sexta-feira, 1 de novembro de 2019

História da Comemoração dos Fiéis Defuntos

Espero a ressurreição dos mortos e a vida do mundo que há de vir
(Credo Niceno-Constantinopolitano)

A oração pelos fiéis defuntos remonta ao início da Igreja, não apenas por ocasião do sepultamento, mas também em algumas datas após a morte: no Oriente, segundo o testemunho das Constitutiones Apostolicas (séc. IV), no terceiro, nono e quadragésimo dia após a morte; no Ocidente, sobretudo a partir de Santo Agostinho, no terceiro, sétimo e trigésimo dia [1]. Contudo, a memória mais importante era sempre no aniversário da morte.


Contudo, referimo-nos até aqui à oração pelos mortos compreendida individualmente. Uma comemoração coletiva de todos os fiéis defuntos era desconhecida até o final do século X, embora encontremos anteriormente alguns testemunhos isolados.

A Regula monachorum atribuída a Santo Isidoro de Sevilha (séc. VII) prescreve uma Missa pelos mortos na segunda-feira depois de Pentecostes, provavelmente relacionada à festa de Todos os Santos, que na época era celebrada em algumas igrejas no domingo depois de Pentecostes (costume mantido até hoje nas igrejas de tradição bizantina).

Parece ter havido uma tendência de colocar a memória dos fiéis defuntos próxima de uma grande solenidade: no século X um Missal da região de Arles (França) indicava esta celebração logo depois da oitava da Epifania; em Milão, no século XI, se celebrava os fiéis defuntos no dia seguinte à festa da Dedicação da Catedral (terceiro domingo de outubro).

No início do século IX o Abade beneditino de Fulda (Alemanha), Eigilo, estabeleceu que no dia 17 de dezembro, aniversário da morte de Santo Estúrmio, fundador do mosteiro, além deste santo, se recordassem também os monges falecidos.

Estas iniciativas, porém, eram celebrações locais, sem alcance universal. O verdadeiro “fundador” da comemoração dos fiéis defuntos como a conhecemos hoje é Santo Odilo, Abade do célebre Mosteiro de Cluny (França) de 994 a 1049. Este estabeleceu (provavelmente entre 998 e 1008) que em sua abadia, após as II Vésperas da Solenidade de todos os Santos no dia 01 de novembro, os sinos tocassem de modo fúnebre e se celebrasse um ofício em memória dos defuntos. No dia seguinte, 02 de novembro, os sacerdotes deveriam celebrar a Missa na intenção de todos os fiéis defuntos.

Imagem de Santo Odilo de Cluny na Basílica de Santo Urbano em Troyes (França)

Devido à influência do Mosteiro de Cluny sobre os demais mosteiros da Europa, a celebração espalhou-se rapidamente, extrapolando o ambiente monástico e sendo acolhida por algumas dioceses, primeiramente na França, Inglaterra e Alemanha.

Na Itália esta comemoração chega mais tarde, entre o final do século XII e o início do século XIII. Em Roma é mencionada pela primeira vez pelo Ordo Romanus XIV (início do século XIV) como Anniversarium omnium animarum.

O Ordo Romanus XV (séc. XV) descreve a celebração no tempo do Papa Martinho V (1417-1431): depois das II Vésperas de Todos os Santos, o Papa reveste a capa vermelha [2] e a mitra branca simples e preside um ofício em honra dos defuntos. No dia seguinte (02 de novembro), o Papa assistia à Missa celebrada por um Cardeal. Era costume que nesta Missa não houvesse homilia.

No final do século XV surgiu entre os dominicanos de Valência (Espanha) o costume, conservado até hoje, de o sacerdote celebrar três Missas neste dia [3], à semelhança do Natal. O Papa Bento XIV confirmou oficialmente este costume em 1748, estendendo-o a toda Espanha, Portugal e América Latina. Em 1915, no contexto da Primeira Guerra Mundial, Bento XV estendeu este costume a toda a Igreja (cumpre dizer que este Pontífice havia trabalhado na Nunciatura da Espanha como sacerdote).

Papa Bento XV

São Pio V, no contexto da reforma litúrgica do Concílio de Trento, estabeleceu ainda que no primeiro dia livre de cada mês [4], exceto nos tempos de Advento, Quaresma e Páscoa, as igrejas Catedrais e monásticas celebrassem uma Missa em favor dos defuntos.

Além disso, foi sugerido a todas as igrejas celebrar nas segundas-feiras, dia seguinte ao da Ressurreição, uma Missa pelos defuntos, exceto nos tempos de Quaresma e Páscoa.

A reforma litúrgica do Concílio Vaticano II, conservando várias orações já previstas para este dia, enriquece a celebração com quatro novos prefácios [5] destacando a centralidade da Ressurreição de Cristo e da nossa participação neste mistério, conforme pedido pela Constituição Sacrosanctum Concilium [6].

Portanto, os textos que enfatizavam o tema do juízo, inclusive descrevendo de modo dramático a angústia ante este dia, foram suprimidos ou deslocados para outras celebrações. Por exemplo, a sequência Dies irae, originalmente proposta para as Missas dos defuntos, tornou-se hino da Liturgia das Horas na última semana do Ano Litúrgico.


Notas:
[1] O fundamento para estas datas era bíblico: Cristo ressuscitou dos mortos ao terceiro dia após sua morte; José ordenou um luto de sete dias por seu pai, Jacó (Gn 50,10); e o povo de Israel chorou as mortes de Aarão e de Moisés por trinta dias (Nm 20,29; Dt 34,8).
[2] Na Idade Média era costume que o Papa usasse apenas duas cores: branco para os ofícios solenes e vermelho para os ofícios penitenciais. Por isso se conservou até hoje o costume de o Papa presidir as exéquias dos Cardeais revestido de vermelho.
[3] Missal Romano, Tradução portuguesa para o Brasil da 2ª edição típica, pp. 693-696.
[4] Entenda-se aqui o primeiro dia em que fossem permitidas Missas votivas.
[5] Missal Romano, pp. 462-466. Estes cinco prefácios estão previstos para todas as Missas dos fiéis defuntos.
[6] “O rito das Exéquias deve expressar mais claramente o sentido pascal da morte cristã” (Constituição Sacrosanctum Concilium, n. 81). Embora se mencionem aqui as exéquias, o mesmo princípio vale para a Comemoração dos Fiéis Defuntos.

Fontes:
ADAM, Adolf. O Ano Litúrgico: Sua história e seu significado segundo a renovação litúrgica. São Paulo: Paulinas, 1982, pp. 232-234.

RIGHETTI, Mario. Historia de la Liturgia, v. I: Introducción general; El año litúrgico; El Breviario. Madrid: BAC, 1945, pp. 1004-1008.

SCHUSTER, Cardeal Alfredo Ildefonso. Liber Sacramentorum: Note storiche e liturgiche sul Messale Romano, v. IX: I Santi nel mistero dela Redenzione. Torino-Roma: Marietti, 1932, pp. 84-87.

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