No dia 12 de janeiro de 2021 foi publicada a Carta
Apostólica sob a forma de Motu proprio
“Spiritus Domini” (O Espírito do Senhor), com a qual o Papa Francisco estende os
ministérios instituídos de leitor e acólito, até então reservados aos homens,
também às mulheres.
Segue o documento na íntegra e a Carta do Papa Francisco que
o acompanha:
Carta Apostólica sob a forma de Motu
Proprio “Spiritus Domini”
Do Sumo Pontífice
Francisco
Sobre a modificação do
cân. 230 § 1 do Código de Direito Canônico acerca do acesso das pessoas do sexo
feminino aos Ministérios Instituídos do Leitorado e do Acolitado
O Espírito do Senhor Jesus, fonte perene da vida e missão da
Igreja, distribui aos membros do Povo de Deus os dons que permitem a cada um,
de modo diverso, contribuir para a edificação da Igreja e para o anúncio do
Evangelho. Estes carismas, chamados ministérios, uma vez que são publicamente
reconhecidos e instituídos pela Igreja, são postos à disposição da comunidade e
da sua missão de forma estável.
Em certos casos, esta contribuição ministerial tem a sua
origem num sacramento específico, a Ordem sagrada. Outras tarefas, ao longo da
história, foram instituídas na Igreja e confiadas mediante um rito litúrgico
não sacramental a fiéis individuais, em virtude de uma peculiar forma de
exercício do sacerdócio batismal, e em benefício do ministério específico de bispos,
presbíteros e diáconos.
Seguindo uma tradição venerável, a recepção dos “ministérios
laicais”, que São Paulo VI regulamentou no Motu
Proprio Ministeria quaedam (17 de agosto de 1972), precedia em forma de
preparação a recepção do Sacramento da Ordem, embora tais ministérios fossem
conferidos a outros fiéis idôneos de sexo masculino.
Algumas Assembleias do Sínodo dos Bispos realçaram a
necessidade de aprofundar doutrinalmente este tema, de modo a responder à
natureza dos mencionados carismas e às exigências dos tempos, oferecendo um
apoio oportuno ao papel de evangelização que cabe à comunidade eclesial.
Aceitando estas recomendações, nestes últimos anos
alcançou-se um desenvolvimento doutrinal que evidenciou como determinados
ministérios instituídos pela Igreja têm como fundamento a condição comum de
batizado e o sacerdócio real recebido no Sacramento do Batismo; eles são
essencialmente distintos do ministério ordenado, recebido com o Sacramento da
Ordem. Com efeito, também uma prática consolidada na Igreja latina confirmou
que tais ministérios laicais, baseando-se no Sacramento do Batismo, podem ser
confiados a todos os fiéis que forem idôneos, de sexo masculino ou feminino, de
acordo com quanto já é implicitamente previsto pelo cânon 230 § 2.
Por conseguinte, depois de ter ouvido o parecer dos
Dicastérios competentes, decidi prover à modificação do cânon 230 § 1 do Código
de Direito Canônico. Portanto, disponho que no futuro o cânon 230 § 1 do Código
de Direito Canônico seja assim redigido:
«Os leigos que tiverem a idade e as aptidões determinadas
com decreto pela Conferência Episcopal, podem ser assumidos estavelmente,
mediante o rito litúrgico estabelecido, nos ministérios de leitores e de
acólitos; no entanto, tal concessão não lhes atribui o direito ao sustento ou à
remuneração por parte da Igreja».
Entrega do livro da Sagrada Escritura a um leitor (O acólito recebe a patena com o pão ou a galheta com o vinho) |
Disponho do mesmo modo a modificação das outras disposições,
corroboradas pela lei, que se referem a este cânon.
Quanto deliberado por esta Carta Apostólica sob forma de Motu Proprio, ordeno que tenha vigor
firme e estável, não obstante qualquer disposição contrária, mesmo que seja
digna de menção especial, e que seja promulgado através da publicação em L’Osservatore Romano, entrando em vigor no mesmo dia, e em seguida
publicado no comentário oficial das Acta
Apostolicae Sedis.
Dado em Roma, junto de
São Pedro, no dia 10 de janeiro do ano de 2021, Festa do Batismo do Senhor,
oitavo do meu pontificado.
