sábado, 28 de maio de 2022

Sequência de Pentecostes: Sancti Spiritus adsit nobis gratia

“Enviai o vosso Espírito e tudo será criado, e renovareis a face da terra” (Sl 103,30).

Os católicos de Rito Romano estão familiarizados com a sequência Veni, Sancte Spíritus (“Espírito de Deus, enviai dos céus”), entoada no Domingo de Pentecostes.

Essa, com efeito, é uma das poucas sequências que “sobreviveram” à reforma litúrgica do Concílio de Trento. Anteriormente, entre os séculos X e XVI, praticamente todas as solenidades e festas do Ano Litúrgico possuíam uma ou mais sequências, composições poéticas que sintetizavam o mistério celebrado [1].

Além de Veni, Sancte Spíritus, composição do século XIII atribuída a Stephen Langton (†1228), Arcebispo de Canterbury (Inglaterra), a Solenidade de Pentecostes era enriquecida com a sequência Sancti Spiritus adsit nobis gratia (em uma tradução livre, “Que o Espírito Santo derrame sobre nós a sua graça”).

Para saber mais sobre o Pentecostes, confira nossa postagem sobre a história desta Solenidade.

Vitral do Espírito Santo
(Catedral de Santa Maria, Glasgow)

Esta sequência remonta ao início do século X, sendo talvez a mais famosa dentre as atribuídas a Notker Balbulus (†912), monge beneditino da Abadia de Sankt Gallen (Suíça).

Notker “o Gago”, venerado como Beato pelos beneditinos, compilou 38 composições em seu Liber Sequentiarum, das quais já falamos aqui no blog sobre três:
- Sancti Baptistae, Christi praeconis (Natividade de São João Batista);
- Petre, summe Christi pastor (Solenidade de São Pedro e São Paulo);
- Summi triumphum Regis (Solenidade da Ascensão do Senhor).

Entre os séculos XIII e XVI as duas sequências - Veni, Sancte Spíritus e  Sancti Spiritus adsit nobis - eram entoadas intercaladamente no Domingo de Pentecostes e durante a sua Oitava, até que o Concílio de Trento fixou a primeira como a única sequência para essa Solenidade [2].

Não obstante, a fim de dar a conhecer cada vez mais o riquíssimo patrimônio litúrgico da Igreja, apresentamos a seguir a sequência Sancti Spiritus adsit nobis gratia em seu texto original (em latim) e em uma tradução nossa bastante livre (mais uma “adaptação” que uma “tradução”), além de um breve comentário sobre o texto.

Esta sequência se aproxima muito à composição de Notker para a Ascensão (Summi triumphum Regis): não há rimas e a divisão em estrofes não é bem clara: em algumas fontes ela aparece simplesmente estruturada em 24 versos. Propomos aqui uma divisão em 11 estrofes, a primeira e a última com três versos e as demais com dois versos.

Notker representado em um manuscrito do século XI
(Note-se o início da sequência Sanctis Spiritus adsit no livro)

Sequentia: Sancti Spiritus adsit nobis gratia

1. Sancti Spiritus adsit nobis gratia (Aleluia),
Quae corda nostra sibi faciat habitaculum,
Expulsis inde cunctis vitiis spiritalibus.

2. Spiritus alme, illustrator hominum,
Horridas nostrae mentis purga tenebras.

3. Amator sancte sensatorum semper cogitatuum,
Infunde unctionem tuam clemens nostris sensibus.

4. Tu purificator omnium flagitiorum, Spiritus,
Purifica nostri oculum interioris hominis,

5. Ut videri supremus genitor possit a nobis,
Mundi cordis quem soli cernere possunt oculi.

6. Prophetas tu inspirasti, ut praeconia Christi praecinuissent inclita;
Apostolos confortasti, uti trophaeum Christi per totum mundum veherent.

7. Quando machinam per Verbum suum fecit Deus caeli, terrae, marium,
Tu super aquas foturus eas numen tuum expandisti, Spiritus.

