“É
hoje o nascimento de Maria, a Virgem santa, descendente de Davi” [1].
As sequências, composições poéticas a serem entoadas antes
do Evangelho da Missa e que sintetizam o mistério celebrado, se popularizaram no Rito Romano a
partir do século X [2].
No início do século X, com efeito, um monge
beneditino da Abadia de São Galo (Sankt Gallen), na Suíça, Notker Balbulus
(†912), isto é, Notker “o Gago”, compilou 38 composições em seu Liber Sequentiarum [3].
Nesta postagem gostaríamos de apresentar a 20ª sequência
compilada por Notker: Stirpe Maria regia (“Descendente de estirpe
régia”), para a Festa da Natividade da Bem-aventurada Virgem Maria, celebrada
no dia 08 de setembro.
Para saber mais, confira nossa postagem sobre a história da Festa da Natividade de Maria.
Publicaremos aqui o texto original da sequência (em latim) e
uma tradução nossa bastante livre (mais uma “adaptação” do que uma “tradução”),
além de um breve comentário sobre o texto.
Assim como as demais sequências compiladas por Notker, não
há rimas e a divisão em estrofes não está clara. Propomos a seguir uma divisão
em 07 estrofes de dois ou três versos.
Sequentia: Stirpe Maria regia
In Nativitate Virginis Mariae
1. Stirpe Maria regia
Procreata regem generans Iesum.
2. Laude digna angelorum sanctorum,
Et nos peccatores tibi devotos intuere benigna.
3. Tu pios patrum mores ostentas in te,
Sed excellis eosdem.
4. Patris tui Salomonis in te lucet sophia
Et Ezechiae apud Deum cor rectum,
Sed numquam in te corrumpendum.
5. Patris Iosiae adimplevit te religiositas,
Summi etiam patriarchae te fides
Totam possedit, patris tui.
6. Sed quid nos istos recensemus heroas,
Cum tuus
natus omnes praecellat illos
Atque cunctos per orbem?
7. Nos hac die tibi gregatos serva,
Virgo, in lucem mundi qua prodisti,
Paritura caelorum lumen [4].
Sequência: Descendente
de estirpe régia
Natividade da Bem-aventurada Virgem Maria
1. Descendente de estirpe régia,
Maria gerou o Rei Jesus.
2. Digna do louvor dos santos anjos,
Ela olha benigna por nós, pecadores, seus devotos.
3. Tu ostentas as virtudes dos teus piedosos pais,
E tu as superas.
4. A sabedoria do teu pai Salomão brilha em ti
E o coração de Ezequias, reto diante de Deus,
Que em ti nunca se deixou corromper.
5. A piedade do teu pai Josias se realizou em ti,
E a fé do supremo patriarca, teu pai,
Tomou completamente posse de ti.
6. Mas porque enumeramos esses heróis,
Se o teu Filho é superior a todos eles,
E a todo o mundo?
7. Conserva-nos unidos a ti neste dia,
Ó Virgem, que trouxeste luz ao mundo
Ao gerar Aquele que é a Luz dos céus.
Comentário:
O Concílio Vaticano II, particularmente no capítulo VIII da Constituição
Lumen Gentium, recorda que a Virgem Maria é inseparável do mistério de
Cristo, da história da salvação. Assim, celebramos o seu nascimento como
prefiguração da Encarnação do Verbo em seu seio.
Portanto, a sequência começa diretamente em sua 1ª
estrofe apresentando o “motivo do louvor”: a Virgem Maria que, sendo de “estirpe
régia”, isto é, da descendência de Davi, deu à luz Jesus Cristo, Rei do
Universo.
Embora o Evangelho atribua explicitamente a descendência de
Davi apenas a José (Mt 1,1-17; Lc 1,27; 3,23-38), é razoável
supor que Maria fosse da mesma descendência, uma vez era costume que a mulher
se casasse com um homem da mesma tribo (cf. Nm 36).
O Protoevangelho de Tiago, escrito apócrifo do início
do século II e principal fonte para a história da infância de Maria, a elenca entre
as “donzelas sem mancha da tribo de Davi” [5].
Árvore de Jessé, tendo ao centro os Santos Joaquim e Ana (Catedral de Burgos, Espanha) |
Se a 1ª estrofe atesta o vínculo de Maria com Cristo, a 2ª
estrofe afirma seu vínculo com a Igreja, recordando sua materna
intercessão: ela, “digna do louvor dos santos anjos” (ou, em uma tradução
alternativa, “dos anjos e santos”), sempre olha benigna por nós, pecadores,
seus devotos.
A 3ª estrofe, por sua vez, nos introduz no “corpo do
hino”, composto pelo “elogio dos antepassados”: “Vamos fazer o elogio dos
homens famosos, nossos antepassados através das gerações” (Eclo 44,1). A
sequência afirma que Maria ostenta as virtudes dos seus “piedosos
pais” e, ao mesmo tempo, as supera.
A composição nos remete assim ao simbolismo da “raiz de Jessé”
(cf. Is 11,1), pai do rei Davi, de cuja descendência viria o Messias (cf.
2Sm 7; Is 7,14).
Para saber mais, confira nossa postagem sobre o culto aos santos do Antigo Testamento.
A 4ª estrofe recorda dois antepassados de Maria (e,
por conseguinte, de Jesus): os reis Salomão e Ezequias.
