Neste dia 30 de setembro de 2019, Memória litúrgica de São Jerônimo, o Papa Francisco, através do Motu Proprio Aperuit illis, institui o Domingo da Palavra de Deus, a ser celebrado sempre no III Domingo do Tempo Comum.
Confira o documento na íntegra:
CARTA
APOSTÓLICA SOB FORMA DE MOTU PROPRIO
APERUIT
ILLIS
DO
SANTO PADRE FRANCISCO
PELA
QUAL SE INSTITUI O DOMINGO DA PALAVRA DE DEUS
1. «ABRIU-LHES o entendimento para
compreenderem as Escrituras» (Lc 24,45). Trata-se de um dos últimos
gestos realizados pelo Senhor ressuscitado, antes da sua Ascensão.
Encontrando-se os discípulos reunidos, Jesus aparece-lhes, parte o pão com eles
e abre-lhes o entendimento à compreensão das sagradas Escrituras. Revela àqueles
homens, temerosos e desiludidos, o sentido do mistério pascal, ou seja, que
Ele, segundo os desígnios eternos do Pai, devia sofrer a paixão e ressuscitar
dos mortos para oferecer a conversão e o perdão dos pecados (cf. Lc 24,26.46-47);
e promete o Espírito Santo que lhes dará a força para serem testemunhas deste
mistério de salvação (cf. Lc 24,49).
A relação entre o Ressuscitado, a
comunidade dos crentes e a Sagrada Escritura é extremamente vital para a nossa
identidade. Sem o Senhor que nos introduz na Sagrada Escritura, é impossível
compreendê-la em profundidade; mas é verdade também o contrário, ou seja, que,
sem a Sagrada Escritura, permanecem indecifráveis os acontecimentos da missão
de Jesus e da sua Igreja no mundo. Como justamente escreve S. Jerónimo, «a
ignorância das Escrituras é ignorância de Cristo» (Commentarii in
Isaiam, Prologus: PL 24, 17).
2. No termo do Jubileu
Extraordinário da Misericórdia, pedi que se pensasse num
«domingo dedicado inteiramente à Palavra de Deus, para compreender a riqueza
inesgotável que provém daquele diálogo constante de Deus com o seu povo» (Carta
Ap. Misericordia et misera, 7). A dedicação dum
domingo do Ano Litúrgico particularmente à Palavra de Deus permite, antes de
mais nada, fazer a Igreja reviver o gesto do Ressuscitado que abre, também para
nós, o tesouro da sua Palavra, para podermos ser no mundo arautos desta riqueza
inexaurível. A propósito, voltam à mente os ensinamentos de Santo Efrém: «Quem
poderá compreender, Senhor, toda a riqueza duma só das tuas palavras? Como o
sedento que bebe da fonte, muito mais é o que perdemos do que o que tomamos. A
tua palavra apresenta muitos aspetos diversos, como diversas são as perspetivas
daqueles que a estudam. O Senhor pintou a sua palavra com muitas belezas, para
que aqueles que a perscrutam possam contemplar aquilo que preferirem. Escondeu
na sua palavra todos os tesouros, para que cada um de nós se enriqueça em
qualquer dos pontos que medita» (Comentários sobre o Diatessaron, 1,
18).
Assim, com esta Carta, pretendo dar
resposta a muitos pedidos que me chegaram da parte do povo de Deus no sentido
de se poder celebrar o Domingo da Palavra de Deus em toda a
Igreja e com unidade de intenções. Já se tornou uma prática comum viver certos
momentos em que a comunidade cristã se concentra sobre o grande valor que a
Palavra de Deus ocupa na sua vida diária. Nas diversas Igrejas locais, há uma
riqueza de iniciativas que torna a Sagrada Escritura cada vez mais acessível
aos crentes para os fazerem sentir-se agradecidos por tão grande dom,
comprometidos a vivê-lo no dia a dia e responsáveis por testemunhá-lo com
coerência.
