terça-feira, 5 de setembro de 2023

Leitura litúrgica do Livro de Ester

“Se for de teu agrado, concede-me a vida - eis o meu pedido! - e a vida do meu povo - eis o meu desejo!” (Est 7,3).

Como vimos na postagem anterior da nossa série sobre a leitura litúrgica dos livros da Sagrada Escritura, quatro dos “livros históricos” da Bíblia cristã contêm narrativas ou contos sobre diversos aspectos da vida quotidiana. São as chamadas “novelas bíblicas”: Rute, Ester, Judite e Tobias.

Assim, após analisar a presença do Livro de Rute nas celebrações do Rito Romano, prosseguimos nossa pesquisa com a outra das novelas bíblicas que integra também o grupo dos livros protocanônicos, isto é, que são aceitos por todas as igrejas cristãs: o Livro de Ester (Est).

Ester diante do rei Assuero (Bernardo Cavallino)

1. Breve introdução ao Livro de Ester

Existem duas versões do Livro de Ester: uma em hebraico e outra em grego, esta última vários acréscimos (assim como no Livro de Daniel). A versão em hebraico é aceita por todas as Igrejas cristãs, enquanto que os acréscimos em grego não são aceitos pelos protestantes.

Assim como Rute, Ester é um dos cinco “Megillot”, os cinco “rolos” lidos nas principais festas judaicas, no caso, na Festa dos Purim, como veremos adiante.

Embora mencione personagens históricos, como o rei persa Assuero (que seria uma versão hebraica do nome de Xerxes I), a narrativa de Ester é fictícia, o que pode ser corroborado por uma série de exageros na trama: 127 províncias do reino (Est 1,1), 180 dias de festa (1,4), a morte de 75 mil inimigos (9,16).

Embora alguns estudiosos o situem no período persa, a maioria defende que o livro foi escrito durante a revolta judaica contra o helenismo (séc. II a. C.), séculos depois do governo de Xerxes I (486-465 a. C.). Sobre o período do helenismo, confira nosso estudo sobre os Livros dos Macabeus.

A narrativa pode ser resumida em três cenas, seguidas de um apêndice:
1ª cena: Est 1,1–2,20: Ascensão de Ester como rainha;
2ª cena: Est 2,21–3,15: Confronto entre Mardoqueu e Amã;
3ª cena: Est 4,1–8,17: Ester intervém em favor do povo e as “sortes” se invertem;
Apêndice: Est 9,1–10,3: Sobre a Festa dos Purim.

Os acréscimos em grego foram feitos provavelmente por um judeu piedoso em Alexandria do Egito em torno ao ano 114 a. C. Têm como objetivo dar um tom mais “religioso” à obra, uma vez que no texto hebraico Deus sequer é mencionado.

Embora existam divergências na numeração conforme as traduções, as adições em grego são:
a) Est 1,1a-1r: Sonho de Mardoqueu e sua descoberta de um complô contra o rei;
b) Est 3,13a: Decreto do rei contra os judeus;
c) Est 4,17a-17z: Orações de Mardoqueu e Ester;
d) Est 5,1a-1f.2a: Ester comparece diante do rei;
e) Est 8,12a-12v: Decreto do rei a favor dos judeus;
f) Est 10,3a-3l: Interpretação do sonho de Mardoqueu e nota sobre a tradução.

A trama pode ser resumida da seguinte forma: Ester torna-se a esposa do rei persa Assuero. O alto oficial do rei, Amã, diante do qual todos deviam se prostrar, trama contra os judeus, porque Mardoqueu, outro servo do rei e primo de Ester, por ser judeu, se recusa a prostrar-se diante dele.

Amã manipula o rei para publicar um decreto ordenando a morte de todos os judeus, “lançando as sortes” (Purim) para descobrir qual seria o dia “favorável” para o extermínio. Porém, graças à intervenção de Ester, as “sortes” se invertem: Amã é morto e o rei publica um novo decreto a favor dos judeus, que exterminam seus inimigos.

Surge então a Festa dos Purim, onde as “sortes” se inverteram a favor dos judeus, celebrada no dia 14 do mês de Adar (entre fevereiro e março). É uma festa mais nacional do que litúrgica, marcada por refeições festivas e pela leitura de Ester. Não obstante, acrescenta-se às “dezoito bênçãos” (oração diária dos judeus) um agradecimento a Deus “pelos milagres, pelas grandes obras e pelos atos salvíficos”.

Rainha Ester (Edwin Long)

A teologia da obra é bastante incipiente: como vimos, no texto hebraico Deus sequer é mencionado, razão pela qual o texto grego acrescenta, por exemplo, as orações de Mardoqueu e Ester. Podemos falar aqui de uma sutil teologia da Providência divina, como no Livro de Rute.

Ester, além disso, se insere no distinto grupo das mulheres bíblicas que intervêm no curso da história em favor do seu povo, como Jael e Judite, razão pela qual, como veremos adiante, é considerada como “tipo” da Virgem Maria.

Para saber mais, confira a bibliografia indicada no final da postagem.