Salomão governou o reino unificado de Israel entre 970 e 931
a. C., aproximadamente, sucedendo seu pai, Davi (cf. 1Rs 1–11; 2CR
1–9). Assim como a Escritura, nossa sequência o celebra como homem sábio, qualidade que ecoa
em Maria, “sede da sabedoria”, a qual deu à luz a própria Sabedoria divina.
Após a morte de Salomão o reino é dividido em dois: Israel ao
norte e Judá ao sul. Ezequias reinou sobre Judá entre 715 e 687 a. C., aproximadamente
(cf. 2Rs 18–20; 2Cr 29–32). A Escritura destaca que ele “fez o
que é reto aos olhos do Senhor” (2Rs 18,3; 2Cr 29,2), por isso a
sequência canta seu “coração reto diante de Deus”, à semelhança do Coração
Imaculado de Maria, que “nunca se deixou corromper”.
Árvore de Jessé Ao centro os reis Davi, Salomão, Ezequias e Josias |
O “elogio dos antepassados” prossegue na 5ª estrofe
com o rei Josias e com o “supremo patriarca”, expressão que aqui parece
referir-se a Abraão.
Josias reinou sobre Judá entre 640 e 609 a. C.,
aproximadamente (cf. 2Rs 22–23; 2Cr 34–35).
Sobretudo na literatura deuteronomista, Josias é a epítome do rei
justo: “Não houve antes um rei semelhante a ele, que se voltasse para o Senhor
de todo o seu coração, de toda a sua alma e com todas as suas forças, seguindo
em tudo a lei de Moisés. E não surgiu outro igual depois dele” (2Rs
23,25; cf. Dt 6,4-6). Por isso a sequência celebra sua piedade (religiositas),
que se realizou plenamente em sua descendente, Maria, totalmente consagrada ao Senhor.
Para saber mais sobre os reis de Israel, confira nossas postagens sobre a leitura litúrgica dos Livros dos Reis e dos Livros das Crônicas.
Para completar o grupo dos “quatro grandes reis”, faltaria
aqui uma referência a Davi. Não obstante, a sequência elogia o “supremo
patriarca”, cuja fé “tomou posse” de Maria (“Summi patriarchae fides...”). Cremos tratar-se de uma referência a Abraão, “nosso pai na
fé” (cf. Rm 4). Através dele, por sua vez, o “elogio” se estende a todos
os justos do Antigo Testamento (cf. Hb 11).
A 6ª estrofe “interrompe” o “elogio dos antepassados” da
Virgem Maria, indicando que o seu Filho é superior a todos eles.
Expressões similares aparecem nos textos em honra de São Joaquim e Santa Ana: são grandes por seus antepassados e maiores ainda por sua
descendência, a Virgem Maria e o próprio Filho de Deus encarnado, Rei dos
Patriarcas e Profetas.
Por fim, a 7ª estrofe conclui a sequência com uma “súplica”
à Virgem: que ela nos conserve unidos a si, recordando que ela
deu à luz Aquele que é a luz dos céus e a luz do mundo (cf. Jo 8,12;
1,9).
Notas:
[1] Ofício das Leituras da Festa da Natividade de Maria,
Responsório após a 1ª leitura. in: OFÍCIO DIVINO. Liturgia das Horas segundo o Rito Romano. Tradução para o Brasil da
segunda edição típica. São Paulo: Paulus, 2000, vol. IV, p. 1250.
[2] Após o Concílio de Trento (século XVI), as sequências infelizmente foram reduzidas a apenas quatro: Victimae paschali laudes (Domingo
de Páscoa); Veni, Sancte Spiritus (Pentecostes); Lauda Sion
(Corpus Christi) e Dies irae (Missas dos defuntos). Em 1727 foi acrescentada a sequência Stabat Mater dolorosa (Memória de Nossa Senhora
das Dores).
A reforma litúrgica do Concílio Vaticano II transformou o Dies irae em hino da Liturgia das Horas para
a última semana do Tempo Comum, conservando as outras quatro sequências para a
Missa.
[3] Já falamos aqui em nosso blog sobre cinco das sequências
compiladas por Notker:
Sancti Baptistae, Christi praeconis (Natividade de São João Batista);
Petre, summe Christi pastor (São Pedro e São Paulo);
Summi triumphum Regis
(Ascensão do Senhor);
Congaudent angelorum chori (Assunção de Maria).
Outras sequências apresentadas foram:
Psallite regi nostro (Martírio de São João Batista), atribuída a Gottschalk de Aachen
(séc. XI);
Ave Maria, Virgo serena (Anunciação), composição anônima do século XI;
Zyma vetus expurgetur (Páscoa), atribuída a Adão de São Vítor (séc. XII);
Decet huius cunctis horis (Visitação de Maria), atribuída a Johann von Jenstein (séc.
XIV).
[4] NOTKER
Balbulus. Liber Sequentiarum,
cap. XX: In Nativitate Sanctae Mariae. in:
MIGNE, J. P. Patrologiae: Cursus
Completus, Series Latina, v. 131, p. 1016.
THESAURUS HYMNOLOGICUS sive
Hymnorum, canticorum, sequentiarum circa annum MD usitatarum collectio
amplissima. Tomus Secundus: Sequentiae, cantica, antiphonae. Lipsiae, 1855,
pp. 22-23.
[5] Proto-Evangelho de Tiago, 10,1. in:
PROENÇA, Eduardo de (org.). Apócrifos e pseudo-epígrafos da Bíblia, vol.
I. São Paulo: Fonte Editorial, 2005, p. 523.
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