FRANCISCO
Carta do Santo Padre ao Prefeito da Congregação para a Doutrina
da Fé
Sobre o acesso das mulheres aos Ministérios do Leitorado e do Acolitado
Ao Venerável Irmão Cardeal Luis F. Ladaria,
Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé
O Espírito
Santo, a relação de amor entre o Pai e o Filho, edifica e alimenta a comunhão
de todo o Povo de Deus, suscitando nele muitos dons e carismas diferentes (cf. Francisco, Exortação Apostólica Evangelii gaudium, n. 117). Através dos sacramentos do Batismo,
Crisma e Eucaristia, os membros do Corpo de Cristo recebem do Espírito do
Ressuscitado, em diferentes graus e com diferentes expressões, aqueles dons que
lhes permitem dar o contributo necessário para a edificação da Igreja e para o
anúncio do Evangelho a todas as criaturas.
O Apóstolo
Paulo distingue a este respeito entre dons de graça-carismas (“charismata”) e serviços (“diakoniai” - “ministeria” [cf. Rm 12,4ss e 1Cor 12,12ss]). De acordo
com a tradição da Igreja, são chamados ministérios as diferentes formas que os
carismas assumem quando são reconhecidos publicamente e são postos à disposição
da comunidade e à sua missão de forma estável.
Em alguns
casos o ministério tem a sua origem num sacramento específico, a Ordem Sagrada:
estes são os ministérios “ordenados” do Bispo, presbítero e diácono. Em outros
casos, o ministério é confiado, por ato litúrgico do Bispo, a uma pessoa que
tenha recebido o Batismo e a Confirmação e em quem são reconhecidos carismas
específicos, após um adequado caminho de preparação: falamos então de
ministérios “instituídos”. Muitos outros serviços ou cargos eclesiais são
exercidos de fato por muitos membros da comunidade, para o bem da Igreja,
muitas vezes por um longo período e com grande eficácia, sem que seja previsto
um rito particular para conferir o cargo.
Ao longo da
história, com a mudança das situações eclesiais, sociais e culturais, o
exercício dos ministérios na Igreja Católica assumiu diferentes formas,
enquanto a distinção, não só de grau, entre ministérios “instituídos” (ou
“laicais”) e ministérios “ordenados”
permaneceu intacta. As primeiras são expressões particulares da condição
sacerdotal e real própria de cada batizado (cf.
1Pd 2,9); as últimas são próprias de
alguns dos membros do Povo de Deus que, como Bispos e sacerdotes, «recebem a
missão e a faculdade de agir na pessoa de Cristo Cabeça» ou, como diáconos, «estão
habilitados a servir o Povo de Deus na diaconia da Liturgia, da Palavra e da
caridade» (Bento XVI, Carta Apostólica sob forma de Motu Proprio Omnium in mentem, 26 de outubro de 2009). Expressões
como o sacerdócio batismal e o sacerdócio ordenado (ou ministerial) são também
utilizadas para indicar esta distinção. É bom em qualquer caso reiterar, com a Constituição
Dogmática Lumen Gentium do Concílio
Vaticano II, que eles «estão ordenados uns aos outros; cada um, à sua maneira,
participa no único sacerdócio de Cristo» (LG, n. 10). A vida eclesial nutre-se
desta referência recíproca e é alimentada pela tensão frutuosa destes dois
polos do sacerdócio, ministerial e batismal, mesmo se na sua distinção estão
enraizados no único sacerdócio de Cristo.
A unção batismal-crismal: participação no sacerdócio de Cristo |
Em consonância
com o Concílio Vaticano II, o Sumo Pontífice São Paulo VI quis rever a prática
dos ministérios não ordenados na Igreja Latina - até então chamados “ordens
menores” - adaptando-a às exigências dos tempos. Esta adaptação, contudo, não
deve ser interpretada como uma superação da doutrina anterior, mas como uma
implementação do dinamismo que caracteriza a natureza da Igreja, sempre chamada
com a ajuda do Espírito da Verdade a responder aos desafios de cada época, em
obediência à Revelação. A Carta Apostólica sob a forma de Motu Proprio Ministeria quaedam (15 de agosto de 1972) configura
dois ofícios (tarefas), o do Leitor e o do Acólito, o primeiro estritamente
ligado ao ministério da Palavra, o segundo ao ministério do Altar, sem excluir
que outros “ofícios” possam ser instituídos pela Santa Sé a pedido das
Conferências Episcopais.
