“Se for de teu agrado,
concede-me a vida - eis o meu pedido! - e a vida do meu povo - eis o meu
desejo!” (Est 7,3).
Como vimos na postagem anterior da nossa série sobre a leitura litúrgica dos livros da Sagrada Escritura, quatro dos “livros
históricos” da Bíblia cristã contêm narrativas ou contos sobre diversos aspectos da vida quotidiana. São as chamadas “novelas bíblicas”: Rute, Ester, Judite e Tobias.
Assim, após analisar a presença do Livro de Rute nas celebrações do Rito Romano, prosseguimos nossa
pesquisa com a outra das novelas bíblicas que integra também o grupo dos livros
protocanônicos, isto é, que são aceitos por todas as igrejas cristãs: o Livro de Ester (Est).
1. Breve introdução
ao Livro de Ester
Existem duas versões do Livro
de Ester: uma em hebraico e outra em grego, esta última vários acréscimos (assim
como no Livro de Daniel). A versão em hebraico é
aceita por todas as Igrejas cristãs, enquanto que os acréscimos em grego não
são aceitos pelos protestantes.
Assim como Rute, Ester é um dos cinco “Megillot”, os cinco “rolos” lidos nas principais festas judaicas, no caso, na Festa dos Purim, como veremos adiante.
Embora mencione personagens históricos, como o rei persa
Assuero (que seria uma versão hebraica do nome de Xerxes I), a narrativa de Ester é fictícia, o que pode ser corroborado
por uma série de exageros na trama: 127 províncias do reino (Est 1,1),
180 dias de festa (1,4), a morte de 75 mil inimigos (9,16).
Embora alguns estudiosos o situem no período persa, a
maioria defende que o livro foi escrito durante a revolta judaica contra o
helenismo (séc. II a. C.), séculos depois do governo de Xerxes I (486-465 a. C.).
Sobre o período do helenismo, confira nosso estudo sobre os Livros dos Macabeus.
A narrativa pode ser resumida em três cenas, seguidas de um
apêndice:
1ª cena: Est 1,1–2,20: Ascensão de Ester como rainha;
2ª cena: Est 2,21–3,15: Confronto entre Mardoqueu e Amã;
3ª cena: Est 4,1–8,17: Ester intervém em favor do povo e as
“sortes” se invertem;
Apêndice: Est 9,1–10,3: Sobre a Festa dos Purim.
Os acréscimos em grego foram feitos provavelmente por um
judeu piedoso em Alexandria do Egito em torno ao ano 114 a. C. Têm como objetivo
dar um tom mais “religioso” à obra, uma vez que no texto hebraico Deus sequer é mencionado.
Embora existam divergências na numeração conforme as traduções, as adições em
grego são:
a) Est 1,1a-1r: Sonho de Mardoqueu e sua
descoberta de um complô contra o rei;
b) Est 3,13a: Decreto do rei contra os judeus;
c) Est 4,17a-17z: Orações de Mardoqueu e Ester;
d) Est 5,1a-1f.2a: Ester comparece diante do rei;
e) Est 8,12a-12v: Decreto do rei a favor dos judeus;
f) Est 10,3a-3l: Interpretação do sonho de Mardoqueu
e nota sobre a tradução.
A trama pode ser resumida da seguinte forma: Ester torna-se
a esposa do rei persa Assuero. O alto oficial do rei, Amã, diante do qual todos
deviam se prostrar, trama contra os judeus, porque Mardoqueu, outro servo do
rei e primo de Ester, por ser judeu, se recusa a prostrar-se diante dele.
Amã manipula o rei para publicar um decreto ordenando a
morte de todos os judeus, “lançando as sortes” (Purim) para descobrir qual seria o dia “favorável” para o
extermínio. Porém, graças à intervenção de Ester, as “sortes” se invertem: Amã
é morto e o rei publica um novo decreto a favor dos judeus, que exterminam seus
inimigos.
