quarta-feira, 31 de maio de 2023

Sequência da Visitação: Decet huius cunctis horis

“Canta de alegria, cidade de Sião; rejubila, povo de Israel! O Senhor, teu Deus, está no meio de ti!” (Sf 3,14.17).

Há um ano publicamos aqui em nosso blog um breve histórico da Festa da Visitação da Bem-aventurada Virgem Maria (Visitatio Beatae Mariae Virginis), celebrada pela Igreja de Rito Romano no dia 31 de maio.

Como vimos, um dos grandes promotores da Festa foi Johann von Jenstein (†1400), Arcebispo de Praga, no então Reino da Boêmia (atual República Tcheca), que a teria celebrado em sua diocese no ano de 1386.

A Johann von Jenstein (em tcheco, Jan z Jenštejna) atribuem-se ao menos três composições que posteriormente seriam acolhidas como sequências em algumas regiões vizinhas, tanto para a própria Festa quanto para sua Oitava: Ave Verbi Dei parens, Decet huius cunctis horis e Illibata mente sana.

Visitação - Anônimo do século XIV
Mesmo século da composição da sequência

As sequências, composições poéticas a serem entoadas antes do Evangelho na Missa, tornaram-se muito populares no Rito Romano a partir dos séculos IX e X, até que, infelizmente, a reforma litúrgica do Concílio de Trento (séc. XVI) as reduziu a apenas quatro [1].

Nesta postagem gostaríamos de apresentar uma das sequências compostas por Johann von Jenstein no século XIV: Decet huius cunctis horis, ou, em português, “Convém fazer memória”.

O poema está dividido em sete estrofes, as cinco primeiras com seis versos e as duas últimas com oito versos. Os breves versos, de sete ou oito sílabas, compõem rimas tanto emparelhadas quanto intercaladas (AAC - BBC).

Reproduzimos a seguir o texto original da sequência, em latim, seguido de uma tradução nossa bastante livre (mais uma “adaptação” que uma “tradução”, uma vez que o original possui várias “licenças poéticas”) e um breve comentário sobre o texto:

Sequentia de Visitatione Beatae Mariae Virginis:
Decet huius cunctis horis

Festi voce dulcioris
Facere memoriam;
Nec indignum sed benignum
Voce, corde, dare signum
Mariae in gloriam.

2. Innovemus mente sana,
Mater quod petit montana
Salutare gravidam;
Paranympho comitata,
Fuerat quo salutata,
Senem mulcet pavidam.

3. Rem miratur sed matrona:
«Unde» inquit «tanta dona
Mihi dantur hodie,
Ad me quod veniret illa
Mater Dei et ancilla,
Sceptrum omnis gloriae?».

4. Gaudet clausus sua matre,
Sentit prolem sine patre,
Agnum Dei praedicat;
Erit magnus infans, rite:
Regem caeli, Agnum vitae
Clausus plausu indicat.

5. Nequit senex immorari,
Rapit manus manu pari
Et nimis celeriter;
Exsultabat modo miro,
Circumplexa hanc in gyro
Salutando dulciter.

6. Clamat senex voce clara,
Amplexata tot praeclara
Insignia Deo cara
Voce pandens uberi:
«Salve, inter mulieres
Te respexit caeli heres,
Meruisti, quod videres
Casti fructum uteri».

7. Illa sed repudiavit
Laudem, Deo assignavit,
Quando supplex decantavit
Concinnens «Magnificat».
Clemens virgo atque pia,
Tu nos fove, o Maria,
Partus namque tis nos quia
Sola spes vivificat [2].

Johann von Jenstein:
Autor da sequência e promotor da festa da Visitação

Sequência da Visitação da Virgem Maria:
“Convém fazer memória”

1. Convém fazer memória
Desta festa a cada hora
Com doce voz;
Não é indigno, mas benigno
Com a voz e o coração cantar
Em honra de Maria. 

2. Com mente sã celebremos
A Mãe que atravessa as montanhas
Para saudar a mulher grávida;
Acompanhada pelo noivo,
Ela acalma a idosa espantada,
Por quem fora saudada.

3. Realmente admirada, diz a senhora:
“Donde me vem, hoje,
Tão grande presente:
Vir a mim aquela que é
Mãe de Deus e serva,
Cetro de toda a glória?”.

4. Alegra-se [João] no ventre da mãe,
Percebe o Filho sem pai [terreno],
Proclama o Cordeiro de Deus:
“Esse Menino será grande”;
Em sua alegria indica
O Rei dos céus, o Cordeiro da vida.

5. A idosa não pode esperar,
Rapidamente toma a mão [da Virgem]
Em suas mãos;
E exulta, maravilhada,
Acolhendo-a em um abraço
E saudando-a docemente.

6. A idosa exclama com voz clara,
Que se espalha pelo peito,
Abraçando-a, proclama
Os brilhantes sinais de Deus:
“Salve! Entre as mulheres,
O herdeiro do céu olhou para ti;
Mereceste contemplar
O casto fruto do teu ventre”.

7. Mas ela recusa a glória,
Atribuindo o louvor a Deus,
Quando humildemente cantou,
Harmoniosamente o “Magnificat”.
Virgem clemente e piedosa,
Protege-nos, ó Maria,
Pois em tua prole está
A única esperança que dá vida.

