Padre Raniero Cantalamessa, OFMCap
III pregação de Advento: “Ela deu à luz o seu Filho
primogênito” - Maria Mãe de Deus
20 de dezembro de 2019
Os “passos”
que estamos dando nas pegadas de Maria correspondem, de maneira bastante fiel,
ao desenrolar-se também histórico da sua vida como o vemos nos Evangelhos. A
meditação sobre Maria “cheia de fé” reconduziu-nos ao mistério da Anunciação; a
outra, sobre o Magnificat, ao mistério da Visitação; e agora esta,
sobre Maria “Mãe de Deus”, há de levar-nos ao Natal.
De fato, foi
no Natal, no momento em que “deu à luz o seu filho primogênito” (Lc 2,7), e não
antes, que Maria se tornou verdadeira e plenamente Mãe de Deus. Falando de
Maria, a Escritura ressalta constantemente dois elementos, ou dois momentos
fundamentais que, aliás, correspondem aos que também a experiência humana
comumente considera essenciais para que haja uma verdadeira e plena
maternidade: conceber e gerar. Eis - diz o anjo a Maria - que
conceberás e darás à luz um filho (Lc 1,31). Estes dois momentos estão
presentes também no relato de Mateus: O que ela “concebeu” é obra do Espírito
Santo e ela “dará à luz” um filho (cf.
Mt 1,20ss). A profecia de Isaías, na qual tudo isso tinha sido preanunciado,
exprimia-se da mesma maneira: Uma virgem conceberá e dará à luz um
filho (Is 7,14). Eis porque eu dizia que, somente no Natal, quando dá
à luz Jesus, Maria se torna, em sentido pleno, Mãe de Deus.
O título de
“Geradora de Deus” (Dei
Genitrix), usado na Igreja latina, ressalta mais o
primeiro momento, o da concepção; e o título de Theotókos, usado
na Igreja grega, ressalta mais o segundo momento, o dar à luz (tíkto, em grego,
significa “dou à luz”). O primeiro momento, o gerar, é comum tanto ao pai como
à mãe, enquanto que o segundo, o dar à luz, é exclusivo da mãe.
Mãe de Deus:
título que expressa um dos mistérios e, para a razão, um dos paradoxos mais
altos do cristianismo. Mãe de Deus é o mais antigo e o mais importante título
dogmático de Nossa Senhora, definido pela Igreja no Concílio de Éfeso, no ano
de 431, como verdade de fé que todos os cristãos devem crer. É o fundamento de
toda a grandeza de Maria. É o princípio mesmo da mariologia; por ele, Maria não
é apenas objeto de devoção no cristianismo, mas também de teologia; entra no
discurso mesmo sobre Deus, porque Deus está comprometido diretamente na
maternidade divina de Maria.
Uma visão histórica à formação do dogma
No Novo
Testamento, não encontramos explicitamente o título “Mãe de Deus” dado a Maria.
Encontramos aí, porém, afirmações que, em seguida, vão mostrar à reflexão
atenta da Igreja, guiada pelo Espírito Santo, já conterem in nuce esta
verdade. Como já vimos, afirma-se que Maria concebeu e deu à luz um filho, que
é o Filho do Altíssimo, Santo e Filho de Deus (cf. Lc 1,31-32.35). Resulta dos Evangelhos, pois, que Maria é a mãe
de um filho do qual se sabe que é o Filho de Deus. Nos Evangelhos, ela é
comumente chamada de mãe de Jesus, mãe do Senhor (cf. Lc 1,43), ou simplesmente “a mãe” e “sua mãe” (cf. Jo 2,1-3).
Será preciso
que a Igreja, no desenvolvimento da sua fé, esclareça para si mesma quem é
Jesus, antes de saber de quem Maria é mãe. Evidentemente, Maria não começa a
ser Mãe de Deus no Concílio de Éfeso em 431, como Jesus não começa a ser Deus
no Concílio de Nicéia em 325, quando foi assim definido. Já antes era Mãe de
Deus. Mas aquele é o momento no qual a Igreja, no desenvolvimento e na
explicitação da sua fé, pressionada pela heresia, toma plena consciência desta
verdade e se posiciona a respeito. Acontece como na descoberta de uma nova
estrela: esta não nasce no momento em que sua luz chega à terra e é percebida
pelo observador; já existia antes, talvez desde milhares de anos-luz. A
definição conciliar é o momento em que a luz é colocada no candelabro do credo
da Igreja.
