terça-feira, 24 de maio de 2022

Sequência da Ascensão: Summi triumphum Regis

“Contemplamos, ó Senhor, vosso cortejo que desfila: é a entrada do meu Deus, do meu Rei, no santuário!” (Sl 67,25).

Como vimos em postagens anteriores aqui em nosso blog, entre os séculos X e XVI todas as principais celebrações do Ano Litúrgico possuíam uma ou mais sequências, composições poéticas entoadas antes do Evangelho da Missa que sintetizavam o mistério celebrado [1].

Nesta postagem, gostaríamos de destacar uma das sequências da Ascensão do Senhor (In Ascensione Domini), Solenidade celebrada 40 dias após a Páscoa, na quinta-feira da VI semana (ou transferida para o domingo seguinte, como é o caso no Brasil).

Para saber mais, confira nossa postagem sobre a história da Solenidade da Ascensão.

Ascensão do Senhor ao céu, circundado por anjos

A composição que propomos intitula-se Summi triumphum Regis (Ao triunfo do Rei supremo), atribuída a Notker Balbulus (†912), isto é, Notker “o Gago”, monge beneditino da Abadia de São Galo (Sankt Gallen), na Suíça, o qual teria sido beatificado em 1512.

Aqui em nosso blog já destacamos duas sequências compiladas por Notker entre o final do século IX e o início do século X: Sancti Baptistae, Christi praeconis (Natividade de São João Batista) e Petre, summe Christi pastor (São Pedro e São Paulo).

A seguir apresentamos a sequência Summi triumphum Regis, a 13ª das 38 sequências compiladas no Liber Sequentiarum de Notker, em seu texto original (em latim), seguida de uma tradução nossa bastante livre e algumas notas destacando alguns aspectos do texto.

Mais do que poesia, a composição aproxima-se mais da prosa: não há rimas e a divisão em estrofes não é bem clara. Propomos aqui uma divisão em oito estrofes, a primeira e a última com três versos e as demais com dois versos.

Sequentia: Summi triumphum Regis

Summi triumphum Regis prosequamur laude,
Qui caeli, qui terrae regit sceptra, inferni iure domito,
Qui sese pro nobis redimendis permagnum dedit pretium.

Huic nomen exstat conveniens Idithum,
Nam transilivit omnes strenue Montes colliculosque Bethel.

Saltum de caelo dedit in virginalem ventrem, inde in pelagus saeculi,
Postquam illud suo mitigavit potentatu, taetras Phlegethontis assiliit tenebras.

Principis illius disturbato imperio,
Maniplis plurimis inde erutis mundum illustrat suo iubare.

Captivitatemque detentam inibi victor duxit secum,
Et redivivum iam suis se praebuit servis et amicis.

Denique saltum dederat hodie maximum, nubes polosque cursu praepeti transiens,
Celebret ergo populus hunc diem credulus, cuius morbida Idithum corpora in semetipso altis sedibus caeli invexit Dei Filius.

Et tremens iudicem exspectet affuturum, ut duo angeli fratres docuerunt:
«Qui Iesus a vobis assumptus est in caelum, iterum veniet, ut vidistis eum».

Nam Idithum nostrum vocibus sedulis omnes imploremus,
Ut a dextris Patris qui sedet, Spiritum mittat nobis Sanctum.
In fine saeculi ipse quoque semper sit nobiscum [2].

Relevo representando Notker Balbulus
(Porta da Catedral de St Gallen, Suíça)


Sequência: Ao triunfo do Rei supremo

Ao triunfo do Rei supremo prossigamos o louvor,
Que rege os cetros da terra e do céu e subjugou a autoridade do inferno,
Que se entregou pela nossa redenção pagando um alto preço.

O nome apropriado a Ele é Iditun,
Porque sobre as montanhas e colinas de Betel saltou vigorosamente.