Surge então a Festa dos Purim,
onde as “sortes” se inverteram a favor dos judeus, celebrada no dia 14 do mês
de Adar (entre fevereiro e março). É uma festa mais nacional do que litúrgica,
marcada por refeições festivas e pela leitura de Ester. Não obstante, acrescenta-se às “dezoito bênçãos” (oração
diária dos judeus) um agradecimento a Deus “pelos milagres, pelas grandes obras
e pelos atos salvíficos”.
Rainha Ester (Edwin Long) |
A teologia da obra é bastante incipiente: como vimos, no texto hebraico Deus sequer é mencionado, razão pela qual o
texto grego acrescenta, por exemplo, as orações de Mardoqueu e Ester. Podemos
falar aqui de uma sutil teologia da Providência divina, como no Livro de Rute.
Ester, além disso, se insere no distinto grupo das mulheres
bíblicas que intervêm no curso da história em favor do seu povo, como Jael e
Judite, razão pela qual, como veremos adiante, é considerada como “tipo” da
Virgem Maria.
Para saber mais, confira a bibliografia indicada no final da
postagem.
2. Leitura litúrgica do
Livro de Ester: Composição
harmônica
No Rito Romano, como indica o n. 66 do Elenco das Leituras da Missa (ELM), há dois critérios para a
escolha dos textos bíblicos. Começamos nossa análise de Ester com o
primeiro deles: a composição harmônica, isto é, o texto é escolhido por
sua harmonia com o tempo ou festa litúrgica [1].
Antes das leituras, convém destacar a 2ª antífona
proposta para o rito da imposição das cinzas na Quarta-feira de Cinzas, que
une um versículo da profecia de Joel a parte das orações do
nosso livro:
“Entre o pórtico e o altar, chorando dirão os sacerdotes,
ministros do Senhor: ‘Poupai, Senhor nosso Deus, poupai vosso povo e não
fecheis, Senhor, os lábios que vos louvam’” (cf. Jl 2,17; Est 4,17h)
[2].
Na Quinta-feira da I
semana da Quaresma, por sua vez, lemos Est 4,17n.p-r.aa-bb.gg-hh [3].
Uma vez que nos dias de semana da Quaresma as leituras possuem uma relação
mútua, refletindo sobre “diversos temas próprios da catequese quaresmal” (ELM,
n. 98) [4], a súplica de Ester ao Senhor exemplifica a
exortação de Jesus no Evangelho (Mt 7,7-12): “Pedi e vos será dado! Procurai e achareis! Batei e vos será aberto!”
(v. 7).
Ainda dentro do Próprio do Tempo, destacamos a antífona
de entrada do XXVII Domingo do Tempo Comum, que louva a Deus como
Criador: “Senhor, tudo está em vosso poder, e ninguém pode resistir à vossa vontade.
Vós fizestes todas as coisas: o céu, a terra, e tudo o que eles contêm; sois o
Deus do universo!” (Est 4,17bc) [5].
Ester diante de Assuero (Jan Victors) |
Passando ao Próprio dos Santos, identificamos
primeiramente uma leitura do nosso livro em uma celebração espec´fica do Brasil: a
Solenidade de Nossa Senhora da Conceição
Aparecida, no dia 12 de outubro.
Aqui lemos Est 5,1b-2; 7,2b-3 [6], o relato do encontro
da nossa protagonista com o rei e o seu pedido em favor do povo. Ester torna-se assim “tipo”
(modelo ou profecia) da Virgem Maria que intercede a seu Filho, como no
Evangelho das Bodas de Caná, proclamado nesse dia (Jo 2,1-11).
No Comum dos Santos, por sua vez, com várias opções de
leituras ad
libitum (à escolha) para cada “categoria” de santos, encontramos um
texto de Ester no Comum dos
Santos: Est 4,17a-17g.17l [7].
Nesta oração, que começa com um louvor a Deus e conclui com uma
súplica, Mardoqueu “justifica” porque não se prostrou diante de Amã: “Para não colocar a glória de um homem acima
da glória de Deus” (v. 17g). Assim, o texto nos recorda que a veneração dos
santos tem sempre como objetivo proclamar a glória de Deus.
