“Canta de alegria,
cidade de Sião; rejubila, povo de Israel! O Senhor, teu Deus, está no meio de ti!” (Sf 3,14.17).
Há um ano publicamos aqui em nosso blog um breve histórico
da Festa da Visitação da Bem-aventurada Virgem Maria (Visitatio
Beatae Mariae Virginis), celebrada pela
Igreja de Rito Romano no dia 31 de maio.
Como vimos, um dos grandes promotores da Festa foi Johann von Jenstein (†1400), Arcebispo de
Praga, no então Reino da Boêmia (atual República Tcheca), que a teria celebrado
em sua diocese no ano de 1386.
A Johann von Jenstein (em tcheco, Jan z Jenštejna) atribuem-se
ao menos três composições que posteriormente seriam acolhidas como sequências em
algumas regiões vizinhas, tanto para a própria Festa quanto para sua Oitava: Ave
Verbi Dei parens, Decet huius cunctis horis e Illibata mente sana.
Visitação - Anônimo do século XIV Mesmo século da composição da sequência |
As sequências, composições poéticas a serem entoadas antes do
Evangelho na Missa, tornaram-se muito populares no Rito Romano a partir dos
séculos IX e X, até que, infelizmente, a reforma litúrgica do Concílio de
Trento (séc. XVI) as reduziu a apenas quatro [1].
Nesta postagem gostaríamos de apresentar uma das sequências
compostas por Johann von Jenstein no século XIV: Decet huius cunctis
horis, ou, em português, “Convém fazer memória”.
O poema está dividido em sete estrofes, as cinco primeiras
com seis versos e as duas últimas com oito versos. Os breves versos, de sete ou
oito sílabas, compõem rimas tanto emparelhadas quanto intercaladas (AAC - BBC).
Reproduzimos a seguir o texto original da sequência, em
latim, seguido de uma tradução nossa bastante livre (mais uma “adaptação” que
uma “tradução”, uma vez que o original possui várias “licenças poéticas”) e um
breve comentário sobre o texto:
Sequentia de Visitatione Beatae Mariae Virginis:
Decet
huius cunctis horis
Festi voce
dulcioris
Facere memoriam;
Nec indignum sed
benignum
Voce, corde, dare
signum
Mariae in gloriam.
2. Innovemus mente
sana,
Mater quod petit
montana
Salutare gravidam;
Paranympho
comitata,
Fuerat quo
salutata,
Senem mulcet
pavidam.
3. Rem miratur sed
matrona:
«Unde» inquit
«tanta dona
Mihi dantur hodie,
Ad me quod veniret illa
Mater Dei et ancilla,
Sceptrum omnis
gloriae?».
4. Gaudet clausus
sua matre,
Sentit prolem sine
patre,
Agnum Dei
praedicat;
Erit magnus infans,
rite:
Regem caeli, Agnum
vitae
Clausus plausu indicat.
5. Nequit senex immorari,
Rapit manus manu
pari
Et nimis celeriter;
Exsultabat modo
miro,
Circumplexa hanc in
gyro
Salutando dulciter.
6. Clamat senex
voce clara,
Amplexata tot
praeclara
Insignia Deo cara
Voce pandens uberi:
«Salve, inter
mulieres
Te respexit caeli
heres,
Meruisti, quod
videres
Casti fructum
uteri».
7. Illa sed
repudiavit
Laudem, Deo assignavit,
Quando supplex
decantavit
Concinnens «Magnificat».
Clemens virgo atque
pia,
Tu nos fove, o
Maria,
Partus namque tis
nos quia
Sola spes vivificat
[2].
Sequência da
Visitação da Virgem Maria:
“Convém fazer memória”
1. Convém fazer memória
Desta festa a cada
hora
Com doce voz;
Não é indigno, mas
benigno
Com a voz e o
coração cantar
Em honra de Maria.
2. Com mente sã celebremos
A Mãe que atravessa
as montanhas
Para saudar a
mulher grávida;
Acompanhada pelo
noivo,
Ela acalma a idosa
espantada,
Por quem fora
saudada.
3. Realmente admirada, diz a senhora:
“Donde me vem,
hoje,
Tão grande
presente:
Vir a mim aquela
que é
Mãe de Deus e serva,
Cetro de toda a
glória?”.
4. Alegra-se [João] no ventre da
mãe,
Percebe o Filho sem
pai [terreno],
Proclama o Cordeiro
de Deus:
“Esse Menino será
grande”;
Em sua alegria
indica
O Rei dos céus, o
Cordeiro da vida.
5. A idosa não pode esperar,
Rapidamente toma a mão [da Virgem]
Em suas mãos;
E exulta, maravilhada,
Acolhendo-a em um abraço
E saudando-a docemente.
6. A idosa exclama com voz clara,
Que se espalha pelo
peito,
Abraçando-a,
proclama
Os brilhantes
sinais de Deus:
“Salve! Entre as
mulheres,
O herdeiro do céu
olhou para ti;
Mereceste
contemplar
O casto fruto do
teu ventre”.
7. Mas ela recusa a glória,
Atribuindo o louvor
a Deus,
Quando humildemente
cantou,
Harmoniosamente o “Magnificat”.
Virgem clemente e
piedosa,
Protege-nos, ó
Maria,
Pois em tua prole
está
A única esperança
que dá vida.