O Concílio Ecumênico Vaticano II deu um
grande impulso à redescoberta da Palavra de Deus, com a Constituição Dogmática Dei Verbum. Das suas páginas que merecem ser
sempre meditadas e vividas, emergem de forma clara a natureza da Sagrada
Escritura, a sua transmissão de geração em geração (cap. II), a sua inspiração
divina (cap. III) que abraça o Antigo e o Novo Testamento (caps. IV e V) e a
sua importância para a vida da Igreja (cap. VI). Para incrementar esta
doutrina, Bento XVI convocou em 2008 uma Assembleia do Sínodo dos Bispos sobre o
tema «A Palavra de Deus na vida e na missão da Igreja» e, depois dela, publicou
a Exortação Apostólica Verbum Domini, que constitui um ensinamento
imprescindível para as nossas comunidades [1]. Neste
Documento, aprofunda-se de modo particular o caráter performativo da Palavra de
Deus, sobretudo quando, na ação litúrgica, emerge o seu caráter propriamente
sacramental [2].
Por isso, é bom que não venha jamais a
faltar na vida do nosso povo esta relação decisiva com a Palavra viva, que o
Senhor nunca Se cansa de dirigir à sua Esposa, para que esta possa crescer no
amor e no testemunho da fé.
3. Portanto estabeleço que o III
Domingo do Tempo Comum seja dedicado à celebração, reflexão e divulgação da
Palavra de Deus. Este Domingo da Palavra de Deus colocar-se-á,
assim, num momento propício daquele período do ano em que somos convidados a reforçar
os laços com os judeus e a rezar pela unidade dos cristãos. Não se trata de
mera coincidência temporal: a celebração do Domingo da Palavra de Deus expressa
uma valência ecumênica, porque a Sagrada Escritura indica, a quantos se colocam
à sua escuta, o caminho a seguir para se chegar a uma unidade autêntica e
sólida.
As comunidades encontrarão a forma de
viver este Domingo como um dia solene. Entretanto será
importante que, na Celebração Eucarística, se possa entronizar o texto sagrado,
de modo a tornar evidente aos olhos da assembleia o valor normativo que possui
a Palavra de Deus. Neste Domingo, em particular, será útil colocar em evidência
a sua proclamação e adaptar a homilia para se pôr em destaque o serviço que se
presta à Palavra do Senhor. Neste Domingo, os Bispos poderão celebrar o rito do
Leitorado ou confiar um ministério semelhante, a fim de chamar a atenção para a
importância da proclamação da Palavra de Deus na Liturgia. De facto, é
fundamental que se faça todo o esforço possível no sentido de preparar alguns
fiéis para serem verdadeiros anunciadores da Palavra com uma preparação
adequada, tal como já acontece habitualmente com os acólitos ou os ministros
extraordinários da comunhão. Da mesma maneira, os párocos poderão encontrar
formas de entregar a Bíblia, ou um dos seus livros, a toda a assembleia, de
modo a fazer emergir a importância de continuar na vida diária a leitura, o
aprofundamento e a oração com a Sagrada Escritura, com particular referência
à lectio divina.
4. O regresso do povo de Israel à
pátria, depois do exílio de Babilônia, foi assinalado de modo significativo
pela leitura do livro da Lei. A Bíblia dá-nos uma comovente descrição daquele
momento, no livro de Neemias. O povo está reunido em Jerusalém, na praça da
Porta das Águas, a escutar a Lei. Aquele povo dispersara-se com a deportação,
mas agora encontra-se reunido à volta da Sagrada Escritura «como um só
homem» (Ne 8, 1). Durante a leitura do Livro sagrado, o povo
«escutava com atenção» (Ne 8, 3), ciente de encontrar naquela
palavra o sentido para os acontecimentos vividos. Em reação à proclamação
daquelas palavras, brotou a comoção e o pranto. Os levitas «liam, clara e
distintamente, o livro da Lei de Deus e explicavam o seu sentido, de modo que
se pudesse compreender a leitura. O governador Neemias, Esdras, sacerdote e
escriba, e os levitas que instruíam o povo disseram a toda a multidão: “Este é
um dia consagrado ao Senhor, vosso Deus; não vos entristeçais nem choreis”.