Do céu saltou a um ventre virginal, e daí ao mar do mundo.
Depois de tê-lo pacificado com o seu poder, saltou para as terríveis trevas do Flegetonte.

Destruída a soberania daquele império,
E tendo resgatado dali muitos batalhões, ilumina o mundo com sua luz.

Vitorioso, levou consigo os cativos que ali estavam detidos,
E redivivo apresentou-se aos seus servos e amigos.

Finalmente, deu hoje o máximo salto, passando sobre as nuvens do céu em grande velocidade.
Celebre, pois, este dia seu povo fiel, cujos corpos mortais, Iditun, o Filho de Deus, conduziu em Si mesmo aos tronos do céu.

E, com tremor, esperam o juízo futuro, como os dois anjos ensinaram:
“Jesus, que por vós foi elevado ao céu, virá novamente, assim como O vistes”.

Ao nosso Iditun imploremos com vozes sinceras,
A Ele, que a direita do Pai está sentado, para que envie a nós seu Santo Espírito,
E até o fim do mundo permaneça sempre conosco.

Ascensão do Senhor
(Detalhe dos "Mistérios da Paixão" de Antonio Campi)

Breve comentário:

a) 1ª estrofe:

A 1ª estrofe, como de costume nos hinos e sequências, serve de introdução à composição, geralmente, como aqui, através de um convite ao louvor: “Summi triumphum Regis prosequamur laude” (Ao triunfo do Rei supremo prossigamos o louvor).

A estrofe prossegue celebrando a autoridade de Cristo sobre os céus, a terra e o inferno, expressão que nos remete a Fl 2,10: “Ao nome de Jesus, todo joelho se dobre no céu, na terra e abaixo da terra”.

O último verso, por sua vez, remete ao Mistério Pascal, isto é, à Morte-Ressurreição de Cristo, na qual o Senhor ofereceu a Si mesmo em sacrifício para a nossa salvação, tema que será bastante desenvolvido na Carta aos Hebreus: “[Entrou] no próprio céu, a fim de comparecer, agora, na presença de Deus em nosso favor” (Hb 9,24). O “alto preço” do seu sacrifício, por sua vez, é recordado por Paulo em 1Cor 6,19-20.

b) Estrofes 2-5:

A 2ª estrofe começa referindo-se a Cristo como “Iditun”, título que será retomado nas estrofes 6 e 8. Esse nome se refere a um dos coros dos levitas, “os filhos de Iditun”, encarregados de entoar os louvores ao Senhor (1Cr 25,3) e de cuidar da porta do Templo (1Cr 16,42) [3].

Cristo é o “nosso Iditun” porque toda a sua vida, desde a Encarnação até o Mistério Pascal, foi um grande louvor ao Pai (cf. Jo 4,34; 17,4) e porque, em sua Ascensão, Ele abriu para nós as portas do paraíso, como bem sintetiza o Prefácio dos Domingos do Tempo Comum IV, intitulado “A história da salvação”:

“Nascendo na condição humana, renovou inteiramente a humanidade. Sofrendo a Paixão, apagou nossos pecados. Ressurgindo glorioso da morte, trouxe-nos a vida eterna. Subindo triunfante ao céu, abriu-nos as portas da eternidade” [4].

Davi com os coros dos levitas, incluindo Iditun

Ainda na 2ª estrofe diz-se que Cristo “saltou sobre as montanhas”, expressão que parece associá-lo tanto ao “amado” de Ct 2,8 quanto ao mensageiro da boa-nova anunciado pelos profetas (Is 52,7; Na 2,1).

A referência a Betel, por sua vez, pelo significado do nome (casa de Deus) pode remeter ao Templo de Jerusalém: a entrada de Jesus no “santuário celeste” em sua Ascensão é prefigurada pela entronização do Senhor no Templo (cf., por exemplo, 1Rs 8,10-13). Vale lembrar que a Ascensão é situada no Monte das Oliveiras (At 1,12), que está justamente diante do Monte do Templo em Jerusalém.

