“Bendize o Senhor em
todo o tempo, e pede-lhe para que sejam retos os teus caminhos” (Tb 4,19).
Dedicamos as postagens anteriores da nossa série sobre a leitura litúrgica dos livros da Sagrada Escritura aos livros do Antigo Testamento (AT)
definidos como “novelas bíblicas”, isto é, narrativas sobre diversos aspectos
da vida quotidiana, com propósito didático.
Após analisar os três livros que têm mulheres como
protagonistas (Rute, Ester e Judite), cabe-nos agora contemplar o último escrito desse bloco: o Livro de Tobias (Tb).
1. Breve introdução
ao Livro de Tobias
Assim como Judite,
Tobias é um livro deuterocanônico
(“da segunda lista”), isto é, tendo sido escrito em grego, não foi aceito na
Bíblia hebraica (e posteriormente rejeitado também pelos protestantes). Contudo,
é possível que tenha existido um original aramaico ou hebraico que se perdeu.
Em grego o livro possui duas versões, razão pela qual há
diferenças na numeração dos versículos nas traduções. Seu nome em grego é Τοβίτ,
Tobit, embora o conheçamos como Tobias, nome do seu filho. Ambos são
nomes simbólicos que provêm da mesma raiz hebraica: tôb, bom.
Como as demais “novelas bíblicas”, trata-se de uma história
fictícia. Isto fica claro pelos erros históricos e geográficos em sua
narrativa: são “erros” propositais, que o autor usa para recordar ao leitor que
a sua mensagem serve para todos os tempos e lugares.
A redação do livro pode ser datada entre o final do século
III e o início do século II a. C., no início do período helênico, quando os
primeiros reis selêucidas foram tolerantes com a fé judaica. A obra tem como
objetivo exortar à prática das “boas obras”, como dar esmolas ou sepultar os
mortos.
Sua narrativa pode ser organizada em três grandes partes:
a) Tb 1–4: As “desventuras” de Tobit e Sara;
b) Tb 5–10: A viagem de Tobias e o seu casamento com
Sara;
c) Tb 11–14: A cura de Tobit e o seu cântico de ação
de graças.
A história é ambientada na Assíria, após o fim do reino do
norte, Israel (722 a. C.) Primeiramente Tobit se apresenta: é um judeu piedoso,
que dá esmolas e sepulta os mortos (cap. 1). Porém, quase como um “novo Jó”, é
perseguido, perde seus bens e fica cego (cap. 2), entoando então uma súplica a
Deus (Tb 3,1-6).
Em Tb 3,7 somos apresentados a Sara, filha de Raguel
(“amigo de Deus”): ela casara-se sete vezes, mas o demônio Asmodeu (cujo nome
poderia significar “destruidor”) matara todos os seus maridos antes que a união
fosse consumada. Ela então também eleva a Deus uma súplica (Tb 3,11-15).
Deus ouve as súplicas dos dois “desventurados” e envia-lhes
o anjo Rafael, isto é, “Deus cura” (Tb 3,16-17). Antes da sua intervenção,
porém, a primeira parte encerra-se com o envio de Tobias a outra cidade para
resgatar um dinheiro depositado por Tobit. O cap. 4 é formado por conselhos de
caráter sapiencial e religioso do pai a seu filho.
A segunda parte do livro começa com a viagem de Tobias,
acompanhado por Rafael, que a princípio não se dá a conhecer (cap. 5–6). Por
sua intervenção, Tobias casa-se com Sara e a jovem é libertada do demônio
Asmodeu (cap. 7–8). Essa segunda parte encerra-se com a recuperação do dinheiro
e a viagem de volta (cap. 9–10).
A última parte da história é marcada pelo encontro entre pai
e filho e pela cura de Tobit, novamente pela intervenção de Rafael (cap. 11),
que por fim se dá a conhecer (cap. 12). A obra se encerra com um cântico de
ação de graças de Tobit (cap. 13) e a narração da sua morte (cap. 14).