Pois todo o povo chorava ao ouvir as palavras da Lei. (…) “Não vos
entristeçais, porque a alegria do Senhor é a vossa força”» (Ne 8,
8-9.10).
Estas palavras encerram uma grande
lição. A Bíblia não pode ser patrimônio só de alguns e, menos ainda, uma
coletânea de livros para poucos privilegiados. Pertence, antes de mais nada, ao
povo convocado para a escutar e se reconhecer nesta Palavra. Muitas vezes,
surgem tendências que procuram monopolizar o texto sagrado, desterrando-o para
alguns círculos ou grupos escolhidos. Não pode ser assim. A Bíblia é o livro do
povo do Senhor que, escutando-a, passa da dispersão e divisão à unidade. A
Palavra de Deus une os crentes e faz deles um só povo.
5. Nesta unidade gerada pela escuta,
primariamente os Pastores têm a grande responsabilidade de explicar e fazer
compreender a todos a Sagrada Escritura. Uma vez que é o livro do povo, todos
os que têm a vocação de ser ministros da Palavra devem sentir fortemente a
exigência de a tornar acessível à sua comunidade.
De modo particular, a homilia
desempenha uma função totalmente peculiar, porque possui «um caráter quase
sacramental» (Francisco, Exort. Ap. Evangelii gaudium, 142). Introduzir
profundamente na Palavra de Deus, com uma linguagem simples e adaptada a quem
escuta, requer do sacerdote que faça descobrir também «a beleza das imagens que
o Senhor utilizava para incentivar a prática do bem» (ibid., 142). Trata-se duma oportunidade
pastoral a não perder!
Com efeito, para muitos dos nossos
fiéis, esta é a única ocasião que têm para captar a beleza da Palavra de Deus e
a ver referida à sua vida diária. Por isso, é preciso dedicar tempo conveniente
à preparação da homilia. Não se pode improvisar o comentário às leituras
sagradas. Sobretudo a nós, pregadores, pede-se o esforço de não nos alongarmos
desmesuradamente com homilias enfatuadas ou sobre assuntos não atinentes. Se
nos detivermos a meditar e rezar sobre o texto sagrado, então seremos capazes
de falar com o coração para chegar ao coração das pessoas que escutam, de modo
a expressar o essencial que é recebido e produz fruto. Nunca nos cansemos de
dedicar tempo e oração à Sagrada Escritura, para que seja acolhida, «não como
palavra de homens, mas como ela é realmente, Palavra de Deus» (1Ts 2,
13).
É bom também que os catequistas,
atendendo ao ministério que desempenham de ajudar a crescer na fé, sintam a
urgência de se renovar através da familiaridade e estudo das sagradas
Escrituras, que lhes consintam promover um verdadeiro diálogo entre aqueles que
os escutam e a Palavra de Deus.
6. Antes de ir ter com os discípulos,
que estavam fechados em casa, e de lhes abrir a mente ao entendimento da
Sagrada Escritura (cf. Lc 24,44-45), o Ressuscitado aparece a
dois deles no caminho que vai de Jerusalém a Emaús (cf. Lc 24,13-35).
Na sua narração, o evangelista Lucas faz notar que se verificou no próprio dia
da Ressurreição, ou seja, no domingo. Aqueles dois discípulos conversavam sobre
os recentes acontecimentos da paixão e morte de Jesus. O seu caminho é marcado
pela tristeza e a desilusão, devido ao trágico fim de Jesus. Esperaram n’Ele
como Messias libertador, e agora embatem no escândalo do Crucificado. Discretamente,
o Ressuscitado em pessoa aproxima-Se e caminha com os discípulos, mas eles não
O reconhecem (cf. Lc 24,16). Ao longo do caminho, o Senhor
interpela-os, dando-Se conta de que não compreenderam o sentido da sua paixão e
morte; chama-lhes «homens sem inteligência e lentos de espírito» (Lc 24,25)
e, «começando por Moisés e seguindo por todos os Profetas, explicou-lhes, em
todas as Escrituras, tudo o que Lhe dizia respeito» (Lc 24,27).