Neste
processo, que leva à proclamação solene de Maria como Mãe de Deus, podemos
distinguir três grandes fases que agora vou apontar. No começo, e em todo o
período dominado pela luta contra a heresia gnóstica e docetista, a maternidade
de Maria é considerada quase unicamente como maternidade física.
Esses hereges negavam que Cristo tivesse um verdadeiro corpo humano; se
admitiam que ele tinha um verdadeiro corpo humano, negavam que esse corpo
tivesse nascido de uma mulher; se admitiam que ele tinha nascido de uma mulher,
negavam que verdadeiramente tivesse surgido de sua carne e de seu sangue.
Contra eles, era, pois, necessário afirmar com força que Jesus era filho de
Maria e “fruto do seu ventre” (Lc 1,42), e que Maria era a mãe verdadeira e
natural de Jesus.
Nesta fase
mais antiga, a maternidade de Maria serve principalmente para demonstrar a
verdadeira humanidade de Jesus. Foi neste período e neste clima que se formulou
o artigo do credo: “Nascido (ou encarnado) do Espírito Santo e da Virgem
Maria”. Originariamente, esse artigo queria dizer simplesmente que Jesus é Deus
e homem: Deus, enquanto gerado segundo o Espírito, isto é, por Deus; homem,
enquanto gerado segundo a carne, isto é, por Maria.
Na fase mais
antiga, surge o título de Theotókos. De agora em diante, o uso
deste título levará a Igreja à descoberta de uma maternidade divina mais
profunda, que poderíamos chamar de maternidade metafísica. Isto aconteceu na
época das grandes controvérsias cristológicas do V século, quando o problema
central sobre Jesus Cristo já não era o de sua verdadeira humanidade, mas o
da unidade da sua pessoa. A maternidade de Maria não é mais
considerada só em relação à natureza humana de Cristo, mas, o que é mais
correto, em relação à única pessoa do Verbo feito homem. E como esta única
pessoa que Maria gera segundo a carne é exatamente a pessoa divina do Filho,
consequentemente ela é verdadeira “Mãe de Deus”.
Entre Maria
e Cristo já não há só uma relação de ordem física, mas também de ordem
metafísica, e este fato coloca-a numa altura vertiginosa, criando uma relação
especial também entre ela e o Pai. Com o Concílio de Éfeso, esta
compreensão torna-se para sempre uma conquista da Igreja: “Se alguém não
confessar que Deus e verdadeiramente o Emanuel e que por isso a Santa Virgem,
tendo nulo segundo a carne o Verbo de Deus feito carne, é a Theotókos, seja
anátema” [1], lê-se num texto aprovado pelo mesmo Concílio.
Foi momento
de grande alegria para todo o povo de Éfeso, que esperou os Padres fora da
sala conciliar e os acompanhou, com fachos e cantos, até seus alojamentos. Essa
proclamação determinou, no Oriente e no Ocidente, uma explosão de veneração
para com a Mãe de Deus. Veneração que se concretizou em festas litúrgicas,
ícones, hinos e inúmeras igrejas a ela dedicadas.
Essa etapa,
porém, não era definitiva. Havia outro nível, além do físico e do metafísico, a
ser descoberto na maternidade divina de Maria. Nas controvérsias cristológicas,
o título Theotókos era valorizado mais em função da pessoa de
Cristo do que de Maria, apesar de ser um título mariano. Desse título, não se
tiravam ainda as consequências lógicas relativas à pessoa de Maria e,
particularmente, sua santidade única. Havia o perigo de Theotókos tornar-se
arma de batalha entre correntes teológicas antes que expressão da fé e da
piedade da Igreja para com Maria.
Esta foi a
grande contribuição dos autores latinos e, particularmente, de Santo Agostinho.