Confira duas versões da sequência (em latim):



Comentário:

A 1ª estrofe serve de introdução ao poema, com uma espécie de “justificativa” do louvor em honra da Virgem Maria: “Decet... facere memoriam”, “Convém... fazer memória”. Este verso remete-nos ao início do Salmo 64: “Te decet hymnus, Deus, in Sion...”, “Ó Senhor, convém cantar vosso louvor com um hino em Sião!” (v. 2).

Na 2ª estrofe, por sua vez, se apresenta o “motivo” do louvor: a Mãe de Deus que atravessa as montanhas (cf. Lc 1,39) para saudar sua parente Isabel, que estava grávida.

O primeiro verso dessa estrofe nos exorta a “celebrar com mente sã” este mistério. O texto latino utiliza o verbo “innovare” (“Innovemus mente sana”), “renovar”: com efeito, a celebração litúrgica é “atualização” do mistério celebrado. Celebrar com “mente sana”, por sua vez, significa participar da celebração de maneira consciente (cf. Constituição Sacrosanctum Concilium, n. 11).

Visitação (Anônimo do século XV)
Destacando Jesus e João Batista no ventre das mães

A segunda parte da estrofe atesta a presença do “paranympho” que acompanha Maria, termo que significa “padrinho de casamento”, mas que aqui remete ao “noivo”: José. O relato lucano da Visitação (Lc 1,39-45) não o menciona, embora este seja destacado no por Mateus (Mt 1,18-25).

Inclusive algumas traduções da nossa sequência interpretam o 5º verso dessa estrofe (“Fuerat quo salutata”) em alusão a José, traduzindo-o como: “por quem fora recebida” (cf. Mt 1,24).

A partir da 3ª estrofe se passa a narrar o encontro entre Maria e Isabel, primeiramente com uma paráfrase da exclamação desta em Lc 1,43: “Como posso merecer que a mãe do meu Senhor me venha visitar?”. Maria é invocada aqui como “Mãe de Deus e serva” (“Mater Dei et ancilla”) e, em algumas versões da sequência, como aquela que porta o “cetro da glória” do Altíssimo, isto é, o Cristo que carrega em seu ventre: “Sceptrum tenens gloriae” (cf. Hb 1,3; Ap 12,5).

A 4ª estrofe é toda dedicada a João Batista (cf. Lc 1,41.44), embora não seja mencionado seu nome no texto original em latim. Mesmo “clausus sua matre”, “fechado no ventre de sua mãe”, João se alegra (“gaudet”), “aplaude” (“plausu”), proclamando desde já Cristo como o “Cordeiro de Deus” (“Agnum Dei praedicat”).

Se a 4ª estrofe foi dedicada a João, a 5ª estrofe é dedicada a Isabel, descrevendo de maneira poética sua reação à visita de Maria: toma a mão da Virgem entre suas mãos (“Rapit manus manu”), gesto que exprime confiança; e, em seguida, a envolve em um abraço (“Circumplexa hanc in gyro”), quase que “dançando” de alegria.

A 6ª estrofe prossegue com a reação de Isabel, desta vez parafraseando outra parte da sua saudação: “Bendita és tu entre as mulheres e bendito é o fruto de teu ventre!” (Lc 1,42). A primeira parte da estrofe indica que Isabel proclama os brilhantes, admiráveis, belos sinais de Deus (“praeclara insignia Deo...”) com uma voz que se espalha pelo seu peito (“Voce pandens uberi”), uma provável alusão ao Espírito Santo que a inspira com seu sopro (cf. Lc 1,41).

Por fim, a 7ª estrofe narra em sua primeira parte a reação de Maria à saudação: recusa todo louvor, atribuindo-o unicamente a Deus, atitude que nos remete ao início do Salmo 113B: “Não a nós, ó Senhor, não a nós, ao vosso nome, porém, seja a glória” (v. 1).

Nosso poema recorda então como Maria, “suplicante” (“supplex”) - isto é, humildemente -, compôs o seu hino, o “Magnificat” (Lc 1,46-55). Algumas versões da sequência, ao invés de “decantavit concinnens” (“cantou harmoniosamente”), trazem “decantavit contexens”, isto é, “cantou entretecendo”, “costurando” várias citações do Antigo Testamento.

Os dois últimos versos da sequência passam do louvor à súplica, pedindo à “Virgem clemente e piedosa” (“Clemens virgo atque pia”) que nos proteja, nos sustente, nos acalente (todas possíveis traduções do verbo “foveo”), concluindo com uma profissão de fé em Jesus Cristo, fruto do seu ventre, “única esperança que dá vida”, “sola spes vivificat” (cf. 1Tm 1,1).

Visitação de Maria a Isabel (Domenico Ghirlandaio)

Notas:

[1] Victimae paschali laudes (Domingo de Páscoa), Veni, Sancte Spiritus (Pentecostes), Lauda Sion (Corpus Christi) e Dies irae (Missas dos defuntos). Em 1727 foi a acrescentada a sequência Stabat Mater dolorosa (Memória de Nossa Senhora das Dores).
A reforma litúrgica do Concílio Vaticano II, por sua vez, transformou o Dies irae em hino facultativo da Liturgia das Horas para a última semana do Tempo Comum.

[2] cf. THESAURUS HYMNOLOGICUS sive Hymnorum, canticorum, sequentiarum circa annum MD usitatarum collectio amplissima. Tomus Quintus: Supplementa ad Sequentiarum volumen et Indices. Lipsiae [Leipzig], 1856, pp. 267-268.

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