Cristo é o primeiro exegeta! Não só as Escrituras antigas tinham predito aquilo
que Jesus havia de realizar, mas Ele próprio quis ser fiel àquela Palavra para
tornar evidente a única história da salvação, que n’Ele encontra a sua
realização.
7. Por isso a Bíblia, enquanto
Escritura Sagrada, fala de Cristo e anuncia-O como Aquele que deve passar pelo
sofrimento para entrar na glória (cf. Lc 24,26). E d’Ele falam
não só uma parte, mas todas as Escrituras. Sem estas, são indecifráveis a sua
morte e ressurreição. Por isso, uma das mais antigas confissões de fé sublinha que
Cristo «morreu pelos nossos pecados, segundo as Escrituras; foi sepultado e
ressuscitou ao terceiro dia, segundo as Escrituras, e apareceu a Cefas» (1Cor 15,3-5).
Uma vez que as Escrituras falam de Cristo, consentem acreditar que a sua morte
e ressurreição não pertencem à mitologia, mas à história, e encontram-se
no centro da fé dos seus discípulos.
É profundo o vínculo entre a Sagrada
Escritura e a fé dos crentes. Sabendo que a fé vem da escuta, e a escuta
centra-se na Palavra de Cristo (cf. Rm 10,17), daí se vê a
urgência e a importância que os crentes devem dar à escuta da Palavra do
Senhor, tanto na ação litúrgica, como na oração e reflexão pessoais.
8. A «viagem» do Ressuscitado com os
discípulos de Emaús conclui com a ceia. O misterioso Viandante acede ao pedido
insistente que os dois Lhe dirigem: «Fica conosco, pois a noite vai caindo e o
dia já está no ocaso» (Lc 24,29). Sentam-se à mesa; Jesus toma o
pão, pronuncia a bênção, parte-o e dá-o a eles. Naquele momento, abrem-se-lhes
os olhos e reconhecem-No (cf. Lc 24,31).
A partir desta cena, compreendemos como
seja indivisível a relação entre a Sagrada Escritura e a Eucaristia. O Concílio
Vaticano II ensina: «A Igreja venerou sempre as divinas Escrituras como venera
o próprio Corpo do Senhor, não deixando jamais, sobretudo na sagrada Liturgia,
de tomar e distribuir aos fiéis o pão da vida, quer da mesa da Palavra de Deus
quer da do Corpo de Cristo» (Dei Verbum, 21).
A frequência assídua da Sagrada
Escritura e a celebração da Eucaristia tornam possível o reconhecimento entre
pessoas que são parte umas das outras. Como cristãos, somos um só povo que
caminha na história, fortalecido pela presença no meio de nós do Senhor que nos
fala e alimenta. O dia dedicado à Bíblia pretende ser, não «uma vez no ano»,
mas uma vez por todo o ano, porque temos urgente necessidade de nos tornar
familiares e íntimos da Sagrada Escritura e do Ressuscitado, que não cessa de
partir a Palavra e o Pão na comunidade dos crentes. Para tal, precisamos de
entrar em confidência assídua com a Sagrada Escritura; caso contrário, o
coração fica frio e os olhos permanecem fechados, atingidos, como somos, por
inumeráveis formas de cegueira.
Sagrada Escritura e Sacramentos são
inseparáveis entre si. Quando os Sacramentos são introduzidos e iluminados pela
Palavra, manifestam-se mais claramente como a meta dum caminho onde o próprio
Cristo abre a mente e o coração ao reconhecimento da sua ação salvífica. Neste
contexto, é preciso não esquecer um ensinamento que vem do livro do Apocalipse;
lá se ensina que o Senhor está à porta e bate. Se uma pessoa ouvir a sua voz e
Lhe abrir a porta, Ele entra para cear junto com ela (cf. 3,20). Cristo Jesus
bate à nossa porta através da Sagrada Escritura; se ouvirmos e abrirmos a porta
da mente e do coração, então Ele entra na nossa vida e permanece conosco.