A maternidade de Maria é considerada como uma maternidade na fé, como uma maternidade
espiritual. Estamos na epopeia da fé de Maria. A propósito da palavra de
Jesus: Quem é minha Mãe... Agostinho atribui a Maria, em sumo grau,
aquela maternidade espiritual que nasce do cumprimento da vontade do Pai:
“Por acaso
não cumpriu a vontade do Pai a Virgem Maria, que pela fé acreditou, pela fé
concebeu, que foi escolhida para que dela nascesse a salvação para os homens,
que foi criada por Cristo antes que nela Cristo tosse criado? É certo que santa
Maria cumpriu a vontade do Pai e por isso, para Maria, foi mais importante ter
sido discípula de Cristo do que ter sido a Mãe de Cristo” [2].
A
maternidade física e a maternidade metafísica de Maria chegam assim ao seu
ápice pelo reconhecimento de uma maternidade espiritual, ou de fé, que torna
Maria a primeira e a mais santa filha de Deus, a primeira e a mais dócil
discípula de Cristo, a criatura que - escreve mais uma vez Santo Agostinho -
“pela honra devida ao Senhor, não deve ser nem mencionada quando se fala do
pecado” [3]. A maternidade física ou real de Maria, criando uma relação única e
excepcional entre ela e Jesus, entre ela e toda a Trindade, de um ponto de
vista objetivo é e permanece a realidade maior e um privilégio sem igual; isso,
porém, porque, do ponto de vista subjetivo, existe a humilde fé de Maria. Para
Eva, certamente era um privilégio único o fato de ser a “mãe de todos os
viventes”; mas, como não teve fé, isso de nada lhe adiantou nem lhe deu
felicidade.
Maria é a
única no universo que pode dizer, dirigindo-se a Jesus, o que a ele diz o Pai
Celeste: “Tu és meu filho; eu te gerei! (cf.
Sl 2,7; Hb 1,5). Santo Inácio de Antioquia diz, com toda a simplicidade, quase
sem perceber em que dimensão está projetando uma criatura, que Jesus é “de Deus
e de Maria” [4]. Quase como quando dizemos de alguém que é filho de fulano e de
fulana. Dante Alighieri resumiu num só verso o duplo paradoxo de Maria, que é
“virgem e mãe” e “mãe e filha”: “Virgem Mãe, filha do teu Filho!” [5].
Por si só, o
título “Mãe de Deus” é suficiente para fundamentar a grandeza de Maria e
justificar a honra a ela prestada. Às vezes, os católicos são acusados de
exagerar na honra e na importância atribuídas a Maria; e, às vezes, é preciso
reconhecer, a acusação é justificada, pelo menos no tocante ao modo. Mas nunca
se pensa no que Deus fez. Fazendo Maria sua Mãe, Deus honrou-a tanto que
ninguém pode honrá-la mais, ainda que tivesse, como diz Lutero, tantas línguas
quantas são as folhas da relva [6].
O título
“Mãe de Deus” é também hoje o ponto de encontro e uma base comum para todos os
cristãos, de onde podem partir novamente para reencontrar a unanimidade quanto
ao lugar de Maria na fé. Este é o único título ecumênico, não só de direito,
porque definido num Concílio Ecumênico, mas também de fato, porque reconhecido
por todas as Igrejas. Lutero, a este respeito, escreveu: “O artigo que afirma
que Maria é Mãe de Deus está em vigor na Igreja desde o começo, e o Concílio de
Éfeso não o definiu como novo, porque é uma verdade já sustentada no Evangelho
e na Sagrada Escritura... Estas palavras (Lc 1,32; Gl 4,4) sustentam com muita
firmeza que Maria é verdadeiramente a Mãe de Deus” [7]. Outro iniciador da
Reforma escreve: “A meu ver, Maria é, com justiça, chamada Genitora de
Deus, Theotókos” - e,
numa outra passagem, diz que Maria é “a divina Theotókos, eleita já antes de
ter a fé” [8]. Calvino, por sua vez, escreve: “A Escritura declara-nos
explicitamente que aquele que deverá nascer da Virgem Maria será chamado Filho
de Deus (Lc 1,32), e que a própria Virgem é Mãe do nosso Senhor” [9].