Na Missa pelos
cristãos perseguidos, uma das Missas para diversas necessidades,
igualmente com várias opções de leituras, sugere-se Est
4,17b-17e.17i-17l [8], um trecho da oração de Mardoqueu, como acima.
A ênfase reside aqui na sua súplica em favor do povo perseguido: “Escuta a minha súplica, sê favorável àqueles
que te pertencem e muda o nosso luto em alegria...” (v. 17l).
A mesma leitura é proposta em outros dois formulários: nas Missas pela pátria, pelos governantes, por
um encontro de chefes de Estado, pelo chefe de Estado e pelo progresso dos
povos (que compartilham as mesmas opções de leitura) e na Missa em qualquer necessidade [9].
Por fim, a Igreja nos propõe leituras em composição harmônica de Ester
em duas Missas votivas da Coletânea de Missas de Nossa Senhora,
ambas para o Tempo Comum:
- Missa de Maria, Mãe e medianeira da graça (n. 30): Est 8,3-8.16-17a [10], versão mais longa da
súplica de Ester ao rei em favor do povo. O paralelo entre Ester e Maria como
intercessoras é corroborado aqui novamente pelo Evangelho (Jo 2,1-11);
- Missa de Maria, Rainha e Mãe de misericórdia I (n. 39): Est 4,17n.p-r.aa-bb.hh-kk [11], outro
trecho da oração de Ester, suplicando a Deus por si e pelo povo. Mais uma vez o
Evangelho proclamado é o relato das Bodas de Caná (Jo 2,1-11).
3. Leitura litúrgica do
Livro de Ester: Leitura
semicontínua
O segundo critério para a escolha das leituras nas celebrações,
como indica o n. 66 do ELM, é a leitura semicontínua: a proclamação dos
principais textos de um livro na sequência, oferecendo aos fiéis um contato
mais amplo com a Palavra de Deus [12].
Sob esse critério o Livro
de Ester não é lido na Celebração Eucarística, como indica o mesmo ELM em
seu n. 110: “Entre aquelas narrações escritas com uma finalidade exemplar, que
exigem uma leitura bastante extensa para que se entendam, leem-se os livros de Tobias e de Rute; os outros são omitidos (Ester,
Judite)” [13].
Assim, nosso livro é lido de maneira semicontínua apenas na Liturgia
das Horas, no Ofício das
Leituras da XXIX semana do Tempo Comum, de domingo a quinta-feira, após os profetas Ageu, Zacarias
1–8 e Malaquias (XXVIII semana) e antes do Livro da Sabedoria
(XXX semana).
Os últimos dois dias dessa semana são completados pela
leitura do Livro de Baruc, que também
traz o tema da súplica, como nas adições de Ester.
Banquete de Ester: as “sortes” se invertem e Amã é acusado (Jan Victors) |
As cinco perícopes selecionadas do livro, que sintetizam bem
a narrativa, são:
Ofício das Leituras: XXIX
semana do Tempo Comum
Domingo: Est
1,1-3.9-13.15-16.19; 2,5-10.16-17 - Repúdio
de Vasti e escolha de Ester;
Segunda-feira:
Est 3,1-15 - Os judeus em perigo de
vida;
Terça-feira:
Est 4,1-8.8a.9-17 - Amã pede o
aniquilamento de todos os judeus;
Quarta-feira:
Est 4,17m-17kk - Oração da rainha
Ester;
Quinta-feira:
Est 5,1-5; 7,1-10 - O rei e Amã no
banquete de Ester. Amã é enforcado [14].
A 2ª leitura do Ofício ao longo dessa semana (de domingo a
sexta-feira) está em composição harmônica com Ester: trata-se da Carta 130
de Santo Agostinho, endereçada a Proba, uma viúva romana, e dedicada justamente
à oração, tema importante nas adições gregas ao nosso livro.
No ciclo bienal do
Ofício das Leituras, ainda sem tradução para o Brasil, o Livro de Ester também é lido por cinco
dias, do domingo à quinta-feira da XXIV
semana do Tempo Comum nos anos pares, após a leitura da Segunda Carta de
Pedro e da Carta de Judas.
