Padre Raniero Cantalamessa, OFMCap
II
pregação de Advento: “A minha alma engrandece ao Senhor” - Maria na Visitação
13 de dezembro de 2019
Nesta meditação subimos com Maria “à montanha” e entramos à
casa de Isabel. A Mãe de Deus nos falará diretamente e em primeira pessoa com o
seu cântico de louvor, o Magnificat. Hoje, o sucessor de Pedro
comemora o 50º aniversário de sua ordenação sacerdotal e o cântico da Virgem é
a oração que mais espontaneamente brota do coração nessas ocasiões. Será uma
pequena maneira de se unir espiritualmente ao jubileu do Santo Padre.
Para compreender o lugar que ocupa este cântico, devemos
dizer algumas palavras sobre o papel que desempenham os cânticos no “Evangelho
da infância” de Lucas: o Benedictus, o Magnificat, o Gloria
e o Nunc
dimittis. Estes hinos dos Evangelhos da infância têm a função de explicar
espiritualmente o que acontece, isto é, ressaltar, em palavras, o sentido do
acontecimento, conferindo-lhe a forma de uma profissão de fé e de louvor.
Indicam o significado escondido do evento que deve ser trazido à luz.
Como tais, eles fazem parte integrante da narrativa
histórica; não são entrechos ou trechos separados, porque cada acontecimento
histórico é constituído de dois elementos: o fato e o seu significado. Afinal
de contas, eles inserem a Liturgia na história. “A Liturgia cristã - foi
escrito - tem os seus primórdios nos hinos da história da infância” [1]. Nós
temos nestes cânticos, em outras palavras, um embrião da Liturgia natalina.
Eles realizam o elemento essencial da Liturgia que é ser celebração festiva e
crente do acontecimento da salvação.
Muitos problemas permanecem sem solução sobre esses cânticos,
de acordo com os estudiosos da Bíblia: os autores reais, as fontes, a
estrutura. Podemos prescindir, felizmente, de todos estes problemas de crítica
e deixar que eles continuem a ser estudados com proveito por aqueles que se
ocupam destes tipos de questões. Não devemos esperar que sejam resolvidos todos
estes pontos obscuros para podermos nos edificar desde já com estes cânticos.
Não porque tais problemas não sejam importantes, mas porque existe urna certeza
que relativiza todas estas incertezas: Lucas recolheu estes cânticos no seu Evangelho
e a Igreja acolheu o Evangelho de Lucas no seu cânon.
Estes cânticos são “Palavra de Deus”, inspirada pelo
Espírito Santo. O Magnificat é de Maria porque “atribuiu-lhe”
o Espírito Santo, e isto faz com que ele seja mais “seu” do que se
materialmente o tivesse escrito de próprio punho! De fato, não nos interessa
tanto saber se o Magnificat o compôs Maria, quanto saber se o
compôs por inspiração do Espírito Santo. Se estivéssemos até certos de que fora
composto por Maria, não nos interessaria por isto, mas porque nele fala o
Espirito Santo.
O cântico de Maria contém um olhar novo sobre Deus e seu
mundo; na primeira parte, que compreende os versículos 46-50, no fluxo do que
lhe aconteceu, o olhar de Maria se fixa em Deus; na segunda parte, que abrange
os versículos restantes, seu olhar se volta para o mundo e para a história.
Um novo olhar sobre Deus
O primeiro movimento do Magnificat é para
Deus; Deus tem o primado absoluto sobre todas as coisas. Maria não demora em
responder à saudação de Isabel; não entra em diálogo com os homens, mas com
Deus. Ela recolhe a sua alma e a lança no infinito, que é Deus. No Magnificat foi
“fixada” para sempre uma experiência de Deus sem precedentes e sem parâmetro na
história. É o exemplo mais sublime da linguagem dita numinosa. Foi observado
que o manifestar-se da realidade divina no horizonte de uma criatura produz,
comumente, dois sentimentos contrapostos: um de temor e outro de amor. Deus se
apresenta como “o mistério tremendo e fascinante”, tremendo por sua majestade,
fascinante por sua bondade. Quando a luz de Deus pela primeira vez brilhou na
alma de Agostinho, ele confessa que “tremeu de amor e de terror” e que, em
seguida, o contato com Deus o fazia também “tremer e arder” ao mesmo tempo [2].