9. Na II Carta a Timóteo, que de certa
forma constitui o testamento espiritual de Paulo, este recomenda ao seu fiel
colaborador que frequente assiduamente a Sagrada Escritura. O Apóstolo está
convencido de que «toda a Escritura é inspirada por Deus e adequada para
ensinar, refutar, corrigir e educar na justiça» (3,16). Esta recomendação de
Paulo a Timóteo constitui uma base sobre a qual a Constituição Conciliar Dei Verbum aborda o grande tema da
inspiração da Sagrada Escritura, base essa donde emergem particularmente
a finalidade salvífica, a dimensão espiritual e
o princípio da encarnação para a Sagrada Escritura.
Apelando-se, antes de mais nada, à
recomendação de Paulo a Timóteo, a Dei Verbum sublinha que «os livros da
Escritura ensinam com certeza, fielmente e sem erro a verdade que Deus, para
nossa salvação, quis que fosse consignada nas sagradas Escrituras» (n.
11). Porque estas instruem tendo em vista a salvação pela fé em Cristo
(cf. 2Tm 3,15), as verdades nelas contidas servem para a nossa
salvação. A Bíblia não é uma coletânea de livros de história nem de crónicas,
mas está orientada completamente para a salvação integral da pessoa. A inegável
radicação histórica dos livros contidos no texto sagrado não deve fazer
esquecer esta finalidade primordial: a nossa salvação. Tudo está orientado para
esta finalidade inscrita na própria natureza da Bíblia, composta como história
de salvação na qual Deus fala e age para ir ao encontro de todos os homens e
salvá-los do mal e da morte.
Para alcançar esta finalidade
salvífica, a Sagrada Escritura, sob a ação do Espírito Santo, transforma em
Palavra de Deus a palavra dos homens escrita à maneira humana (cf. Dei Verbum, 12). O papel do Espírito Santo
na Sagrada Escritura é fundamental. Sem a sua ação, estaria sempre iminente o
risco de ficarmos fechados apenas no texto escrito, facilitando uma
interpretação fundamentalista, da qual é necessário manter-se longe para não
trair o caráter inspirado, dinâmico e espiritual que o texto possui. Como
recorda o Apóstolo, «a letra mata, enquanto o Espírito dá a vida» (2Cor 3,6).
Por conseguinte, o Espírito Santo transforma a Sagrada Escritura em Palavra
viva de Deus, vivida e transmitida na fé do seu povo santo.
10. A ação do Espírito Santo não diz
respeito apenas à formação da Sagrada Escritura, mas atua também naqueles que
se colocam à escuta da Palavra de Deus. É importante a afirmação dos padres
conciliares, segundo a qual a Sagrada Escritura deve ser «lida e interpretada
com o mesmo Espírito com que foi escrita» (Dei Verbum, 12). Com Jesus Cristo, a
revelação de Deus alcança a sua realização e plenitude; e, todavia, o Espírito
Santo continua a sua ação. De facto, seria redutivo limitar a ação do Espírito
Santo apenas à natureza divinamente inspirada da Sagrada Escritura e aos seus
diversos autores. Por isso, é necessário ter confiança na ação do Espírito
Santo que continua a realizar uma sua peculiar forma de inspiração, quando a
Igreja ensina a Sagrada Escritura, quando o Magistério a interpreta de forma
autêntica (cf. ibid., 10) e quando cada crente faz dela a
sua norma espiritual. Neste sentido, podemos compreender as palavras ditas por
Jesus aos discípulos, depois que estes Lhe asseveraram ter compreendido o
significado das suas parábolas: «Todo o doutor da lei instruído acerca do Reino
do Céu é semelhante a um pai de família, que tira coisas novas e velhas do seu
tesouro» (Mt 13,52).