“Mãe de
Deus”, Theotókos, é, pois, o título ao qual é preciso voltar
sempre, distinguindo-o, como fazem justamente os ortodoxos, de toda a infinita
série de outros nomes e títulos marianos. Se fosse tomado a sério por todas as
Igrejas e valorizado de fato, além de ser reconhecido de direito do ponto de
vista dogmático, ele seria suficiente para criar uma unidade fundamental em
torno de Maria; e ela, em vez de ser ocasião de divisão entre os cristãos,
tornar-se-ia, depois do Espírito Santo, o mais importante fator de unidade
ecumênica, aquela que maternalmente ajuda a “trazer à unidade os filhos de Deus
que andam dispersos” (cf. Jo 11,52).
Nossa
maneira de proceder, neste caminho que segue as pegadas de Maria, consiste na
contemplação de cada um dos “passos” por ela percorridos para imitá-los depois
em nossa vida. Pode Maria ser “tipo da Igreja”, isto é, seu modelo também neste
ponto? Isso não só é possível, mas houve homens como Orígenes, Santo Agostinho,
São Bernardo, que chegaram a dizer que, sem esta imitação, o título de Maria
seria inútil para mim: “Que me adiantaria - diziam - que Cristo tenha nascido
de Maria em Belém se, pela fé, não vai nascer também na minha alma?” [10].
É preciso
lembrar que a maternidade divina de Maria se realiza em dois níveis: física e
espiritualmente. Maria é Mãe de Deus não só porque o trouxe fisicamente no
seio, mas também porque, pela fé, concebeu-o antes no coração. Nós não podemos,
naturalmente, imitar Maria no primeiro sentido, gerando novamente Cristo, mas
podemos imitá-la no segundo sentido, que é o da fé. Foi o próprio Jesus quem,
por primeiro, aplicou à Igreja o título de Mãe de Cristo, quando declarou: Minha
mãe e meus irmãos são aqueles que ouvem a palavra de Deus e a põem
em prática (Lc 8,21; cf. Mc
3,31ss; Mt 12,49).
Na tradição,
esta verdade conheceu dois níveis de aplicação complementares. Num caso - como
no texto citado de S.to Agostinho -, vê-se esta maternidade realizada na Igreja
considerada no seu conjunto, enquanto “sacramento universal de salvação”. No
outro, vê-se realizada esta maternidade em cada pessoa ou em cada alma que crê.
O Concílio Vaticano II coloca-se na primeira perspectiva quando escreve:
“A Igreja...
torna-se também ela mãe, pois que pela pregação e pelo batismo gera para a vida
nova e imortal os filhos concebidos do Espírito Santo e nascidos de Deus” [11].
Mas, na
tradição, é ainda mais clara a aplicação pessoal a cada alma: “Cada alma que
crê, concebe e gera o Verbo de Deus... Se, segundo a carne, uma só é a Mãe de
Cristo, segundo a fé todas as almas, isto é, quando acolhem a palavra de Deus” [12].
Outro Padre do Oriente: “O Cristo nasce sempre misticamente na alma, tomando a
carne daqueles que são salvos e fazendo da alma que o gera uma mãe virgem” [13].
Como conceber e dar à luz novamente o Cristo
Concentremo-nos
na aplicação do título “Mãe de Deus”, que nos diz respeito também de maneira
particular. Vejamos como, concretamente, tornamo-nos “mãe de Jesus”. Como,
segundo Jesus, alguém se torna sua mãe? Através de duas atitudes: escutando a
Palavra e pondo-a em prática. Para entender isso, vamos refletir novamente
sobre como Maria se tornou mãe: concebendo Jesus e dando-o à luz. Há duas
maternidades incompletas ou dois tipos de interrupções da maternidade. A
primeira, antiga e conhecida, é o aborto. Acontece quando uma vida é concebida,
mas não é dada à luz porque, ou por causas naturais ou pelo pecado dos homens,
o feto está morto. Até há pouco tempo, este era o único caso que se conhecia de
maternidade incompleta. Hoje, conhece-se outro caso de maternidade incompleta,
que consiste em dar à luz um filho sem o ter concebido. É o que acontece no
caso de filhos concebidos em proveta e só depois colocados no seio de uma
mulher, e no caso desolador e sórdido de úteros emprestados ou alugados para
hospedar vidas humanas concebidas alhures. Neste caso, o que a mulher dá à luz
não vem dela, não é concebido “no coração antes que no corpo”.