Encontramos algo semelhante no cântico de Maria, expresso de
modo bíblico através dos títulos. Deus é visto como “Adonai” (que diz muito mais do que o nosso “Senhor”, como vem
traduzido), como “Deus”, como “Poderoso”, e sobretudo como Qadosh, “Santo”:
Santo é o seu nome! Uma palavra que envolve tudo de tremendo
silêncio. Ao mesmo tempo, porém, este Deus santo e poderoso é visto, com
infinita confiança, como “meu Salvador”, como realidade benévola, amável, como
Deus “próprio”, como um Deus para a criatura. Mas é sobretudo a insistência de
Maria sobre a misericórdia (a única palavra que recorre duas vezes no cântico!)
que põe em evidência este aspecto benévolo e “fascinante” da realidade divina.
“Seu amor, de geração em geração, chega a todos”: estas palavras sugerem a
ideia da misericórdia divina como um rio majestoso que atravessa toda a
história humana.
O conhecimento de Deus provoca, por reação e contraste, uma
nova percepção ou conhecimento de si e do próprio ser, que é o verdadeiro. O eu
não se colhe senão defronte a Deus, “face a Deus”. Na presença de Deus, a
criatura, portanto, conhece finalmente a si mesma na verdade. E assim vemos que
acontece também no Magnificat. Maria se sente “olhada” por
Deus, ela própria entra nesse olhar, se vê como Deus a vê. E como vê a si mesma
nesta luz divina? Como “pequena” (“humildade” que significa real pequenez e
inferioridade, não a virtude da humildade!) e como “serva”. Percebe-se como um
pequeno nada que Deus se dignou a olhar. Maria não atribui a eleição divina à
sua humildade, mas unicamente à graça de Deus. Pensar diversamente significaria
destruir de imediato a humildade da Virgem. A humildade tem um estatuto todo
particular: não a tem quem acredita tê-la, tem-na quem acredita não tê-la!
Maria se considerava uma pequena serva de nada, por isso, era a mais humilde
das criaturas.
Deste reconhecimento de Deus, de si e da verdade,
desprendem-se a alegria e a exultação: meu espírito exulta... Alegria
proveniente da verdade, alegria pelo agir divino, alegria do louvor puro e
gratuito. Maria engrandece a Deus por si mesmo, ainda que o glorifique por
aquilo que fez nela, isto é, a partir da própria experiência, como fazem todos
os grandes orantes da Bíblia. O júbilo de Maria é o júbilo escatológico pelo
agir definitivo de Deus e é o júbilo criatural de sentir-se criatura amada pelo
Criador, a serviço do Santo, do amor, da beleza, da eternidade. É a plenitude
da alegria. São Boaventura, que tinha experiência direta dos efeitos
transformadores da visita de Deus à alma, fala da vinda do Espírito Santo em
Maria, no momento da Anunciação, como de um fogo que a inflama toda:
“Sobrevêm nela - escreve - o Espírito Santo como fogo divino
que inflamou a sua mente e santificou a sua carne, conferindo-lhe uma pureza
perfeitíssima... Oh! Se tu fosses capaz de sentir, em alguma medida, qual e
quão grande foi o incêndio descido do céu, qual refrigério recebido... Se
pudesses ouvir o canto jubiloso da Virgem...” [3].
Também a exegese científica mais exigente e rigorosa se dá
conta de que aqui nos encontramos diante de palavras que não são compreendidas
com os meios normais de análise filológica e confessa: “Quem lê estas linhas é
chamado a compartilhar o júbilo; só a comunidade concelebrante dos crentes em
Cristo e dos seus fiéis está à altura destes textos” (H. Schürmann, op.
cit.). É um falar “no Espírito”, que não se pode compreender a não ser
no Espírito.
