sábado, 28 de dezembro de 2019

Homilias do Patriarca de Lisboa: Natal 2019

Publicamos aqui as homilias de Natal (Missa da Noite e Missa do Dia) do Patriarca de Lisboa, Cardeal Manuel José Macário do Nascimento Clemente neste ano de 2019:

Homilia no Natal do Senhor (Missa da Noite)
A luz divina nos transfigure agora

Por vezes, o mais recorrente não é o mais apercebido. Pode acontecer também com o Natal, enquanto época do ano, habitual apenas. É habitual o calendário, mas não devemos estar habituados nós, antes disponíveis e atentos à novidade que traz. Se assim não fosse, também não seria divino, de Deus que nos surpreende sempre. É esta a sua marca autêntica.
Surpresa significa diferença. Deixar-se surpreender é o princípio da conversão. Como luz que subitamente desponta, para contrastar o dia antecipado com a noite onde estávamos. Importa muito aceitar tal contraste, irredutível.
Celebra Natal quem teve Advento. O roxo litúrgico dá lugar ao branco, como a conversão à festa. Doutro modo não poderia ser. Não vale muito termos as ruas artificialmente iluminadas, se não tivermos a alma luminosa. Nem valem montras atrativas de mil coisas, se não tivermos ganho a única qualidade que importa. Não valem os presentes só por si, sem nos tornarmos nós presentes aos outros: atentos, prestáveis e realmente próximos. 
Nenhuma luz de fora nos dará o Natal de Cristo. Pode até distrair-nos do essencial, da conversão à luz divina que desponta nas boas consciências. Na consciência de quem se reconhece e diz como aquele cego do Evangelho: «Senhor, fazei que eu veja!» Para O seguir depois e sempre.
Anoiteçamos nós, para que tudo amanheça. Não é mero acaso estarmos aqui de noite, quase à antiga hora do “cantar do galo”. A Liturgia do Advento, com os seus hinos, toca-nos sempre e muito, em especial neste ponto, da luz ansiada. Sucedem-se os versos, quase decorados, que sempre nos despertam: «Não demoreis, ó Salvador do mundo / Erguei-vos, ó divina claridade / Ó Sol do novo dia, Luz, Verdade / Vencei da noite o sono tão profundo». Ou ainda estes: «Uma voz que vem de longe / Faz estremecer a noite / Prometendo a madrugada / Que anuncia a luz de Cristo». E igualmente: «Vós que sois luz infinita / Vinde já ao nosso mundo /Iluminar a cegueira / Para vermos o caminho». Ouvimos há pouco ao Profeta: «O povo que andava nas trevas viu uma grande luz; para aqueles que habitavam nas sombras da morte uma luz começou a brilhar». Quando pela primeira vez o disse, dirigia-se a um reino perdido, para reavê-lo. Mas agora se refere a nós, se nos deixarmos irromper das trevas que tivermos. Das trevas em que muito infelizmente podemos permanecer. Ou distrair, tomando por luz qualquer fogo-fátuo. Não faltam, infelizmente, esses clarões rápidos e vazios.
Quando a Liturgia não descura o ato penitencial, íntimo, sincero e verdadeiro, coloca-nos no ponto certo, em penitência ativa. Reconhecemo-nos trevas e buscamos luz. Nesse mesmo ponto acertamos com Deus, que aí mesmo nos espera e ilumina.
Realiza-se a profecia e vislumbra-se o Natal. Ganham realismo as palavras que também ouvimos, como grandeza que nasce pequena, quando à nossa humilhação corresponde a humildade de Deus: «Porque um menino nasceu para nós, um filho nos foi dado. Tem o poder sobre os ombros e será chamado “Conselheiro admirável, Deus forte, Pai eterno, Príncipe da paz”».