Além disso, a
variação nas formas de exercício dos ministérios não ordenados não é a simples
consequência, a nível sociológico, do desejo de adaptação às sensibilidades ou
culturas dos tempos e dos lugares, mas é determinada pela necessidade de
permitir a cada Igreja local/particular, em comunhão com todas as outras e
tendo como centro de unidade a Igreja que está em Roma, viver a ação litúrgica,
o serviço aos pobres e o anúncio do Evangelho em fidelidade ao mandato do
Senhor Jesus Cristo. É tarefa dos Pastores da Igreja reconhecer os dons de cada
batizado, orientá-los também para ministérios específicos, promovê-los e
coordená-los, a fim de que possam contribuir para o bem da comunidade e para a
missão confiada a todos os discípulos.
O compromisso
dos fiéis leigos, que «são simplesmente a imensa maioria do povo de Deus»
(Francisco, Exortação Apostólica Evangelii
gaudium, n. 102), certamente não pode e não deve esgotar-se no exercício
dos ministérios não ordenados (cf. ibid.), mas uma melhor configuração destes
ministérios e uma referência mais precisa à responsabilidade que nasce, para
cada cristão, do Batismo e da Confirmação, pode ajudar a Igreja a redescobrir o
sentido de comunhão que a caracteriza e a iniciar um renovado compromisso na
catequese e na celebração da fé (cf. ibid.).
E é precisamente nesta redescoberta que a sinergia frutuosa resultante da
ordenação mútua do sacerdócio ordenado e do sacerdócio batismal pode encontrar
uma melhor tradução.Esta reciprocidade, do serviço ao sacramento do altar, é
chamada a refluir, na distinção das tarefas, para aquele serviço de «fazer de
Cristo o coração do mundo», que é a missão particular de toda a Igreja. É
precisamente este, embora distinto, serviço ao mundo que alarga os horizontes
da missão da Igreja, impedindo-a de ser encerrada em lógicas estéreis
destinadas sobretudo a reivindicar espaços de poder, e ajudando-a a
experimentar-se como uma comunidade espiritual que «caminha juntamente com toda
a humanidade, participa da mesma sorte terrena do mundo» (Gaudium et Spes, n. 40). É nesta dinâmica que podemos
verdadeiramente compreender o significado da “Igreja em saída”.
No horizonte
de renovação traçado pelo Concílio Vaticano II, existe hoje um crescente
sentido de urgência em redescobrir a corresponsabilidade de todos os batizados
na Igreja, e especialmente a missão dos leigos. A Assembleia Especial do Sínodo
dos Bispos para a Região Pan-Amazônica (06-27 de outubro de 2019), no V
capítulo do Documento Final assinalou a necessidade de pensar em “novos
caminhos para a ministerialidade eclesial”. Não só para a Igreja Amazônica, mas
para toda a Igreja, na variedade de situações, «é urgente promover e conferir
ministérios a homens e mulheres... É a Igreja dos batizados que devemos
consolidar promovendo a ministerialidade e, sobretudo, uma consciência da
dignidade batismal» (Documento Final, n. 95).
A este
respeito, sabe-se que o Motu Proprio
Ministeria quaedam reserva a instituição do Ministério do Leitor e do
Acólito apenas aos homens, e, por conseguinte, assim estabelece o cânon 230 § 1
do Código de Direito Canônico. Contudo, em tempos recentes e em muitos
contextos eclesiais, tem sido salientado que a libertação de tal reserva
poderia contribuir para uma maior manifestação da comum dignidade batismal dos
membros do Povo de Deus. Já por ocasião da XII Assembleia Geral Ordinária do
Sínodo dos Bispos sobre “A Palavra de Deus na Vida e na Missão da Igreja” (05-26
de outubro de 2008), os Padres sinodais expressaram a esperança «de que o
ministério do Leitor seja aberto também às mulheres» (cf. 17); e na Exortação Apostólica pós-sinodal Verbum Domini (30 de setembro de 2010), Bento XVI especificou que o
exercício do múnus do Leitor na celebração litúrgica, e de forma particular o
ministério do Leitor enquanto tal, no rito latino é um ministério laical (cf. n. 58).
Um leitor instituído exerce seu ministério |
Durante
séculos, a “venerável tradição da Igreja” considerou as chamadas “ordens
menores” - incluindo a do Leitor e a do Acólito - como etapas de um percurso
que deveria conduzir às “ordens maiores” (Subdiaconado, Diaconado,
Presbiterado). Uma vez que o Sacramento das Ordens estava reservado apenas aos
homens, isto também se aplicava às ordens menores.