Um novo olhar sobre o mundo
O Magnificat compõe-se
de duas partes. Aquilo que muda, na passagem da primeira para a segunda parte,
não é nem o modo de se expressar nem o tom; deste ponto de vista, o cântico é
um fluxo contínuo que não apresenta rupturas; continua a série de verbos no
passado que narram o que Deus fez, ou melhor, “começou a fazer”. Aquilo que
muda é apenas o campo do agir de Deus: das coisas que fez “nela”, passa-se a
observar as coisas que fez no mundo e na história. Consideram-se os efeitos do
manifestar-se definitivo de Deus, os seus reflexos sobre a humanidade e sobre a
história. Aqui, observamos uma segunda característica da sabedoria evangélica
que consiste em unir à embriaguez do contato com Deus a sobriedade em olhar o
mundo, no conciliar entre si o maior arrebatamento e abandono em referência a
Deus ao maior realismo crítico em relação à história e aos homens.
Com uma série de fortes verbos no aoristo, Maria descreve, a
partir do versículo 51, uma reviravolta e uma radical mudança das partes entre
os homens: Abateu - exaltou; encheu - mandou embora de mãos vazias. Uma
reviravolta imprevista e irreversível, porque obra de Deus que não muda e não
volta atrás, como fazem, ao invés, os homens em suas coisas. Nesta mudança,
emergem duas categorias de pessoas: de um lado, a categoria dos
soberbos-poderosos-ricos, do outro, a categoria dos humildes-famintos.
É importante que compreendamos em que consiste semelhante
reviravolta e onde ela acontece, porque, de outro modo, há o risco de entender
mal todo o cântico e, com isso, as bem-aventuranças evangélicas que são aqui
antecipadas quase com as mesmas palavras. Olhemos para a história: o que
aconteceu, de fato, quando começou a se realizar o acontecimento cantado por
Maria? Houve, porventura, uma revolução social e externa, pela qual os ricos
foram, num golpe, empobrecidos e os famintos foram saciados de alimento? Houve,
porventura, uma mais justa distribuição dos bens entre as classes? Não.
Porventura os poderosos foram retirados materialmente dos tronos e os humildes
exaltados? Não. Herodes continuou a ser chamado “o Grande” e Maria e José
tiveram que fugir para o Egito por causa dele.
Se, pois, o que se esperava aqui era uma mudança social e
visível, houve um desmentido total da parte da história. Então, onde aconteceu
tal reviravolta? (Porque isso aconteceu!). Aconteceu na fé! Manifestou-se o
Reino de Deus e isto provocou uma silenciosa, mas radical revolução. Como se
tivesse sido descoberto um bem que, de um golpe, desvalorizou a moeda corrente.
O rico aparece como um homem que pôs à parte uma enorme soma de dinheiro, mas
de noite houve uma desvalorização de cem por cento, e de manhã, quando se
levantou, era um pobre miserável. Os pobres e os famintos, ao contrário, foram
favorecidos, porque foram mais rápidos em acolher a nova realidade, não temem a
mudança; têm o coração em prontidão. A reviravolta cantada por Maria é do mesmo
tipo - dizia - daquele proclamado por Jesus com as bem-aventuranças e com a
parábola do rico epulão.
Maria fala de riqueza e pobreza a partir de Deus; ainda uma
vez, fala “face a Deus”, toma como medida Deus, não o homem. Estabelece o
critério “definitivo”, escatológico. Dizer, pois, que se trata de uma
reviravolta acontecida “na fé”, não significa dizer que ela é menos real e
radical, menos séria, mas que o é infinitamente mais. Isto não é um desenho
criado pela onda na areia do mar que a onda seguinte apaga. Trata-se de uma
riqueza eterna e de uma pobreza igualmente eterna.
O Magnificat,
modelo de evangelização
Santo Irineu, comentando a Anunciação, diz que “Maria, cheia
de exultação, gritou profeticamente em nome da Igreja: A minha alma glorifica
o Senhor” [4]. Maria é como a voz solista que entoa por
primeiro uma ária que deve ser depois repetida pelo coro. Isto quer dizer a
expressão “Maria, figura da Igreja” (typus Ecclesiae), usada pelos
Padres da Igreja e acolhida pelo Concilio Vaticano II (Lumen Gentium, n. 63). Dizer que Maria é “figura da Igreja”
significa dizer que é a sua personificação, a representação em forma sensível
de uma realidade espiritual; significa dizer que é o modelo da Igreja. Ela é
figura da Igreja também no sentido em que na sua pessoa realiza-se, desde o
início e de modo perfeito, a ideia de Igreja; que ela o realiza, sob a cabeça
que é Cristo, o membro principal e as primícias.