11. Por fim, a Dei Verbum especifica que «as palavras
de Deus, expressas por línguas humanas, tornaram-se intimamente semelhantes à
linguagem humana, como outrora o Verbo do eterno Pai Se assemelhou aos homens,
tomando a carne da fraqueza humana» (n. 13). Isto equivale a dizer que a
encarnação do Verbo de Deus dá forma e sentido à relação entre a Palavra de
Deus e a linguagem humana, com as suas condições históricas e culturais. É
neste evento que ganha forma a Tradição, também ela Palavra de Deus (cf. ibid., 9). Muitas vezes corre-se o risco de
separar Sagrada Escritura e Tradição, sem compreender que elas, juntas,
constituem a única fonte da Revelação. O caráter escrito da primeira, nada tira
ao fato de ela ser plenamente palavra viva; assim como a Tradição viva da
Igreja, que no decurso dos séculos a transmite incessantemente de geração em
geração, possui aquele livro sagrado como a «regra suprema da fé» (ibid., 21). Além disso, antes de se tornar
um texto escrito, a Sagrada Escritura foi transmitida oralmente e mantida viva
pela fé dum povo que a reconhecia como sua história e princípio de identidade
no meio de tantos outros povos. Por isso, a fé bíblica funda-se sobre a Palavra
viva, não sobre um livro.
12. Quando a Sagrada Escritura é lida
com o mesmo Espírito com que foi escrita, permanece sempre nova. O Antigo
Testamento nunca é velho, uma vez que é parte do Novo, pois tudo é transformado
pelo único Espírito que o inspira. O texto sagrado inteiro possui uma função
profética: esta não diz respeito ao futuro, mas ao hoje de quem se alimenta
desta Palavra. Afirma-o claramente o próprio Jesus, no início do seu
ministério: «Cumpriu-se hoje esta passagem da Escritura, que acabais de ouvir»
(Lc 4,21). Quem se alimenta dia a dia da Palavra de Deus torna-se,
como Jesus, contemporâneo das pessoas que encontra; não se sente tentado a cair
em nostalgias estéreis do passado, nem em utopias desencarnadas relativas ao
futuro.
A Sagrada Escritura desempenha a sua
ação profética, antes de mais nada, em relação a quem a escuta, provocando-lhe
doçura e amargura. Vêm à mente as palavras do profeta Ezequiel, quando,
convidado pelo Senhor a comer o rolo do livro, confessa: «Ele foi, na minha
boca, doce como o mel» (3,3). Também o evangelista João revive, na ilha de
Patmos, a mesma experiência de Ezequiel de comer o livro, mas acrescenta algo
de mais específico: «Na minha boca era doce como o mel; mas, depois de o comer,
as minhas entranhas encheram-se de amargura» (Ap 10,10).
A doçura da Palavra de Deus impele-nos
a comunicá-la a quantos encontramos na nossa vida, expressando a certeza da
esperança que ela contém (cf. 1Pd 3,15-16). Entretanto a
amargura apresenta-se, muitas vezes, no facto de verificar como se torna
difícil para nós termos de a viver com coerência, ou de constatar sensivelmente
que é rejeitada, porque não se considera válida para dar sentido à vida. Por
isso, é necessário que nunca nos abeiremos da Palavra de Deus por mero hábito,
mas nos alimentemos dela para descobrir e viver em profundidade a nossa relação
com Deus e com os irmãos.
13. Outra provocação que nos vem da
Sagrada Escritura tem a ver com a caridade. A Palavra de Deus apela
constantemente para o amor misericordioso do Pai, que pede a seus filhos para
viverem na caridade. A vida de Jesus é a expressão plena e perfeita deste amor
divino, que nada guarda para si, mas a todos se oferece sem reservas. Na
parábola do pobre Lázaro, encontramos uma indicação preciosa. Depois da morte
de Lázaro e do rico, este vê o pobre no seio de Abraão e pede para Lázaro ser
enviado a casa dos seus irmãos a fim de os advertir sobre a vivência do amor do
próximo para evitar que venham sofrer os mesmos tormentos dele. A resposta de
Abraão é incisiva: «Têm Moisés e os Profetas; que os oiçam!» (Lc 16,29).
Escutar as sagradas Escrituras para praticar a misericórdia: este é um grande
desafio lançado à nossa vida. A Palavra de Deus é capaz de abrir os nossos
olhos, permitindo-nos sair do individualismo que leva à asfixia e à
esterilidade enquanto abre a estrada da partilha e da solidariedade.