8. Tu animabus vivificandis aquas fecundas;
Tu aspirando das spiritales esse homines.

9. Tu divisum per linguas mundum et ritus adunasti, Domine;
Idolatras ad cultum Dei revocas, magistrorum optime.

10. Ergo nos supplicantes tibi exaudi propitius, Sancte Spiritus,
Sine quo preces omnes cassae creduntur et indignae Dei auribus.

11. Tu, qui omnium saeculorum sanctos tui nominis docuisti instinctu amplectendo, Spiritus,
Ipse hodie apostolos Christi donans munere insolito et cunctis inaudito saeculis
Hunc diem gloriosum fecisti.
(Sancti Spiritus adsit nobis gratia!) [3].


Sequência: Que o Espírito Santo derrame sobre nós a sua graça

1. Que o Espírito Santo derrame sobre nós a sua graça (Aleluia!),
E faça do nosso coração a sua morada,
Expulsando todos os vícios espirituais.

2. Espírito de amor, luz dos homens,
Expulsa as trevas de nossa mente.

3. Santo, que sempre amas os pensamentos dos homens sensatos,
Infunde, clemente, tua unção sobre nossos sentidos.

4. Tu, Espírito, purificador de todos os crimes,
Purifica o olho de nosso homem interior.

5. Para que possamos ver o nosso Pai supremo,
A quem só um coração purificado pode contemplar.

6. Tu inspiraste os Profetas a proclamar as glórias de Cristo;
Tu encorajaste os Apóstolos a levar a todo o mundo os sinais da vitória de Cristo.

7. Quando Deus, por sua Palavra, fez os céus, a terra, o mar,
Tu, Espírito, estendeste teu poder sobre as águas para fecundá-las.

8. Tu fecundas as águas para que deem vida às almas,
Tu, com teu sopro, torna-nos homens espirituais.

9. Tu, Senhor, uniste o mundo dividido por línguas e costumes;
Mestre excelente, reconduziste os idólatras ao culto de Deus.

10. Por isso, ouvi propício as nossas súplicas, ó Espírito Santo,
Pois sem ti todas as orações são vãs e indignas aos ouvidos de Deus.

11. Tu, que ensinaste os santos de todos os tempos, envolvendo-os em teu sopro,
Tu que hoje enriqueceste os Apóstolos de Cristo com um dom sem igual,
Fazendo deste um dia glorioso.
(Ó Espírito Santo, derrama tua graça sobre nós!)

Pentecostes (Vasco Fernandes)

Comentário:

Assim como Veni, Sancte Spíritus, a sequência Sancti Spiritus adsit nobis gratia é essencialmente uma grande epiclese: uma invocação do Espírito Santo, centrada aqui em sua ação criadora e santificadora. Já na 1ª estrofe, com efeito, O invocamos para que habite em nosso coração, purificando-o de todo o pecado.

A 2ª estrofe, por sua vez, começa com o título “Spiritus alme”. Como vimos em postagens anteriores sobre sequências e hinos da Liturgia das Horas, o adjetivo almus presta-se a várias traduções: bondoso, santo, doce...

Segue-se a referência a um dos símbolos do Espírito: a luz. Ele é illustrator hominum (iluminador dos homens), que expulsa as horridas tenebras (terríveis trevas) de nossa mente e de nosso coração.

A expressão remete-nos à sequência da Ascensão, na qual Notker celebra a vitória de Cristo sobre as “tétricas trevas” (taetras tenebras) da morte, e à antiga coleta (oração do dia) da Solenidade de Pentecostes: “Deus, qui corda fidélium Sancti Spíritus illustratióne docuísti...” (Ó Deus, que instruístes os corações dos vossos fiéis com a luz do Espírito Santo...).

Segue-se, na 3ª estrofe, um verso sobre o Espírito como “santo Amante” (Amator sancte) do homem sensato. Na Sagrada Escritura, o homem sensato (prudente), elogiado diversas vezes nos Salmos e nos livros sapienciais, é aquele que busca a sabedoria, a justiça, a santidade (cf. Mt 5,24-25).