Uma distinção
mais clara entre as atribuições dos que hoje são chamados “ministérios não
ordenados (ou laicais)” e “ministérios ordenados” torna possível dissolver a
reserva dos primeiros apenas aos homens. Se em relação aos ministérios
ordenados a Igreja «não tem de modo algum a faculdade de conferir a ordenação
sacerdotal às mulheres» (cf. S. João
Paulo II, Carta Apostólica Ordinatio
sacerdotalis, 22 de maio de 1994), para ministérios não ordenados é
possível, e hoje parece oportuno, superar esta reserva. Esta reserva fazia
sentido num contexto particular, mas pode ser reconsiderada em novos contextos,
tendo sempre como critério a fidelidade ao mandato de Cristo e o desejo de
viver e proclamar o Evangelho transmitido pelos Apóstolos e confiado à Igreja
para que possa ser escutado de forma religiosa, guardado de forma santa e
fielmente anunciado.
Não sem razão,
São Paulo VI refere-se a uma tradição venerabilis, não a uma tradição veneranda, no sentido
estrito (ou seja, uma tradição que “deve” ser observada): pode ser reconhecida
como válida, e durante muito tempo o foi; não é, no entanto, vinculativa, uma
vez que a reserva apenas aos homens não pertence à natureza própria dos
ministérios do Leitor e do Acólito. Oferecer aos leigos de ambos os sexos a
possibilidade de acesso aos ministérios de Acólito e de Leitor, em virtude da
sua participação no sacerdócio batismal, aumentará o reconhecimento, também
através de um ato litúrgico (instituição), da preciosa contribuição que durante
muito tempo muitos leigos, incluindo mulheres, oferecem à vida e missão da
Igreja.
Por estas
razões, considerei oportuno estabelecer que possam ser instituídos como
Leitores ou Acólitos não só homens mas também mulheres, nos quais e nas quais,
através do discernimento dos pastores e após adequada preparação, a Igreja
reconhece «a firme vontade de servir fielmente a Deus e ao povo cristão», como está
escrito no Motu Proprio Ministeria
quaedam, em virtude do sacramento do Batismo e da Confirmação.
A decisão de
conferir estes ofícios, que implicam estabilidade, reconhecimento público e um
mandato do Bispo, também às mulheres, torna mais eficaz na Igreja a
participação de todos na obra de evangelização. «Isto também permite que as
mulheres tenham uma incidência real e efetiva na organização, nas decisões mais
importantes e na liderança das comunidades, mas sem deixar de fazê-lo com o
estilo próprio da sua marca feminina» (Francisco, Exortação Apostólica Querida Amazônia, n. 103). O “sacerdócio
batismal” e o “serviço à comunidade” representam assim os dois pilares sobre os
quais se baseia a instituição dos ministérios.
Desta forma,
além de responder ao que é pedido para a missão no tempo presente e de acolher
o testemunho dado por tantas mulheres que cuidaram e continuam a cuidar do
serviço da Palavra e do Altar, se tornará mais evidente - também para aqueles
que se orientam para o ministério ordenado - que os ministérios do Leitor e do
Acólito estão enraizados no sacramento do Batismo e da Confirmação. Deste modo,
no caminho que conduz à ordenação diaconal e sacerdotal, aqueles que são
instituídos Leitores e Acólitos compreenderão melhor que participam num
ministério partilhado com outros batizados, homens e mulheres. Deste modo, o
sacerdócio próprio de cada fiel (commune
sacerdotium) e o sacerdócio dos ministros ordenados (sacerdotium ministeriale seu hierarquicum) serão ordenados ainda
mais claramente uns para os outros (cf.
LG, n. 10), para a edificação da Igreja e para o testemunho do Evangelho.
Será tarefa
das Conferências Episcopais estabelecer critérios adequados para o
discernimento e preparação dos candidatos e das candidatas para os ministérios
do Leitor ou do Acólito, ou outros ministérios que considerarem instituídos, de
acordo com o que já está disposto no Motu
Proprio Ministeria quaedam, com a aprovação prévia da Santa Sé e de acordo
com as necessidades de evangelização no seu território.
A Congregação
para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos providenciará a
implementação da reforma acima referida, alterando a Editio typica do Pontificale
Romanum ou “De Institutione Lectorum
et Acolythorum” .
Ao renovar-lhe
a certeza das minhas orações, concedo cordialmente a Bênção Apostólica a Vossa
Eminência, incluindo de bom grado todos os Membros e Colaboradores da
Congregação para a Doutrina da Fé.
FRANCISCO
A Palavra e a Eucaristia: As duas realidades às quais se ordenam os Ministérios |
Fonte: Santa Sé
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