“Espero a ressurreição
dos mortos e a vida do mundo que há de vir” (Credo Niceno-Constantinopolitano).
A oração pelos fiéis defuntos remonta ao início da Igreja,
não apenas por ocasião do sepultamento, mas também em algumas datas após a
morte: no Oriente, segundo o testemunho das Constituições
Apostólicas (século IV), no terceiro, nono e quadragésimo dia após a morte;
no Ocidente, sobretudo a partir de Santo Agostinho, no terceiro, sétimo e
trigésimo dia [1]. Contudo, a memória mais importante era sempre no aniversário
da morte.
Contudo, referimo-nos até aqui à oração pelos mortos
compreendida individualmente. Uma comemoração coletiva de todos os fiéis
defuntos era desconhecida até o final do século X, embora encontremos anteriormente
alguns testemunhos isolados.
A Regula monachorum
atribuída a Santo Isidoro de Sevilha (séc. VII) prescreve uma Missa pelos
mortos na segunda-feira depois de Pentecostes, provavelmente relacionada à
festa de Todos os Santos, que na época era celebrada em algumas igrejas no domingo
depois de Pentecostes (costume mantido até hoje nas Igrejas de tradição bizantina).
Parece ter havido uma tendência de colocar a memória dos
fiéis defuntos próxima de uma grande solenidade: no século X um Missal da
região de Arles (França) indicava essa celebração logo depois da oitava da
Epifania; em Milão, no século XI, se celebrava os fiéis defuntos no dia
seguinte à festa da Dedicação da Catedral (terceiro domingo de outubro).
No início do século IX o Abade beneditino de Fulda
(Alemanha), Eigilo, estabeleceu que no dia 17 de dezembro, aniversário da morte
de Santo Estúrmio, fundador do mosteiro, além deste santo, se recordassem
também os monges falecidos.
Estas iniciativas, porém, eram celebrações locais, sem
alcance universal. O verdadeiro “fundador” da comemoração dos fiéis defuntos
como a conhecemos hoje é Santo Odilo, Abade do célebre Mosteiro de Cluny (França)
de 994 a 1049. Este estabeleceu (provavelmente entre 998 e 1008) que na Abadia de Cluny, após as II Vésperas da Solenidade de todos os Santos no dia 01 de
novembro, os sinos tocassem de modo fúnebre e se celebrasse um ofício em
memória dos defuntos. No dia seguinte, 02 de novembro, os sacerdotes deveriam
celebrar a Missa na intenção de todos os fiéis defuntos.
Santo Odilo de Cluny (Basílica de Santo Urbano em Troyes, França) |
Devido à influência do Mosteiro de Cluny, a celebração espalhou-se rapidamente pelos mosteiros da Europa, logo extrapolando o
ambiente monástico e sendo acolhida por algumas Dioceses, primeiramente na
França, Inglaterra e Alemanha.
Na Itália esta comemoração chega mais tarde, entre o final
do século XII e o início do século XIII. Em Roma é mencionada pela primeira vez
pelo Ordo Romanus XIV (início do
século XIV) como Anniversarium omnium
animarum.
O Ordo Romanus XV
(séc. XV) descreve a celebração no tempo do Papa Martinho V (1417-1431): depois
das II Vésperas de Todos os Santos, o Papa revestia a capa vermelha [2] e a
mitra branca simples e presidia um ofício em honra dos defuntos. No dia seguinte
(02 de novembro) o Papa assistia à Missa celebrada por um Cardeal, durante a qual tradicionalmente não havia homilia.
No final do século XV surgiu entre os dominicanos de
Valência (Espanha) o costume, conservado até hoje, da celebração de três Missas neste dia [3], à semelhança do Natal. O Papa Bento XIV confirmou oficialmente
este costume em 1748, estendendo-o a toda Espanha, Portugal e América Latina. Em
1915, no contexto da Primeira Guerra Mundial, Bento XV (que havia trabalhado na Nunciatura da Espanha como sacerdote) estendeu este costume a
toda a Igreja de Rito Romano.
Papa Bento XV |
São Pio V, no contexto da reforma litúrgica do Concílio de
Trento, estabeleceu ainda que no primeiro dia livre de cada mês [4], exceto nos
tempos de Advento, Quaresma e Páscoa, nas Catedrais e nas igrejas dos mosteiros se celebrasse uma Missa na intenção dos defuntos.
Além disso, foi sugerido a todas as igrejas celebrar nas
segundas-feiras, dia seguinte ao da Ressurreição, uma Missa pelos defuntos,
exceto nos Rempos da Quaresma e da Páscoa.
A reforma litúrgica do Concílio Vaticano II, conservando várias
orações já previstas para este dia, enriqueceu a celebração com quatro novos
prefácios [5], destacando a centralidade da Ressurreição de Cristo e da nossa
participação neste mistério, conforme pedido pela Constituição Sacrosanctum Concilium [6].
Portanto, os textos que enfatizavam o tema do juízo, inclusive
descrevendo de modo dramático a angústia ante este dia, foram suprimidos ou
deslocados para outras celebrações. Por exemplo, a sequência Dies irae, originalmente proposta para as Missas dos defuntos, tornou-se hino da Liturgia das Horas na última
semana do Ano Litúrgico.
Notas:
[1] O fundamento para estas datas era bíblico: Cristo
ressuscitou dos mortos ao terceiro dia após sua morte; José ordenou um luto de
sete dias por seu pai, Jacó (Gn 50,10); e o povo de Israel chorou as mortes de Aarão
e de Moisés por trinta dias (Nm 20,29; Dt 34,8).
[2] Na Idade Média era costume que o Papa usasse apenas duas
cores: branco para os ofícios solenes e vermelho para os ofícios penitenciais.
Por isso se conservou até hoje o costume de o Papa presidir as exéquias dos
Cardeais revestido de vermelho.
[3] Missal Romano,
Tradução portuguesa para o Brasil da 2ª edição típica, pp. 693-696.
[4] Entenda-se aqui o primeiro dia em que fossem permitidas
Missas votivas.
[5] Missal Romano,
pp. 462-466. Estes cinco prefácios estão previstos para todas as Missas dos fiéis
defuntos.
[6] “O rito das Exéquias deve expressar mais claramente o
sentido pascal da morte cristã” (Constituição Sacrosanctum Concilium, n. 81). Embora se mencionem aqui as
exéquias, o mesmo princípio vale para a Comemoração dos Fiéis Defuntos.
Fontes:
ADAM, Adolf. O Ano
Litúrgico: Sua história e seu significado segundo a renovação litúrgica.
São Paulo: Paulinas, 1982, pp. 232-234.
RIGHETTI, Mario. Historia
de la Liturgia, v. I: Introducción general; El año litúrgico; El Breviario.
Madrid: BAC, 1945, pp. 1004-1008.
SCHUSTER, Cardeal Alfredo Ildefonso. Liber Sacramentorum: Note storiche e liturgiche sul Messale Romano, v.
IX: I Santi nel mistero dela Redenzione. Torino-Roma: Marietti, 1932, pp. 84-87.
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