14. Um dos episódios mais
significativos desta relação entre Jesus e os discípulos é a Transfiguração.
Acompanhado por Pedro, Tiago e João, Jesus sobe ao monte para rezar. Os
evangelistas lembram como se tornaram resplandecentes o rosto e as vestes de
Jesus, enquanto dois homens conversavam com Ele: Moisés e Elias, que
personificam respetivamente a Lei e os Profetas, isto é, as sagradas
Escrituras. A reação de Pedro a tal visão transborda de jubilosa maravilha:
«Mestre, é bom estarmos aqui. Façamos três tendas: uma para Ti, uma para Moisés
e outra para Elias» (Lc 9,33). Naquele momento, uma nuvem cobre-os
com a sua sombra, e o medo apodera-se dos discípulos.
A Transfiguração faz pensar na Festa
dos Tabernáculos, quando Esdras e Neemias liam o texto sagrado ao povo, depois
do regresso do exílio. Ao mesmo tempo, antecipa a glória de Jesus como
preparação para o escândalo da paixão; glória divina que é evocada também pela
nuvem que envolve os discípulos, símbolo da presença do Senhor. Esta Transfiguração
é semelhante à da Sagrada Escritura, que se transcende a si mesma, quando
alimenta a vida dos crentes. Como nos recorda a Verbum Domini, «para se recuperar a
articulação entre os diversos sentidos da Escritura, torna-se decisivo
identificar a passagem entre letra e espírito. Não se trata duma
passagem automática e espontânea; antes, é preciso transcender a
letra» (n. 38).
15. No caminho da recepção da Palavra
de Deus, acompanha-nos a Mãe do Senhor, reconhecida como bem-aventurada por ter
acreditado no cumprimento daquilo que Lhe dissera o Senhor (cf. Lc 1,45).
A bem-aventurança de Maria antecede todas as bem-aventuranças pronunciadas por
Jesus para os pobres, os aflitos, os mansos, os pacificadores e os que são
perseguidos, porque é condição necessária para qualquer outra bem-aventurança.
Nenhum pobre é bem-aventurado por ser pobre; mas passa a sê-lo, se, como Maria,
acreditar no cumprimento da Palavra de Deus. Lembra-o um grande discípulo e
mestre da Sagrada Escritura, Santo Agostinho: «Uma pessoa do meio da multidão,
cheia de entusiasmo, exclamou: “Bem-aventurado o ventre que Te trouxe”. E Ele:
“Mais felizes são os que ouvem a palavra de Deus e a guardam”. Como que a
dizer: também a minha mãe, a quem tu chamas bem-aventurada, é bem-aventurada
justamente porque guarda a palavra de Deus, não porque n’Ela o Verbo Se fez
carne e habitou entre nós, mas porque guarda o próprio Verbo de Deus por meio
do Qual foi feita, e que n’Ela Se fez carne» (Sobre o Evangelho de São João,
10,3).
Possa o domingo dedicado à Palavra
fazer crescer no povo de Deus uma religiosa e assídua familiaridade com as
sagradas Escrituras, tal como ensinava o autor sagrado já nos tempos antigos:
esta palavra «está muito perto de ti, na tua boca e no teu coração, para a
praticares» (Dt 30,14).
Roma, em São João de Latrão, no dia 30
de setembro de 2019, Memória litúrgica de São Jerônimo e início do 1600º aniversário
da sua morte.
FRANCISCO
[1] Cf. AAS 102 (2010), 692-787.
[2] «Assim é possível compreender a sacramentalidade da Palavra
através da analogia com a presença real de Cristo sob as espécies do pão e do
vinho consagrados. Aproximando-nos do altar e participando no banquete
eucarístico, comungamos realmente o corpo e o sangue de Cristo. A proclamação
da Palavra de Deus na celebração comporta reconhecer que é o próprio Cristo que
Se faz presente e Se dirige a nós para ser acolhido» (Verbum Domini, 56).
(Fonte: Santa Sé)
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