Confira duas versões da sequência (em latim):
Comentário:
A 1ª estrofe serve de introdução ao poema, com uma
espécie de “justificativa” do louvor em honra da Virgem Maria: “Decet...
facere memoriam”, “Convém... fazer memória”. Este verso remete-nos ao início
do Salmo 64: “Te decet hymnus, Deus, in Sion...”, “Ó Senhor, convém
cantar vosso louvor com um hino em Sião!” (v. 2).
Na 2ª estrofe, por sua vez, se apresenta o “motivo” do louvor: a Mãe de Deus que atravessa as montanhas (cf. Lc 1,39) para saudar sua parente Isabel, que estava grávida.
O primeiro verso dessa estrofe nos exorta a “celebrar com mente sã” este mistério. O texto latino utiliza o verbo “innovare” (“Innovemus mente sana”), “renovar”: com efeito, a celebração litúrgica é “atualização” do mistério celebrado. Celebrar com “mente sana”, por sua vez, significa participar da celebração de maneira consciente (cf. Constituição Sacrosanctum Concilium, n. 11).
Visitação (Anônimo do século XV) Destacando Jesus e João Batista no ventre das mães |
A segunda parte da estrofe atesta a presença do “paranympho”
que acompanha Maria, termo que significa “padrinho de casamento”, mas que aqui
remete ao “noivo”: José. O relato lucano da Visitação (Lc 1,39-45) não o
menciona, embora este seja destacado no por Mateus (Mt 1,18-25).
Inclusive algumas traduções da nossa sequência interpretam o
5º verso dessa estrofe (“Fuerat quo salutata”) em alusão a José, traduzindo-o
como: “por quem fora recebida” (cf. Mt 1,24).
A partir da 3ª estrofe se passa a narrar o encontro
entre Maria e Isabel, primeiramente com uma paráfrase da exclamação desta em Lc
1,43: “Como posso merecer que a mãe do meu Senhor me venha visitar?”. Maria é
invocada aqui como “Mãe de Deus e serva” (“Mater Dei et ancilla”) e, em
algumas versões da sequência, como aquela que porta o “cetro da glória” do
Altíssimo, isto é, o Cristo que carrega em seu ventre: “Sceptrum tenens
gloriae” (cf. Hb 1,3; Ap 12,5).
A 4ª estrofe é toda dedicada a João Batista (cf.
Lc 1,41.44), embora não seja mencionado seu nome no texto original em
latim. Mesmo “clausus sua matre”, “fechado no ventre de sua mãe”, João
se alegra (“gaudet”), “aplaude” (“plausu”), proclamando desde já
Cristo como o “Cordeiro de Deus” (“Agnum Dei praedicat”).
Se a 4ª estrofe foi dedicada a João, a 5ª estrofe é
dedicada a Isabel, descrevendo de maneira poética sua reação à visita de Maria:
toma a mão da Virgem entre suas mãos (“Rapit manus manu”), gesto que
exprime confiança; e, em seguida, a envolve em um abraço (“Circumplexa hanc
in gyro”), quase que “dançando” de alegria.
A 6ª estrofe prossegue com a reação de Isabel, desta
vez parafraseando outra parte da sua saudação: “Bendita és tu entre as mulheres
e bendito é o fruto de teu ventre!” (Lc 1,42). A primeira parte da
estrofe indica que Isabel proclama os brilhantes, admiráveis, belos sinais de
Deus (“praeclara insignia Deo...”) com uma voz que se espalha pelo seu
peito (“Voce pandens uberi”), uma provável alusão ao Espírito Santo que a inspira com seu sopro (cf. Lc 1,41).
Por fim, a 7ª estrofe narra em sua primeira parte a
reação de Maria à saudação: recusa todo louvor, atribuindo-o unicamente a Deus,
atitude que nos remete ao início do Salmo 113B: “Não a nós, ó Senhor, não a
nós, ao vosso nome, porém, seja a glória” (v. 1).
Nosso poema recorda então como Maria, “suplicante” (“supplex”)
- isto é, humildemente -, compôs o seu hino, o “Magnificat” (Lc
1,46-55). Algumas versões da sequência, ao invés de “decantavit concinnens”
(“cantou harmoniosamente”), trazem “decantavit contexens”, isto é, “cantou
entretecendo”, “costurando” várias citações do Antigo Testamento.
Os dois últimos versos da sequência passam do louvor à súplica,
pedindo à “Virgem clemente e piedosa” (“Clemens virgo atque pia”) que
nos proteja, nos sustente, nos acalente (todas possíveis traduções do verbo “foveo”),
concluindo com uma profissão de fé em Jesus Cristo, fruto do seu ventre, “única
esperança que dá vida”, “sola spes vivificat” (cf. 1Tm 1,1).
Notas:
[1] Victimae paschali laudes (Domingo de Páscoa), Veni, Sancte Spiritus (Pentecostes), Lauda Sion (Corpus Christi) e Dies irae (Missas dos defuntos). Em 1727
foi a acrescentada a sequência Stabat Mater dolorosa (Memória de Nossa Senhora das Dores).
A reforma litúrgica do Concílio Vaticano II, por sua vez, transformou
o Dies irae em hino facultativo da
Liturgia das Horas para a última semana do Tempo Comum.
[2] cf. THESAURUS
HYMNOLOGICUS sive Hymnorum, canticorum,
sequentiarum circa annum MD usitatarum collectio amplissima. Tomus Quintus: Supplementa
ad Sequentiarum volumen et Indices. Lipsiae [Leipzig], 1856, pp. 267-268.
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