Betel, além disso, recorda-nos o “sonho de Jacó” em Gn 28, no qual o patriarca contempla uma escada entre o céu e a terra, que pode ser lida como “profecia” do admirável intercâmbio de dons entre o céu e a terra que acontece da Encarnação à Ascensão do Senhor.

Para aprofundar os paralelos entre o Antigo e o Novo Testamento, confira nossa postagem sobre a sequência pascal Zyma vetus expurgetur.

c) Estrofes 3-5:

As estrofes 3-5 formam um grande “díptico”, semelhante ao hino cristológico de Fl 2,6-11, celebrando o duplo movimento de Jesus: sua katábasis (rebaixamento) ou kenosis (esvaziamento) da Encarnação até a Morte e sua anábasis (elevação ou exaltação), na Ressurreição-Ascensão.

Particularmente a 3ª estrofe, que narra os vários “saltos” de Jesus, é inspirada em um trecho da Homilia n. 29 sobre os Evangelhos de São Gregório Magno, Papa (†604): “De coelo venit in uterum, de utero venit in praesepe, de praesepe venit in crucem, de cruce venit in sepulcrum, de sepulcro rediit in coelum” [5].

Cristo “salta” do céu para o ventre da Virgem Maria (Encarnação), daí para o “mar do mundo” (Nascimento), o qual “pacifica com seu poder” (vida terrena), e daí para a “mansão dos mortos” (Morte e Sepultamento).

A “mansão dos mortos” (Sheol ou Hades) à qual desce Cristo é referida na sequência como “Flegetonte”. Este é um dos rios do Hades na mitologia grega, posteriormente acolhidos na poesia cristã (como, por exemplo, no Inferno de Dante Alighieri), que simbolizavam diferentes aspectos da morte.

O Flegetonte ou Piriflegetonte (Πυριφλεγέθων, “o de chamas ardentes”) era o rio de fogo, associado portanto ao castigo dos pecadores e ao aspecto mais “terrível” da morte, vencida por Cristo em seu Mistério Pascal.


A descida de Cristo ao Hades (Viktor Vasnetsov)

Desse lugar de “tétricas trevas” (taetras tenebras), com efeito, nosso Senhor resgatou os justos do Antigo Testamento, “tema” celebrado pelas estrofes 4-5.

Para saber mais sobre esse mistério, confira nossas postagens sobre a história do Sábado Santo e sobre o ícone bizantino da Ressurreição.

A sequência remete-nos aqui ao Salmo 67 (68): “Vós subistes para o alto e levastes os cativos, os homens prisioneiros recebestes de presente” (v. 19), versículo comentado pelo autor da Carta aos Efésios: “Ele subiu”! Que significa isso, senão que Ele desceu também às profundezas da terra. Aquele que desceu é o mesmo que subiu mais alto do que todos os céus, a fim de encher o universo” (Ef 4,9-10).

A 5ª estrofe conclui recordando a aparição de Jesus Ressuscitado aos seus “servos e amigos”: “Já não vos chamo servos, mas amigos” (Jo 15,15). Já no querigma, isto é, no anúncio fundamental da Igreja primitiva, as aparições aos Apóstolos eram evocadas como testemunho da verdade da Ressurreição, assim como o sepultamento era “prova” da Morte do Senhor:

“Cristo morreu por nossos pecados, segundo as Escrituras, e foi sepultadoressuscitou ao terceiro dia, segundo as Escrituras, e apareceu a Cefas e depois aos Doze” (1Cor 15,3-5).

d) Estrofes 6-8:

Feito esse percurso pela vida de Cristo, as estrofes 6-8 celebram o mistério propriamente dito da festa, isto é, a Ascensão do Senhor aos céus.