Tobit sepultando os mortos (Andrea di Lione) |
Como podemos ver, o Livro
de Tobias é uma “história de família”, sobre o valor do matrimônio e a
importância de praticar boas ações. O recurso a diversos gêneros literários dá
um colorido particular à obra. Está próxima dos escritos sapienciais, enquanto
sua teologia é deuteronomista, marcada pela promessa de que, no final, Deus
recompensará o justo.
Para saber mais, confira a bibliografia indicada no final da
postagem.
2. Leitura litúrgica
do Livro de Tobias: Composição
harmônica
Como fizemos com as demais “novelas bíblicas”, analisaremos
a presença do Livro de Tobias nas celebrações
litúrgicas segundo os dois critérios de seleção dos textos bíblicos indicados
pelo Elenco das Leituras da Missa (ELM)
em seu n. 66: a composição harmônica e a leitura semicontínua [1].
Começaremos pela composição harmônica, que
consiste na escolha do texto por sua sintonia com o tempo ou a festa litúrgica.
a) Celebração
Eucarística
Sob o critério da composição harmônica, encontramos apenas
duas leituras de Tobias na Celebração Eucarística, mais
especificamente no Comum dos Santos,
com várias opções de leituras para as Missas dos santos. As duas perícopes
sugeridas aqui ad libitum, isto é, à
escolha são:
- Tb 8,4b-8: A oração de Tobias e Sara após seu
casamento: “Sê misericordioso comigo e com
ela e concede-nos que cheguemos, juntos, a uma idade avançada” (v. 7).
Embora o Lecionário não especifique, esta
leitura é mais adequada para santos casados;
- Tb 12,6-13: Aqui o Lecionário especifica que a leitura é indicada para os santos que praticaram obras de
caridade. Trata-se de uma série de conselhos do anjo Rafael a Tobit e
Tobias, exortando-os às boas obras [2].
Além das leituras, vale destacar uma antífona adaptada do
nosso livro em uma das celebrações votivas da Coletânea de Missas de Nossa Senhora. Trata-se da 1ª opção de antífona de entrada da Missa de Maria, Mãe da unidade (formulário n. 38, para o Tempo Comum):
“Exultai e alegrai-vos, ó Virgem Maria! Por vós se reunirão
todos os filhos de Deus para bendizer o Senhor do universo” (cf. Tb
13,13) [3].
b) Sacramentos e
sacramentais
Além da Celebração Eucarística, o Livro de Tobias é indicado, como não poderia deixar de ser, para o sacramento do Matrimônio. Dentre as
leituras propostas à escolha para a celebração desse sacramento, duas são do
nosso livro:
- Tb 7,6-14: O relato do casamento de Tobias e Sara,
com a bênção de Raguel sobre os dois: “Que o Senhor do céu vos faça felizes e
vos conceda misericórdia e paz” (v. 11);
- Tb 8,4b-8: A oração de Tobias e Sara após o
casamento, como vimos acima [4].
Passando aos sacramentais,
identificamos três perícopes de Tobias
propostas ad libitum para as
seguintes bênçãos:
- Bênção de filhos:
Tb 4,5-7.19 [5], com uma série de conselhos do pai ao seu filho: “Meu filho, lembra-te do Senhor todos os dias”
(v. 5);
- Bênção de organizações
de socorro: Tb 12,6-13 [6], uma série de conselhos do anjo Rafael,
exortando às boas obras: “Fazei o bem e o
mal não vos atingirá” (v. 7);
- Bênção no início de
uma viagem: Tb 5,17-22 [7], a partida de Tobias em viagem,
acompanhado pelo anjo Rafael. Aqui Tobit abençoa seu filho: “Que vos proteja o Deus que está nos Céus, e
que vos reconduza a mim sãos e salvos. Que seu anjo vos acompanhe e vos proteja”
(v. 17). Na forma breve da Bênção propõe-se Tb 4,19a, um dos conselhos
de Tobit, exortando seu filho a pedir ao Senhor que “torne retos seus caminhos” [8].