A estrofe traz ainda uma súplica ao Espírito para que, em sua clemência (misericórdia), derrame sua unção sobre os nossos sentidos. Como não recordar aqui da 4ª estrofe do hino Veni Creator Spiritus: “Accénde lumen sénsibus, infúnde amórem córdibus...” (“Acende tua luz em nossas mentes, infunde amor em nossos corações...”).

Na 4ª estrofe suplicamos ao Espírito para que purifique nosso “homem interior”, expressão utilizada por Paulo para referir-se à dimensão espiritual da pessoa humana (cf. Rm 7,22; 2Cor 4,16), pois, como prossegue a 5ª estrofe, só é possível contemplar a Deus com um coração purificado (cf. Mt 5,8).

6ª estrofe, mais do que uma epiclese (invocação, súplica), é uma anamnese, um memorial da história da salvação, recordando a ação do Espírito Santo no Antigo Testamento, inspirando os Profetas, e no Novo Testamento, encorajando os Apóstolos em sua missão.

Efusão do Espírito Santo sobre os Doze Apóstolos
(Catedral de São Marcos, Veneza)

A composição indica que os Apóstolos levaram a todo o mundo os “sinais da vitória de Cristo”, trophaeum Christi. Na tradição cristã, esses “troféus” são os instrumentos da sua Paixão, pois foi “morrendo que Ele destruiu a morte e, ressurgindo, deu-nos a vida” (cf. Prefácio da Páscoa I). Assim, a sequência remete aqui ao querigma, o anúncio fundamental da fé cristã, centrado no Mistério Pascal da Morte-Ressurreição do Senhor.

Ao mesmo tempo, a expressão trophaeum é utilizada na tradição cristã para referir-se aos túmulos dos mártires. Assim, o verso pode ser interpretado também em alusão ao martírio dos Apóstolos, leitura corroborada pelo uso do verbo confortare (encorajar): é o Espírito de fortaleza que encoraja os mártires em seu sacrifício.

Prosseguindo com a anamnese da história da salvação, a 7ª estrofe faz-nos retornar à criação, quando Deus criou a “máquina” do mundo através da sua Palavra (per Verbum suum), enquanto o Espírito pairava sobre as águas (cf. Gn 1,1–2,4a).

Note-se como a criação é interpretada como um ato trinitário (cf. Catecismo da Igreja Católica, nn. 290-292): o Pai pronuncia sua Palavra, que é o próprio Filho (cf. Jo 1,1-3.14), enquanto o Espírito “fecunda” as águas com seu poder (o Espírito é pneuma, sopro vivificante, e dynamis, força, energia transformadora).

A água, outro dos símbolos do Espírito Santo, retorna na 8ª estrofe. Reitera-se aqui que o Espírito Santo “fecunda” as águas, comunicando-lhes o poder de dar a vida. Podemos interpretar esse verso em alusão ao Batismo, sacramento “da água e do Espírito” (cf. Jo 3,5).

A mesma estrofe atesta ainda outro símbolo do Espírito: o “sopro” (cf. Jo 20,22), o qual nos torna “homens espirituais”, outra expressão usada por Paulo (cf. 1Cor 2,14–3,1). O sopro também nos remete aos sacramentos da Iniciação Cristã: anteriormente, o sacerdote soprava sobre a água batismal; o Bispo sopra sobre o óleo do Crisma, com o qual os fiéis são ungidos na Confirmação.

9ª estrofe situa-nos no mistério da festa celebrada: o Pentecostes (cf. At 2,1-11). Notker remete aqui ao “anti-Pentecostes”, a torre de Babel (cf. Gn 11,1-9), quando o orgulho dos homens gera divisão, representada pela confusão das línguas.