A 6ª estrofe começa destacando o “hoje” (hodie) desse mistério. Segundo o Catecismo da Igreja Católica, “a Liturgia cristã não se limita a recordar os acontecimentos que nos salvaram: atualiza-os, torna-os presentes” (n. 1104).

“Quando a Igreja celebra o mistério de Cristo, há uma palavra que ritma a sua oração: Hoje!, como um eco da oração que lhe ensinou o seu Senhor (cf. Mt 6,11) e do chamamento do Espírito Santo (cf. Hb 3,7–4,11; Sl 94/95,7-8)” (ibid., n. 1165).

Ascensão do Senhor (Gustave Doré)

Também o Prefácio da Ascensão I atesta esse “hoje”: “Vencendo o pecado e a morte, vosso Filho Jesus, Rei da Glória, subiu hoje ante os anjos maravilhados ao mais alto céu” [6].

Segue-se, ainda na 6ª estrofe, um novo convite ao louvor, pois o Filho de Deus conduziu em Si mesmo nossos corpos mortais aos tronos do céu, como bem sintetiza o Communicantes próprio da Ascensão (Oração Eucarística I):

“Em comunhão com toda a Igreja celebramos [ó Pai] o dia santo em que o vosso Filho único elevou à glória da vossa direita a fragilidade de nossa carne” [7].

Subindo ao céu, Jesus Cristo, verdadeiro Deus e verdadeiro homem, elevou a nossa humanidade à glória divina. Assim, podemos exclamar com a coleta (oração do dia) dessa Solenidade: “Ó Deus todo-poderoso, a Ascensão do vosso Filho já é nossa vitória!” [8].

A 7ª estrofe, por sua vez, recorda-nos a “tensão escatológica” entre o “hoje” do mistério celebrado e sua plena realização na parusia, isto é, na última vinda de nosso Senhor. Assim, nós, o “povo fiel”, esperamos ainda o “juízo futuro”, como atestaram os anjos aos Apóstolos na Ascensão (At 1,10-11).

Por fim, após essa grande anamnese (memorial) da história da salvação, a última estrofe da sequência traz uma epiclese (invocação ou súplica), composta por dois pedidos a Cristo: que Ele, sentado à direita do Pai (Mc 14,62; Mt 26,64), envie-nos o Espírito Santo (Jo 14,15-17.26; 16,7-15), e que, conforme prometeu aos Apóstolos, “permaneça sempre conosco” (Mt 28,20).

Ascensão do Senhor (Andrea di Bonaiuto)

Notas:

[1] A reforma litúrgica do Concílio de Trento (século XVI) reduziu as sequências a apenas quatro: Victimae paschali laudes (Domingo de Páscoa); Veni, Sancte Spiritus (Pentecostes); Lauda Sion (Corpus Christi); e Dies irae (Missas dos defuntos). Em 1727 seria acrescentada Stabat Mater dolorosa (Memória de Nossa Senhora das Dores).
Atualmente o Dies irae é o hino da Liturgia das Horas para a última semana do Tempo Comum, enquanto as outras quatro conservam-se como sequências para a Missa.

[2] NOTKER Balbulus. Liber Sequentiarum, cap. XIII: In Ascensione Dominiin: MIGNE, J. P. Patrologiae: Cursus Completus, Series Latina, v. 131, p. 1012.

[3] cf. McKENZIE, John Lawrence. Dicionário Bíblico. São Paulo: Paulus, 2013, p. 394.

[4] MISSAL ROMANO. Tradução portuguesa da 2ª edição típica para o Brasil. São Paulo: Paulus, 1991, p. 431.

[5] cf. THESAURUS HYMNOLOGICUS sive Hymnorum, canticorum, sequentiarum circa annum MD usitatarum collectio amplissima. Tomus Secundus: Sequentiae, cantica, antiphonae. Lipsiae, 1855, pp. 15-16.

[6] MISSAL ROMANO, p. 426.

[7] ibid., p. 471.

[8] ibid., p. 313.

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