Infelizmente,
também no nível espiritual, há essas tristes possibilidades. Concebe Jesus sem
dá-lo à luz quem acolhe a Palavra sem a pôr em prática; quem continua fazendo
um aborto espiritual depois do outro, formulando propósitos de conversão
sistematicamente esquecidos e deixados à metade do caminho; quem se comporta
diante da Palavra como observador apressado, que olha para seu rosto no espelho
e depois vai embora, esquecendo logo como era (cf. Tg 1,23-24). Em suma, quem tem a fé, mas não tem as obras.
Por outro
lado, dá à luz Cristo sem tê-lo concebido quem faz muitas obras, boas até, mas
que não saem do coração, do amor para com Deus e da reta intenção, mas nascem
do hábito, da hipocrisia, da procura da própria glória e do próprio interesse,
ou simplesmente da satisfação que vem do agir. Em suma, quem tem as obras, mas
não a fé.
As cinco festas do Menino Jesus
Vimos o caso
negativo da maternidade incompleta por falta de fé ou por falta de obras. Vamos
agora considerar o caso positivo de uma verdadeira e completa maternidade que
nos torna semelhantes a Maria. São Francisco de Assis tem uma palavra que
resume bem o que quero realçar:
“Somos mães
de Cristo - ele diz - quando o trazemos no coração e no corpo através do amor
divino e da consciência pura e sincera; nós o damos à luz pelas obras santas,
que devem resplandecer como exemplo para os outros... Oh, como é santo e como é
caro, agradável, humilde, pacífico, doce, amável e desejável acima de qualquer
coisa ter semelhante irmão e semelhante filho, o Nosso Senhor Jesus Cristo!” [14].
Nós - chega
a dizer o santo - concebemos Cristo quando o amamos na sinceridade do coração e
com retidão de consciência, e o damos à luz quando cumprimos obras santas que o
manifestam ao mundo. É um eco das palavras de Jesus: Brilhe a vossa luz
diante dos homens de modo que, vendo as vossas boas obras, glorifiquem vosso
Pai, que está nos céus (Mt 5,16).
São
Boaventura, discípulo e filho do Pobrezinho, desenvolveu este pensamento num
opúsculo intitulado “As cinco festas do Menino Jesus”. Nele, explica como a
alma devota pode espiritualmente conceber o bendito Verbo e Filho Unigênito do
Pai, dá-lo à luz, dar-lhe o nome, procurá-lo e adorá-lo com os Magos e, por
fim, apresentá-lo felizmente a Deus Pai no seu templo [15].
Destes cinco
momentos ou festas do Menino Jesus que a alma deve reviver, interessam-nos
particularmente as duas primeiras: a concepção e o nascimento. Segundo São
Boaventura, a alma concebe Jesus quando, descontente da vida que leva,
estimulada pelas santas inspirações e inflamada de santo ardor, libertando-se
resolutamente dos seus velhos hábitos e defeitos, é como que fecundada
espiritualmente pela graça do Espírito Santo e concebe o propósito de uma vida
nova. Aconteceu a concepção de Cristo! Uma vez concebido, o bendito Filho de
Deus nasce no coração quando a alma, depois de ter feito um discernimento
sadio, tendo pedido conselho oportuno e implorado a ajuda de Deus, põe
imediatamente em ação seu santo propósito, e começa a realizar o que havia
muito tempo vinha planejando, mas sempre tinha adiado por medo de não o
conseguir.
Mas é
necessário insistir sobre uma coisa: este propósito de vida nova deve
traduzir-se, sem demora, em algo de concreto, em uma mudança, se possível
externa e visível, de nossa vida e de nossos hábitos. Se o propósito não for
posto em prática, Jesus é concebido, mas não nasce. Trata-se de um dos muitos
abortos espirituais. Nunca vai ser celebrada “a segunda festa” do Menino Jesus,
que é o Natal! E um dos muitos adiamentos, que talvez marquem a nossa vida, e
que são uma das razões principais de tão poucos se tornarem santos.