Assim aconteceu no Natal de Cristo: «Havia naquela região uns pastores que viviam nos campos e guardavam de noite os rebanhos. O Anjo do Senhor aproximou-se deles e a glória do Senhor cercou-os de luz…» (Lc 2,1ss). Reparemos que era noite, quando o Anjo os envolveu em luz. Ficaram naturalmente assustados, por serem sobrenaturalmente surpreendidos.
Trata-se da mesma sucessão, litúrgica também, como há pouco passamos do ato penitencial à exultação do Glória, que ainda nos ecoa por dentro, como foi sobre o presépio de Belém. E eles foram, os pastores, como nós havemos de ir agora, convertidos das trevas à luz, da noite escura ao amanhecer do dia. Sempre e só assim, numa cadência realmente natalícia.   
Pois se trata disso mesmo, como ouvimos ao Apóstolo: «Manifestou-se a graça de Deus, fonte de salvação para todos os homens. Ela nos ensina a renunciar à impiedade e aos desejos mundanos para vivermos, no tempo presente, com temperança, justiça e piedade aguardando a ditosa esperança e a manifestação da glória do nosso grande Deus e Salvador Jesus Cristo».
A presença de Cristo, ressuscitado agora, é um “Natal” permanente a que devemos acorrer, sem adiar a conversão. – Porque havíamos de retardar em nós a glória que se manifesta n’Ele? - Porque havíamos de demorar aos outros o reflexo da luz de Cristo, como tantos no-la refletem também - os que realmente são «como astros no mundo», no expressivo dizer de São Paulo (cf. Fl 2,15).
Sim, há muito Natal neste mundo, em muitas vidas que dissipam trevas com a luz de Cristo. Somemo-nos nós, incidindo luminosamente nas famílias, nas comunidades, nos vários setores da vida social em que o Evangelho conosco se fará vida. 
Porque as trevas persistem, impedindo-nos de ver os outros e a Deus nos outros, por vezes bem próximos e a reclamar atenção e auxílio - como o Menino do Presépio requeria para si. Trevas não faltam, quando também nos ensombram notícias de perseguição aos cristãos e a minorias, quase genocídio por vezes, perante tanta indiferença e contradição com direitos consignados e boas intenções propaladas. Trevas não faltam, quando a própria natureza se contamina e ofusca - ela que, em si mesma, proclama a glória de Deus e o seu poder criador. Trevas não faltam… Reconheçamo-las então. Deixemos que a luz divina nos ilumine em cheio e nos transfigure a nós. Há muita gente à espera dessa luz, do Natal que lhe devemos. Rezemos ainda mais convictamente nas próximas Laudes estes versículos do Benedictus: «... graças ao coração misericordioso do nosso Deus / Que das alturas nos visita como sol nascente / Para iluminar os que jazem nas trevas e na sombra da morte / E dirigir os nossos passos no caminho da paz».     
O Natal está divinamente garantido, como luz que rebrilha. Dissipemos as nuvens que em nós o ofusquem. - Desejemos aos outros o “feliz Natal” que lhes daremos!

Sé de Lisboa, 25 de dezembro de 2019

+ Manuel, Cardeal-Patriarca

Homilia no Natal do Senhor (Missa do Dia)
Para que o Natal de Cristo continue no mundo

«Muitas vezes e de muitos modos falou Deus antigamente aos nossos pais pelos Profetas. Nestes dias, que são os últimos, falou-nos por seu Filho, a quem fez herdeiro de todas as coisas e pelo qual também criou o universo», assim ouvimos há pouco, na Carta aos Hebreus. E impressiona sempre o fato de, nas primeiras gerações cristãs, já se resumir o que a teologia tem de essencial para nos dizer e quase o Credo que nos define.
A palavra ativa é “falou”: falou Deus pelos profetas, falou-nos Deus por seu Filho. Da criação à finalização deste mundo, tudo é criação divina, absolutamente dita e feita. E, assim como a primeira criação culminou no ser humano, a nova criação culmina na humanização do ser divino, para que toda a promessa se cumpra pelo único poder que a sustenta.
A esta luz, plenamente natalícia, podemos entender muita coisa. Podemos entender-nos sobretudo a nós, tanto no que sempre nos move, como no estarmos hoje aqui. Move-nos, como seres humanos, o desejo de mais e melhor, a esperança de que possa ser assim. Fere-nos o contrário, em nós e à nossa volta, na contradição repetida disso mesmo que almejamos. Dói-nos, por nós e pelos outros, o despiste do desejo, a frustração do projeto, o esvaimento da esperança.
O aparente retorno de fatos e circunstâncias não nos apazigua a mente e o coração. Nem o conseguem o alheamento de si ou a dispensa de sentido. Porque a humanidade como um todo, e o melhor dela em cada um dos seus membros, algo avançou de facto, embora nem sempre como devia. Sobrou ao menos a experiência, ainda que as chamadas “lições da História” nunca tenham alunos bastantes.
Foi assim até há dois mil anos e continua a sê-lo em quem ainda não chegou ao Natal de Cristo. Num tempo que já não é cronológico, antes ultimado da parte de Deus, que em Cristo nos diz tudo quanto finalmente nos resolve. Lembro, de modo um tanto prosaico, a resposta que uma vez ouvi a alguém a quem perguntara porque continuava cristão e praticante. Respondeu-me simplesmente: «Porque com Cristo a conversa nunca mais acaba!»
Creio que podemos dizer todos o mesmo, os que aqui estamos a celebrar o Natal. Reconhecemos em Cristo, da glória do Presépio à glória da Cruz, a resposta divina a tudo quanto o mesmo Deus nos pôs no peito, no desejo profundo só assim preenchido, sem mais adiamento ou desvio.    
Pedro disse-o um dia, por todos nós, os de antes, durante ou depois: «A quem iremos nós, Senhor? Tu tens palavras de vida eterna! Por isso nós cremos e sabemos que Tu és o Santo de Deus» (Jo 6,68-69). Outro autor, pelo fim do século segundo, explica-nos o porquê de acontecer só então: «[Deus] preparava o tempo atual da justiça, a fim de que, tendo-nos convencido, naquele tempo [de iniquidade], de que pelas nossas próprias obras éramos indignos da vida, nos tornássemos dignos dela pela benignidade divina e, reconhecendo claramente a nossa impossibilidade de entrar pelas próprias forças no reino de Deus, pudéssemos ter acesso a ele mediante o poder de Deus» (Epístola a Diogneto, Ofício das Leituras, 18 de dezembro).    
Também Jesus o dissera: «Sem mim, nada podeis fazer» (Jo 15,5). Isto mesmo e no coração de cada um, que Deus alargou a confins que só Ele pode alcançar. Ao seu modo singular e espantoso, na paradoxal pequenez do «eterno nascido de ainda agora», como um dos nossos clássicos se referia ao Menino do Presépio (Padre Manuel Bernardes). 

