“Maria
é elevada ao céu, alegram-se os coros dos anjos”.
Como vimos em postagens anteriores aqui em nosso blog, entre
os séculos X e XVI as principais celebrações do Ano Litúrgico eram enriquecidas
com uma ou mais sequências, composições poéticas a serem entoadas antes do
Evangelho da Missa que sintetizavam o mistério celebrado [1].
No início do século X, Notker Balbulus (†912),
isto é, Notker “o Gago”, monge beneditino da Abadia de São Galo (Sankt Gallen),
na Suíça, compilou 38 composições em seu Liber
Sequentiarum [2].
Nesta postagem gostaríamos de apresentar a 19ª sequência
compilada por Notker: Congaudent angelorum chori (“Alegram-se os
coros dos anjos”), para a Solenidade da Assunção da Bem-aventurada Virgem
Maria, celebrada no dia 15 de agosto (ou transferida para o domingo seguinte, como no caso do Brasil).
Para saber mais, confira nossa postagem sobre a história da Solenidade da Assunção de Maria.
Maria, assunta aos céus, é acolhida pelos anjos (Fra Angelico, detalhe) |
Propomos a seguir o texto original da sequência (em latim) e
uma tradução nossa bastante livre (mais uma “adaptação” do que uma “tradução”),
além de um breve comentário sobre o texto.
Assim como as demais sequências compiladas por Notker, não
há rimas e a divisão em estrofes não está clara. A publicamos aqui dividida em
10 estrofes com dois ou três versos.
Sequentia: Congaudent angelorum chori
De Assumptione Beatae Virginis Mariae
1. Congaudent angelorum chori gloriosae virgini,
Quae sine virili commixtione genuit
Filium, qui suo mundum cruore medicat.
2. Nam ipsa laetatur, quo caeli iam conspicatur principem,
In terris cui quondam sugendas virgo mamillas praebuit.
3. Quam celebris angelis Maria, Iesu mater, creditur,
Qui filii illius débitos se cognoscunt famulos.
4. Qua gloria in caelis ista virgo colitur,
Quae Domino caeli praebuit hospitium sui sanctissimi
corporis.
5. Quam splendida polo stella maris rutilat,
quae omnium lumen astrorum et hominum atque spirituum
genuit!
6. Te, caeli regina, haec plebicula piis concelebrat
mentibus;
Te cantu melodo super aethera una cum angelis elevat.
7. Te libri, virgo, concinunt,
prophetarum chorus iubilat sacerdotum,
apostoli Christique martyres praedicant.
8. Te plebes sexus sequitur utriusque
vitam diligens virginalem,
caelicolas in castimonia aemulans.
9. Ecclesia ergo cuncta te cordibus teque carminibus celebrat;
Tibi suam manifestat devotionem precatu te supplici implorans, Maria,
10. Ut sibi auxilium circa Christum Dominum
esse digneris per aevum [3].
Sequência: Alegram-se
os coros dos anjos
Assunção da Bem-aventurada Virgem Maria
1. Alegram-se os coros dos anjos com a Virgem gloriosa,
Que sem relação com homem deu à luz seu Filho,
O qual cura o mundo com o seu sangue.
2. Ela agora se alegra por ver o Príncipe do céu,
Que na terra amamentou em seu seio virginal.
3. Com que confiança os anjos celebram Maria, a Mãe de
Jesus,
Reconhecendo-se servos do seu Filho.
4. Com que glória a Virgem é venerada nos céus,
Ela que abrigou o Senhor dos céus em seu santíssimo corpo.
5. Com que esplendor brilha a estrela do mar,
Que deu à luz a Luz dos astros, dos homens e espíritos.
6. A ti, Rainha dos céus, este humilde povo celebra com
mente piedosa;
E, com os anjos, eleva um canto melodioso rumo ao céu.
7. A ti, Virgem, cantam os livros da Escritura,
Alegra-se o coro dos profetas,
Proclamam os Apóstolos e mártires de Cristo.
8. A ti seguem homens e mulheres
Que amam a vida virginal,
Imitando a castidade celeste.
9. A Igreja inteira te leva no coração e te celebra em canções;
Manifesta sua devoção a ti, suplicando suas preces, ó Maria.
10. Para que te digneis eternamente
Interceder por nós a Cristo Senhor.
Comentário:
a) Estrofes 1 e 2:
A sequência começa com uma expressão que nos remete ao
tradicional versículo de aclamação ao Evangelho da Solenidade da Assunção, que
tomamos como epígrafe dessa postagem: “Maria é elevada ao céu, alegram-se os
coros dos anjos”.
O texto da sequência diz: “Alegram-se os coros dos anjos com
a Virgem gloriosa”. É uma afirmação que serve aqui como “convite ao louvor”: somos
convidados a nos alegrar juntamente com os anjos pelo mistério da Assunção de
Maria.
A Assunção, com efeito, foi proclamada como dogma de fé pelo Papa Pio XII em 1950, cem anos após a proclamação do dogma da Imaculada Conceição (1854). Esse dois dogmas marianos modernos nos falam de certa forma da origem e do destino da pessoa humana e da Igreja, que tem Maria como modelo.
Nos primeiros séculos, por sua vez, as duas verdades de fé fundamentais a respeito de Maria eram sua maternidade divina e sua virgindade perpétua, referenciadas diversas vezes nas primeiras estrofes da nossa sequência.