Se decidires
mudar teu estilo de vida, começando a participar daquela categoria de pobres e
humildes que, como Maria, procuram unicamente encontrar graça diante de Deus
sem querer agradar aos homens, então precisas armar-te da coragem necessária.
Deverás enfrentar dois tipos de tentação. Primeiro, apresentar-se-ão - diz São
Boaventura - os homens carnais do teu ambiente para dizer-te: “É árduo demais o
que vais empreender; não o conseguirás, faltar-te-ão as forças, tua saúde
ficará prejudicada; isso não condiz com teu estado de vida, comprometes a tua
reputação e a dignidade do teu cargo...”.
Depois de
superado esse obstáculo, apresentar-se-ão outras pessoas que têm fama de serem,
e talvez sejam de fato, piedosas e religiosas, mas que não acreditam realmente
no poder de Deus e de seu Espírito. Estas irão dizer-te que, se começares a
viver assim - dando muito espaço à oração, evitando as conversas inúteis,
fazendo obras de caridade -, logo vais ser considerado santo, homem devoto,
espiritual, e como sabes muito bem que não o és, acabarás enganando as pessoas
e sendo um hipócrita, atraindo sobre ti a ira de Deus que escruta os corações.
A todas essas tentações é preciso responder com fé: Não, a mão do
Senhor não é curta para salvar! (Is 59,1), e, quase irritados conosco
mesmos, exclamar como Agostinho às vésperas de sua conversão: “Se estes e estas
conseguem, por que não eu? - Si isti et istae, cur non ego?” [16].
Nessas
meditações do Advento, tentamos nos preparar para o Natal na escola da Mãe de
Deus. Agora que chegamos ao fim, só podemos nos juntar a ela na contemplação
silenciosa e extasiada de Deus feito homem para nossa salvação. A Liturgia
bizantina na véspera de Natal contém uma oração cheia de orgulho santo, que
podemos fazer nossa frente do berço:
O que
podemos oferecer a você como um presente, ó Cristo, nosso Deus, por ter
aparecido na terra assumindo nossa própria humanidade? Cada uma das criaturas
moldadas por suas mãos oferece algo para agradecer: os anjos oferecem sua
música, os céus a estrela, os magos seus dons, os pastores suas maravilhas, a
terra uma caverna, o deserto uma manjedoura. Mas nós oferecemos-lhe uma mãe
virgem!
[1] Enchiridion
Symbolorum, n. 252.
[2] S.
Agostinho, Sermões 72 A (=Denis 25), 7 (Miscelánea
Agustiniana, I, p. 162).
[3] idem, De natura et gratia 36,
42 (CSEL 60, p. 263 s).
[4] S.
Inácio de Antioquia, Carta aos Efésios 7, 2.
[5] Dante
Alighieri, Paraíso XXXIII, 1.
[6]
Lutero, Comentário ao Magnificat (ed. Weimar 7, p.
572ss).
[7] idem, Sobre os concílios da
Igreja (ed. Weimar, 50, p. 591ss).
[8] H.
Zwinglio, Expositio fidei, in:
Zwingli Hauptschriften, der
Theologe III, Zurich, 1948, p. 319
[9]
Calvino, Institutiones II, 14, 4 .
[10] cf. Orígenes, Comentário do
Evangelho de Lucas 22,3 (SCh
87, p. 302).
[11] Lumen Gentium, 64.
[12] S.
Ambrósio, Expositio in Lucam, II, 26.
[13] S.
Máximo Confessor, Comentário ao Pai-Nosso (PG 90, 889).
[14] S.
Francisco de Assis, Carta aos fiéis, 1.
[15] S. Boaventura, De
quinque festivitatibus Pueri Jesu (ed. Quaracchi, 1949, pp. 207ss).
[16] S.
Agostinho, Confissões, VIII, 8, 19
Fonte: Vatican News
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