c) Liturgia das Horas
Na Liturgia das Horas
a Igreja nos propõe três leituras breves de Tobias
em composição harmônica:
- Hora Média (15h)
dos dias 30 de dezembro, 07 de janeiro (quando a Epifania é celebrada no domingo, dia 08) e segunda-feira após a Epifania: Tb
14,6-7 [9], anunciando que “os povos da
terra inteira se converterão e temerão verdadeiramente a Deus”, os quais
são representados na Epifania pelos “magos
do Oriente” (Mt 2,1-12);
- Hora Média (12h) da
Festa da Visitação de Nossa Senhora (31 de maio): Tb 12,6b [10], um
convite a bendizer a Deus por seus benefícios, remetendo aqui ao cântico da
Virgem Maria, o Magnificat (Lc
1,46-55);
- Hora Média (15h) da
Festa dos Santos Arcanjos Miguel, Gabriel e Rafael (29 de setembro): Tb
12,15.18.20b [11]. Nesta Festa, cada uma das “Horas Médias” é dedicada a um dos
Arcanjos: Miguel às 9h, Gabriel às 12h e Rafael às 15h, quando se lê sua
autorrevelação: “Eu sou Rafael, um dos
sete anjos que permanecem diante da glória do Senhor” (o número sete aqui é
simbólico, indicando plenitude).
O Livro de Tobias
é o mais presente nas celebrações litúrgicas dentre as “novelas bíblicas”. Por
isso, dividiremos seu estudo em duas partes. Assim, na próxima postagem analisaremos
sua leitura semicontínua e seus textos entoados como cânticos.
Breve bibliografia sobre o Livro de Tobias:
NOWELL, Irene. Tobias. in: BROWN,
Raymond E.; FITZMYER, Joseph A.; MURPHY, Roland E. [org.]. Novo Comentário Bíblico São Jerônimo: Antigo
Testamento. São Paulo: Academia Cristã; Paulus, 2007, pp. 1117-1123.
KNAUF,
Ernst Axel. Tobit. in: RÖMER, Thomas; MACCHI, Jean-Daniel;
NIHAN, Christophe [org.]. Antigo
Testamento: História, Escritura e Teologia. 2ª ed. São Paulo: Loyola, 2015,
pp. 766-772.
MELERO, Enrique Cabezudo. Tobias.
in: OPORTO, Santiago Guijarro;
GARCÍA, Miguel Salvador [org.]. Comentário
ao Antigo Testamento I. São Paulo: Ave Maria, 2002, pp. 629-644.
PUERTO, Mercedes Navarro. O Livro de Tobias. in:
LAMADRID, Antonio González et al. História, narrativa, apocalíptica. São
Paulo: Ave-Maria, 2004, pp. 349-366. Coleção: Introdução ao estudo da Bíblia, v. 3B.
Notas:
[1] ALDAZÁBAL, José. A
Mesa da Palavra I: Elenco das Leituras da Missa - Texto e Comentário. São
Paulo: Paulinas, 2007, p. 76.
[2] LECIONÁRIO III: Para as Missas dos Santos, dos Comuns, para
Diversas Necessidades e Votivas. Tradução portuguesa da 2ª edição típica para o
Brasil. São Paulo: Paulus, 1997.
[3] MISSAS de Nossa Senhora. Edições CNBB: Brasília,
2016, p. 198. A outra opção de antífona é At 1,14.
[4] RITUAL DO MATRIMÔNIO. Tradução portuguesa para o Brasil da 2ª edição típica. São Paulo:
Paulus, 2007, pp. 77.79.
[5] RITUAL DE BÊNÇÃOS. Tradução
portuguesa da edição típica para o Brasil. São Paulo: Paulus, 1990, p. 69.
[6] ibid., p. 142.
[7] ibid., p. 160.
[8] ibid., p. 164.
[9] OFÍCIO DIVINO. Liturgia das Horas segundo o Rito Romano. Tradução para o Brasil da segunda
edição típica. São Paulo: Paulus, 1999, vol. I, pp. 415.489.527. A
segunda-feira após a Epifania equivale ao dia 07 de janeiro onde a Epifania é celebrada
no dia 06.
[10] ibid., vol. II, p. 1606; vol. III, p.
1326.
[11] ibid., vol. IV, p. 1323.
Imagens: Wikimedia Commons.
Obrigado pela partilha. Deus abençoe!
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