A leitura de Ester é igualmente complementada aqui por Baruc e pela Carta a Proba. Nas semanas seguintes leem-se outras duas “novelas
bíblicas”: Tobias (XXV semana) e Judite (XXVI semana).
Por fim, além das leituras longas do Ofício, temos ainda uma
leitura
breve do nosso escrito na Hora
Média (15h) da quinta-feira da III semana do Saltério: Est 10,3f [15].
Este é um texto que até então não havia aparecido na Liturgia: a interpretação
de Mardoqueu do seu sonho, que sintetiza a trama do livro, atestando que Deus
salvou seu povo.
Cabe recordar, porém, que essa leitura é proferida apenas no
Tempo Comum, uma vez que os Tempos do Advento, Natal, Quaresma e Páscoa possuem
leituras próprias.
Concluímos assim o nosso estudo sobre a leitura litúrgica
das primeiras duas “novelas bíblicas”: Rute
e Ester. Na próxima postagem completaremos a “tríade” de mulheres protagonistas desse bloco com o Livro de Judite.
Breve bibliografia sobre o Livro de Ester:
DUMM, Demetrius. Ester. in: BROWN,
Raymond E.; FITZMYER, Joseph A.; MURPHY, Roland E. [org.]. Novo Comentário Bíblico São Jerônimo: Antigo
Testamento. São Paulo: Academia Cristã; Paulus, 2007, pp. 1131-1138.
MACCHI,
Jean-Daniel. Ester; Ester grego. in: RÖMER, Thomas; MACCHI, Jean-Daniel;
NIHAN, Christophe [org.]. Antigo
Testamento: História, Escritura e Teologia. 2ª ed. São Paulo: Loyola, 2015,
pp. 680-687.735-739.
MELERO, Enrique Cabezudo. Ester.
in: OPORTO, Santiago Guijarro;
GARCÍA, Miguel Salvador [org.]. Comentário
ao Antigo Testamento I. São Paulo: Ave Maria, 2002, pp. 661-672.
PUERTO, Mercedes Navarro. O Livro de Ester. in: LAMADRID,
Antonio González et al. História, narrativa, apocalíptica. São
Paulo: Ave-Maria, 2004, pp. 389-410.
Coleção: Introdução ao estudo da Bíblia,
v. 3B.
Sobre a Festa dos Purim:
DI SANTE, Carmine. Liturgia
judaica: fontes, estrutura, orações e festas. São Paulo: Paulus, 2004, pp. 244-246.
Notas:
[1] ALDAZÁBAL, José. A
Mesa da Palavra I: Elenco das Leituras da Missa - Texto e Comentário. São
Paulo: Paulinas, 2007, p. 76.
[2] MISSAL ROMANO. Tradução portuguesa da 2ª edição
típica para o Brasil. São Paulo: Paulus, 1991, pp. 176-177.
[3] LECIONÁRIO
II: Semanal. Tradução portuguesa da
2ª edição típica para o Brasil. São
Paulo: Paulus, 1995.
[4] ALDAZÁBAL, op.
cit., p. 97.
[5] MISSAL ROMANO, p. 371.
[6] LECIONÁRIO I: Dominical A-B-C. Tradução portuguesa da 2ª
edição típica para o Brasil. São
Paulo: Paulus, 1994.
[7] LECIONÁRIO III: Para as Missas dos Santos, dos Comuns, para
Diversas Necessidades e Votivas. Tradução portuguesa da 2ª edição típica para o
Brasil. São Paulo: Paulus, 1997.
[8] ibid.
[9] ibid.
[10] LECIONÁRIO para
Missas de Nossa Senhora. Brasília: Edições CNBB, 2016, p. 122.
[11] ibid., p. 160.
[12] cf. ALDAZÁBAL, op. cit., p. 76.
[13] ibid., p. 106.
[14] OFÍCIO DIVINO. Liturgia das Horas segundo o Rito Romano. Tradução para o Brasil da segunda
edição típica. São Paulo: Paulus, 1999, v. IV, pp. 351.355.358.362.366.
[15] ibid., v.
III, p. 987; v. IV, p. 941.
Imagens: Wikimedia Commons.
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