |
Fonte: Santa Sé (28 de março e 04 de abril de 2001)
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