A torre de Babel, "o anti-Pentecostes"
(Pieter Brueghel o Velho)

No Pentecostes, ao contrário, falando através dos Apóstolos, o Espírito como Mestre excelente (Magister optimus) reúne os irmãos divididos e os reconduz, por Cristo, ao Pai. Após o discurso de Pedro, com efeito, muitos são batizados, recebendo “o dom do Espírito Santo” (cf. At 2,37-41).

Uma vez mencionada, pois, a missão do Paráclito como “Espírito da unidade”, na 10ª estrofe a composição o apresenta como “mestre da oração”: é o Paráclito, o Defensor, que “nos socorre em nossa fraqueza” (Rm 8,27), ensinando-nos a rezar (cf. Rm 8,14-16; Gl 4,6). Sem sua assistência, nossa oração seria vã.

Por fim, a 11ª estrofe volta a cantar a ação do Espírito Santo sobre os santos, já referenciada na 6ª estrofe em relação aos Profetas e Apóstolos. O 1º verso celebra a ação do Espírito sobre os santos de todos os tempos, “abraçando-os” com sua inspiração divina (instinctu amplectendo). Uma vez que o Espírito é a fonte de toda santidade, a tradição bizantina celebra a “Festa de Todos os Santos” justamente no Domingo após o Pentecostes.

Os dois últimos versos retornam ao mistério celebrado, já recordado na estrofe anterior: o Pentecostes. O 2º verso começa com um “hodie” (hoje), atestando que “a Liturgia cristã não se limita a recordar os acontecimentos que nos salvaram: atualiza-os, torna-os presentes” (Catecismo da Igreja Católica, n. 1104).

Os acontecimentos salvíficos ocorreram “uma vez por todas” (cf. Hb 7,27; 9,12; 10,10); porém, “toda vez que” os celebramos, eles se tornam presentes (cf. 1Cor 11,26). Não se trata, porém, de repetição: o mistério “celebra-se, não se repete (...) em cada celebração sobrevém a efusão do Espírito Santo, que atualiza o único mistério” (cf. Catecismo da Igreja Católica, n. 1104).

O hoje do Pentecostes traz um dom sem igual comunicado aos Apóstolos: extraordinário, novo... Nas palavras do próprio Cristo: “Recebereis o poder do Espírito Santo que descerá sobre vós, para serdes minhas testemunhas em Jerusalém, em toda a Judéia e na Samaria, e até os confins da terra” (At 1,8).

Por isso, em alguns manuscritos da sequência se retoma aqui o 1º verso, que serve como uma súplica final: Sancti Spiritus adsit nobis gratia! Ó Espírito Santo, derrama tua graça sobre nós!

Vitral do Espírito Santo
(Igreja de Santa Maria, Denville)

Notas:

[1] Apenas quatro sequências “sobreviveram” ao Concílio de Trento e foram conservadas no Missale Romanum de 1570: Victimae paschali laudes (Domingo de Páscoa), Veni, Sancte Spiritus (Pentecostes), Lauda Sion (Corpus Christi) e Dies irae (Missas dos defuntos). Em 1727 seria acrescentada a sequência Stabat Mater dolorosa para a Memória de Nossa Senhora das Dores.
A reforma litúrgica do Concílio Vaticano II transformou o Dies irae em hino da Liturgia das Horas para a última semana do Tempo Comum, conservando as outras sequências como tais.

[2] Vale recordar que a oitava de Pentecostes foi suprimida pela reforma litúrgica do Concílio Vaticano II, de modo a preservar a unidade dos “cinquenta dias” pascais.

[3] NOTKER Balbulus. Liber Sequentiarum, cap. XIV: In die santo Pentecostes. in: MIGNE, J. P. Patrologiae: Cursus Completus, Series Latina, v. 131, pp. 1012-1013;
THESAURUS HYMNOLOGICUS sive Hymnorum, canticorum, sequentiarum circa annum MD usitatarum collectio amplissima. Tomus Secundus: Sequentiae, cantica, antiphonae. Lipsiae, 1855, pp. 16-18.

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