Mas o que quer dizer aqui “Igreja” e no lugar de que Igreja
Irineu diz que Maria canta o Magnificat? Não no lugar da
Igreja nominal, mas da Igreja real, isto é, não da Igreja em abstrato, mas da
Igreja concreta, das pessoas e das almas que compõem a Igreja. O Magnificat não
e apenas para se recitar, mas para viver, para cada um de nós fazer seu; é o
“nosso” cântico. Quando dizemos: “A minha alma glorifica o Senhor”, este
“minha” é para se compreender em sentido direto, não referencial. “Esteja em
cada um - escreve Santo Ambrósio - a alma de Maria para glorificar o Senhor,
esteja em cada um o espírito de Maria para exultar em Deus... Se, de fato,
segundo a carne, uma só é a mãe de Cristo, segundo a fé, todas as almas geram
Cristo; cada uma, na verdade, acolhe em si o Verbo de Deus” [5].
À luz destes princípios, experimentemos agora aplicar a nós -
à Igreja e à alma - o cântico de Maria, e ver o que devemos fazer para nos
“assemelharmos” a Maria não só nas palavras, mas também nos fatos. O Magnificat nos
ensina substancialmente duas coisas: a sermos fervorosos com Deus e críticos,
ou realistas conosco mesmos e com os homens. Ensina-nos o ideal da “sóbria
embriaguez do Espírito”: a embriaguez quando, na primeira parte, olha Deus, a
sobriedade, na segunda parte, quando olha o mundo.
Na segunda parte, onde Maria proclama a ruína dos poderosos
e dos soberbos, o Magnificat recorda à Igreja qual é o anúncio
essencial que deve proclamar ao mundo. Ensina-lhe a ser também ela “profética”.
A Igreja vive e atua o cântico da Virgem quando repete com Maria: “Derrubou os
poderosos, mandou embora os ricos de mãos vazias!”, e repete-o com fé,
distinguindo este anúncio de todos os outros pronunciamentos que tem também
direito de fazer, em matéria de justiça, de paz, de ordem social, enquanto
intérprete qualificada da lei natural e guarda do mandamento de Cristo do amor
fraterno.
Se as duas perspectivas são distintas, não são, porém,
separadas e sem algum influxo recíproco. Ao contrário, o anúncio de fé daquilo
que Deus fez na história da salvação (que é a perspectiva na qual se coloca
o Magnificat) toma-se a melhor indicação daquilo que o homem deve
fazer, por sua vez, na própria história humana, e, antes, daquilo que a Igreja
mesma tem a obrigação de fazer, por força da caridade que deve ter também para
com o rico, em vista da sua salvação. Mais que “um incitamento para derrubar os
poderosos dos tronos, para exaltar os humildes”, o Magnificat é
uma salutar advertência dirigida aos ricos e aos poderosos sobre o tremendo
perigo que correm, exatamente como será, nas intenções de Jesus, a parábola do
rico epulão.
Aquele do Magnificat não é, pois, o único
modo de afrontar o problema, hoje tão sentido, de riqueza e pobreza, fome e
saciedade; existem outros, também eles legítimos, que partem da história, e não
da fé, e aos quais justamente os cristãos dão o seu apoio e a Igreja, o seu
discernimento. Mas este modo evangélico é aquele que a Igreja deve proclamar
sempre e a todos como seu mandato específico e com o qual deve sustentar o
esforço comum de todos os homens de boa vontade. Ele é universalmente válido e
sempre atual. Se, por hipótese (ai de mim, remota!), existissem um tempo e um
lugar em que não houvesse mais injustiças e desigualdades sociais entre os
homens, mas todos fossem ricos e saciados, nem por isso a Igreja deveria cessar
de proclamar, com Maria, que Deus manda embora os ricos de mãos vazias. Antes,
por seu mandato, deveria proclamá-lo com maior força ainda. O Magnificat é
atual nos países ricos, não menos que nos países do terceiro mundo.