Assim «o Verbo fez-Se carne e habitou entre nós. Nós vimos a sua glória, glória que Lhe vem do Pai como Filho Unigénito, cheio de graça e de verdade»: Quão magnífico é contemplar hoje este mistério e que importante é dar-lhe a consequência!
Para o contemplarmos, aqui estamos hoje, como o guardaremos na memória agradecida e orante. Na oração quotidiana do Rosário, os mistérios gozosos reenviam-nos ao Presépio de Belém, como a tudo o mais da infância de Jesus. É uma contemplação inesgotável, que fazemos com os olhos e o coração da Mãe de Cristo e certamente acompanhados por José. Depois, sim, podemos partir, como os pastores e os magos, a testemunhar o que vimos. Para regressar sempre e partir melhor.
Para ser visível e audível, o Verbo fez-se carne e habitou entre nós. É iniludivelmente o facto cristão. Também isto aqui nos traz, por se tratar dum acontecimento concreto e preciso, hoje como então, em Cristo e nos seus, verdadeiramente seus.
O sentimento religioso é universal e configurou-se em várias tradições e cultos, como no cristianismo sociocultural também. Manifestando a condição humana, tanto no que a sua fragilidade requer como no que a sua transcendência vislumbra, é absolutamente respeitável e deve ser juridicamente garantido. Lamentamos que nem sempre seja assim e tanta gente sofra hoje em dia, cristãos e não cristãos, por falta de liberdade religiosa. Tristíssimas notícias nos dão conta disso em muitas partes do mundo, ostensivamente por vezes, disfarçadamente outras tantas.
Com Cristo, porém, não se trata meramente de ideia, sentimento, ou costume. Trata-se duma pessoa, dum fato concreto e situado, que ganhou dimensão universal a partir do que viveu, do que disse e do que fez - do presépio à cruz e da cruz à glória, porque a luz de Belém resplendeu na Páscoa.
Impregnou tão divinamente o seu presépio, que o alastrou a todos presépios do mundo, ou seja, aonde a vida nasce e requer o nosso envolvimento e cuidado - e da concepção à morte natural, convém repetir. Habitou e trabalhou em Nazaré da Galileia, mas fê-lo tão totalmente que conferiu à atividade humana uma dignidade imensa e irrecusável. Trilhou os caminhos do Israel da altura, assumindo e reforçando todo o bem que se realize, quando e onde for. Sofreu por todos nós aquela morte, para aí mesmo nos acompanhar na nossa, preenchendo-a com a ressurreição que nos ganhou. Celebrar coerentemente o Natal interroga-nos sobre o real cumprimento destes itens e empenha-nos a todos na sua efetivação.
Verbo encarnado, assim foi Jesus e de algum modo havemos de ser também nós. Não teve grande repercussão e alarido na altura, naquele vasto Império em que viveu. Mas foi tão absoluta a sua vida, traduzindo em humanidade a divindade, que alastrou depois, como alastra agora, irredutível na verdade, bondade e beleza que são inteiramente suas e se impõem por si, hoje como então.
Na sócio-cultura de hoje em dia, tão espessa como contraditória em si mesma, tão descrente de formas e de fórmulas, sejam estas quais forem, só nos resta o caminho estreito da coerência evangélica. Coerência que, por ser divinamente impulsionada, prolongará em nós a encarnação do Verbo. Como também ouvimos e convictamente agradecemos: «Àqueles que O receberam e acreditaram no seu nome, deu-lhes o poder de se tornarem filhos de Deus».
É precisamente assim, só assim, que o Natal de Cristo continuará no mundo.                

Sé de Lisboa, 25 de dezembro de 2019

+ Manuel, Cardeal-Patriarca


Fonte: Patriarcado de Lisboa

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