A primeira estrofe, com efeito, recorda como a “Virgem gloriosa”, deu à luz seu Filho “sem relação com homem”, enquanto a segunda estrofe recorda como ela “o amamentou em seu seio virginal”.
Na primeira estrofe há ainda uma referência ao Mistério Pascal de Cristo, quando o texto recorda que Ele “cura o mundo com o seu sangue derramado”. Toda celebração, com efeito, é celebração do mistério de Cristo, particularmente da sua Morte-Ressurreição. Mesmo quando celebramos Maria e os santos, os celebramos enquanto unidos a Cristo.
Dormição e Assunção de Maria (Fra Angelico) |
b) Estrofes 3 e 4:
As estrofes 3 e 4 da sequência aprofundam o “motivo do
louvor” apresentado no primeiro verso, convidando-nos a imaginar a alegria com que os
anjos acolheram a Virgem-Mãe nos céus.
A 3ª estrofe refere-se aos anjos como “servos” do Filho. Uma
tradução alternativa do texto latino aplicaria o título de “serva” à própria “Mãe
de Jesus”, em sintonia com quanto ela mesma declara ao anjo na Anunciação: “Eis
aqui a serva do Senhor...” (Lc 1,38).
A 4ª estrofe, por sua vez, celebra Maria como “templo do
Senhor”, recordando como ela “abrigou o Senhor dos céus em seu santíssimo corpo”.
c) Estrofes 5 e 6:
A 5ª estrofe está toda relacionada ao simbolismo da luz.
Maria é referida aqui como “estrela do mar” (stella maris), título que
lhe é atribuído desde os séculos VIII-IX, indicando-a como aquela que aponta o
caminho, que é Cristo (Jo 14,6): “Fazei tudo o que Ele vos disser” (Jo
2,5).
O Cristo a quem ela “deu à luz”, por sua vez, é referido aqui como “Luz dos astros” (isto é, de toda a criação), “dos homens” e “dos espíritos” (dos anjos).
A 6ª estrofe, por sua vez, convida a Igreja - referida como “humilde povo” - a unir-se ao canto dos anjos em honra da “Rainha dos céus” (Caeli Regina), celebrando-a “com mente piedosa”.
d) Estrofes 7 e 8:
As estrofes 7 e 8 prosseguem celebrando o único canto entoado
pela Igreja peregrina sobre a terra e pela Igreja celeste em honra da
Virgem-Mãe.
A 7ª estrofe une ao louvor os coros dos santos,
particularmente os Profetas, Apóstolos e Mártires. A 8ª estrofe, em
contrapartida, fala dos homens e mulheres que imitam Maria na vida virginal,
vivendo já a “castidade celeste” (cf. Mt 22,30 e paralelos).
Essa estrofe poderia referir-se tanto aos santos (Santas
Virgens e Santos Religiosos) quanto aos consagrados que ainda peregrinam sobre a
terra (vale lembrar que Notker, compilador do hino, era um monge beneditino).
e) Estrofes 9 e 10:
Por fim, a 9ª estrofe volta a referir-se à Igreja que “leva
Maria no coração” e a “celebra com hinos e cânticos”, ao mesmo tempo que
suplica sua intercessão.
A “súplica” propriamente dita é expressa nos dois versos que
compõem a última estrofe: que Maria interceda eternamente por nós junto ao Cristo
Senhor.
Notas:
[1] A reforma litúrgica do Concílio de Trento (século XVI) infelizmente
reduziu as sequências a apenas quatro: Victimae paschali laudes (Domingo
de Páscoa); Veni, Sancte Spiritus (Pentecostes); Lauda Sion
(Corpus Christi); e Dies irae (Missas dos defuntos). Em 1727 seria
acrescentada a sequência Stabat Mater dolorosa (Memória de Nossa Senhora
das Dores).
A reforma litúrgica do Concílio Vaticano II transformou o Dies irae em hino da Liturgia das Horas para
a última semana do Tempo Comum, conservando as outras quatro sequências para a
Missa.
[2] Já falamos aqui em nosso blog sobre quatro das
sequências compiladas por Notker:
Sancti Baptistae, Christi praeconis (Natividade de São João Batista);
Petre, summe Christi pastor (São Pedro e São Paulo);
Summi triumphum Regis
(Ascensão do Senhor);
Outras sequências apresentadas aqui no blog foram:
Psallite regi nostro (Martírio de São João Batista), atribuída a Gottschalk de Aachen (séc. XI);
Ave Maria, Virgo serena (Anunciação), composição anônima do século XI;
Zyma vetus expurgetur (Páscoa), atribuída a Adão de São Vítor (séc. XII);
Decet huius cunctis horis (Visitação de Maria), atribuída a Johann von Jenstein (séc. XIV).
[3] NOTKER Balbulus. Liber
Sequentiarum, cap. XIX: In Assumptione Sanctae Mariae. in: MIGNE, J. P. Patrologiae: Cursus Completus, Series Latina,
v. 131, pp. 1015-1016.
THESAURUS HYMNOLOGICUS sive
Hymnorum, canticorum, sequentiarum circa annum MD usitatarum collectio
amplissima. Tomus Secundus: Sequentiae, cantica, antiphonae. Lipsiae, 1855,
pp. 21-22.
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