Existem planos e aspectos da realidade que não se percebem a
olho nu, mas apenas com o auxílio de uma luz especial: ou com os raios
infravermelhos ou com os raios ultravioletas. A imagem obtida com esta luz
especial é muito diferente e surpreendente para quem está habituado a ver este
mesmo panorama à luz natural. A Igreja possui, graças à Palavra de Deus, uma
imagem diversa da realidade do mundo, a única definitiva, porque obtida com a
luz de Deus e porque é aquela mesma que Deus tem. Ela não pode ocultar tal
imagem. Deve antes difundi-la, sem jamais se cansar, torná-la conhecida aos
homens, porque dela depende o seu destino eterno. É a imagem que, no final,
ficará quando tiver passado “o esquema deste mundo”. Torná-la conhecida, às
vezes, com palavras simples, diretas e proféticas, como aquelas de Maria, como
são ditas as coisas de que se está íntima e tranquilamente convicto. E isto
mesmo à custa de parecer ingênua e fora do mundo, defronte à opinião dominante
e ao espírito do tempo.
O Apocalipse nos dá um exemplo desta linguagem profética,
direta e corajosa, na qual, à opinião humana, vem contraposta a verdade
divina: Tu dizes (e este “tu” pode ser a pessoa individual,
como pode ser uma sociedade toda): “Sou rico e abastado e não
careço de nada”, em vez de reconhecer que tu és infeliz, miserável, pobre, cego
e nu (Ap 3,17).
Numa célebre fábula de Andersen, fala-se de um rei a quem se
fez crer, por vigaristas, que existe um tecido maravilhoso que tinha o
privilégio de tornar, quem o vestisse, invisível aos tolos e aos ineptos, e
visível apenas aos sábios. Ele, por primeiro, naturalmente não o vê, mas tem
medo de dizê-lo, por temor de se passar por um dos tolos, e assim fazem todos
os seus ministros e todo o povo. O rei desfila pelas estradas sem nada por
cima, mas todos, para não se traírem, fingem admirar o belíssimo vestido, até
se ouvir a vozinha de uma criança que grita entre a multidão: “Mas o rei está
nu!”, rompendo o encantamento, e todos finalmente têm a coragem de admitir que
aquele famoso vestido não existe. A Igreja deve ser como a vozinha de uma
criança, a qual, a certo mundo todo enfatuado das próprias riquezas e que induz
a considerar louco e tolo quem mostra não acreditar nelas, repete, com as
palavras do Apocalipse: “Tu não sabes que estás nu!”. Aqui se vê positivamente
como Maria, no Magnificat, “fala profeticamente pela Igreja”:
ela, por primeiro, partindo de Deus, pôs a nu a grande pobreza da riqueza deste
mundo. O Magnificat é suficiente para
justificar o título “Estrela da evangelização”, que São Paulo VI atribui a
Maria em sua “Evangelii nuntiandi”.
O Magnificat,
escola de conversão
Todavia, seria desvirtuar completamente esta parte do Magnificat que
fala dos soberbos e dos humildes, dos ricos e dos famintos, se a limitássemos
apenas ao âmbito das coisas que a Igreja e o crente devem pregar ao mundo.
Aqui, não se trata de algo que se deve somente pregar, mas algo que se deve,
antes de tudo, praticar. Maria pode proclamar a
bem-aventurança dos humildes e dos pobres porque ela própria está entre os
humildes e os pobres. A reviravolta por ela prevista deve acontecer primeiro no
íntimo de quem repete o Magnificat e reza com ele. Deus - diz
Maria - abateu os soberbos “nos pensamentos do seu coração”. De um golpe, o
discurso é levado de fora para dentro das discussões teológicas, em que todos
têm razão, aos pensamentos do coração, no qual todos temos errado. O homem que
vive “para si mesmo”, do qual Deus não é o Senhor, mas o próprio “eu”, é um
homem que se construiu um trono e no qual se assenta ditando lei aos outros.
Ora, Deus - diz Maria - derruba estes tais do seu trono; põe a nu a sua não
verdade e injustiça. Há um mundo interior, feito de pensamentos, vontade,
desejos e paixões, do qual - diz São Tiago - provêm as guerras e os litígios,
as injustiças e injúrias que estão em meio a nós (cf. Tg 4,1) e, até que alguém comece a sanar esta raiz, nada muda
verdadeiramente no mundo, e se alguma coisa muda, é para reproduzir, dali a
pouco, a mesma situação de antes.
Como o cântico de Maria nos atinge de perto, como nos
questiona a fundo e como põe de verdade “o machado na raiz”! Que loucura e
incoerência seria a minha se, cada dia, às Vésperas, repetisse com Maria que
Deus “derrubou os poderosos dos tronos” e, no entanto, continuasse a cobiçar o
poder, um posto mais alto, uma promoção humana, uma promoção de carreira e
perdesse a paz se isso demora a chegar; se, cada dia, proclamasse com Maria,
que Deus “mandou os ricos de mãos vazias” e, no entanto, aspirasse sem descanso
enriquecer e possuir sempre mais coisas e coisas sempre mais refinadas; se
preferisse estar de mãos vazias diante de Deus, antes que de mãos vazias diante
do mundo, vazias dos bens de Deus, mais que vazias dos bens deste mundo. Que
loucura seria a minha se continuasse a repetir com Maria que Deus “olha para os
humildes”, que se aproxima deles, enquanto mantém à distância os soberbos e os
ricos de tudo, e depois fosse daqueles que fazem exatamente o contrário.
“Todos os dias - escreveu Lutero comentando o Magnificat -
devemos constatar que cada um se esforça por elevar-se além de si, para uma
posição de honra, de poder, de riqueza, de domínio, para uma vida abastada e
para tudo que é grande e soberbo. E cada um quer estar com tais pessoas, corre
atrás delas, serve-as voluntariamente, cada um quer participar da sua
grandeza... Ninguém quer olhar para baixo, onde existe pobreza, ignomínia,
necessidade, aflição e angústia, antes, todos afastam o olhar de tal situação.
Todos evitam as pessoas assim provadas, as afastam, deixam-nas sozinhas,
ninguém pensa em ajudá-las, em assisti-las e em fazer com que elas se tornem
também alguém: devem permanecer embaixo e ser desprezadas” [6].
Deus - diz Maria - faz o oposto disto: tem à distância os
soberbos e eleva até a si os humildes e os pequenos; está mais prazerosamente
com os necessitados e os famintos que o atormentam com súplicas e com pedidos,
do que com os ricos e saciados que não têm necessidade d’Ele e não lhe pedem
nada. Assim fazendo, Maria nos exorta, com ternura materna, a imitar Deus,
fazer nossa a sua escolha. Ensina-nos os caminhos de Deus. O Magnificat é,
na verdade, uma maravilhosa escola de sabedoria evangélica. Uma escola de
conversão contínua.
Pela comunhão dos santos no corpo místico todo este imenso
patrimônio se adere agora ao Magnificat. É bom rezá-lo assim,
em coro, com todos os orantes da Igreja. Deus o escuta assim. Para entrar neste
coro que atravessa os séculos, basta que pretendamos reapresentar a Deus os
sentimentos e o entusiasmo de Maria que, por primeiro, entoou-o “em nome da
Igreja”, dos doutores que o comentaram, dos artistas que o musicaram com fé,
dos piedosos e dos humildes de coração que o viveram. Graças a este maravilhoso
cântico, Maria continua a engrandecer ao Senhor por todas as gerações; a sua
voz, como aquela de uma solista, sustenta e arrasta a da Igreja.
Um orante do saltério convida todos a unir-se a ele,
dizendo: Magnifique comigo ao Senhor (Sl 34,4). Maria repete
aos seus filhos as mesmas palavras. Se eu puder interpretar seu pensamento,
acho que no dia de seu Jubileu sacerdotal, o Santo Padre dirige a todos nós o
mesmo convite: “Magnifique o Senhor comigo”. E prometemos fazer isso.
[1] H. Schürmann, Das Lukasevangelium, I,
Freiburg i.B.1982.
[2] S. Agostinho, Confissões, VII, 16;
XI,9.
[3] S. Boaventura, Lignum vitae, 1,3.
[4] S. Irineu, Adv. Haer. 111,10,2 (SCh
211, p.l 18.
[5] S. Ambrósio, In Luc. 11,26 (CC, 14, p.
42).
[6] Ed. Weimar, 7, p. 547.
Fonte: Vatican News
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