2. Leitura litúrgica do Livro de Ester: Composição harmônica

No Rito Romano, como indica o n. 66 do Elenco das Leituras da Missa (ELM), há dois critérios para a escolha dos textos bíblicos. Começamos nossa análise de Ester com o primeiro deles: a composição harmônica, isto é, o texto é escolhido por sua harmonia com o tempo ou festa litúrgica [1].

Antes das leituras, convém destacar a 2ª antífona proposta para o rito da imposição das cinzas na Quarta-feira de Cinzas, que une um versículo da profecia de Joel a parte das orações do nosso livro:

“Entre o pórtico e o altar, chorando dirão os sacerdotes, ministros do Senhor: ‘Poupai, Senhor nosso Deus, poupai vosso povo e não fecheis, Senhor, os lábios que vos louvam’” (cf. Jl 2,17; Est 4,17h) [2].

Na Quinta-feira da I semana da Quaresma, por sua vez, lemos Est 4,17n.p-r.aa-bb.gg-hh [3]. Uma vez que nos dias de semana da Quaresma as leituras possuem uma relação mútua, refletindo sobre “diversos temas próprios da catequese quaresmal” (ELM, n. 98) [4], a súplica de Ester ao Senhor exemplifica a exortação de Jesus no Evangelho (Mt 7,7-12): “Pedi e vos será dado! Procurai e achareis! Batei e vos será aberto!” (v. 7).

Ainda dentro do Próprio do Tempo, destacamos a antífona de entrada do XXVII Domingo do Tempo Comum, que louva a Deus como Criador: “Senhor, tudo está em vosso poder, e ninguém pode resistir à vossa vontade. Vós fizestes todas as coisas: o céu, a terra, e tudo o que eles contêm; sois o Deus do universo!” (Est 4,17bc) [5].

Ester diante de Assuero (Jan Victors)

Passando ao Próprio dos Santos, identificamos primeiramente uma leitura do nosso livro em uma celebração espec´fica do Brasil: a Solenidade de Nossa Senhora da Conceição Aparecida, no dia 12 de outubro.

Aqui lemos Est 5,1b-2; 7,2b-3 [6], o relato do encontro da nossa protagonista com o rei e o seu pedido em favor do povo. Ester  torna-se assim “tipo” (modelo ou profecia) da Virgem Maria que intercede a seu Filho, como no Evangelho das Bodas de Caná, proclamado nesse dia (Jo 2,1-11).

No Comum dos Santos, por sua vez, com várias opções de leituras ad libitum (à escolha) para cada “categoria” de santos, encontramos um texto de Ester no Comum dos Santos: Est 4,17a-17g.17l [7].

Nesta oração, que começa com um louvor a Deus e conclui com uma súplica, Mardoqueu “justifica” porque não se prostrou diante de Amã: “Para não colocar a glória de um homem acima da glória de Deus” (v. 17g). Assim, o texto nos recorda que a veneração dos santos tem sempre como objetivo proclamar a glória de Deus.

Na Missa pelos cristãos perseguidos, uma das Missas para diversas necessidades, igualmente com várias opções de leituras, sugere-se Est 4,17b-17e.17i-17l [8], um trecho da oração de Mardoqueu, como acima. A ênfase reside aqui na sua súplica em favor do povo perseguido: “Escuta a minha súplica, sê favorável àqueles que te pertencem e muda o nosso luto em alegria...” (v. 17l).

A mesma leitura é proposta em outros dois formulários: nas Missas pela pátria, pelos governantes, por um encontro de chefes de Estado, pelo chefe de Estado e pelo progresso dos povos (que compartilham as mesmas opções de leitura) e na Missa em qualquer necessidade [9].

Por fim, a Igreja nos propõe leituras em composição harmônica de Ester em duas Missas votivas da Coletânea de Missas de Nossa Senhora, ambas para o Tempo Comum:

- Missa de Maria, Mãe e medianeira da graça (n. 30): Est 8,3-8.16-17a [10], versão mais longa da súplica de Ester ao rei em favor do povo. O paralelo entre Ester e Maria como intercessoras é corroborado aqui novamente pelo Evangelho (Jo 2,1-11);

- Missa de Maria, Rainha e Mãe de misericórdia I (n. 39): Est 4,17n.p-r.aa-bb.hh-kk [11], outro trecho da oração de Ester, suplicando a Deus por si e pelo povo. Mais uma vez o Evangelho proclamado é o relato das Bodas de Caná (Jo 2,1-11).

3. Leitura litúrgica do Livro de Ester: Leitura semicontínua

O segundo critério para a escolha das leituras nas celebrações, como indica o n. 66 do ELM, é a leitura semicontínua: a proclamação dos principais textos de um livro na sequência, oferecendo aos fiéis um contato mais amplo com a Palavra de Deus [12].

Sob esse critério o Livro de Ester não é lido na Celebração Eucarística, como indica o mesmo ELM em seu n. 110: “Entre aquelas narrações escritas com uma finalidade exemplar, que exigem uma leitura bastante extensa para que se entendam, leem-se os livros de Tobias e de Rute; os outros são omitidos (Ester, Judite)” [13].

Assim, nosso livro é lido de maneira semicontínua apenas na Liturgia das Horas, no Ofício das Leituras da XXIX semana do Tempo Comum, de domingo a quinta-feira, após os profetas Ageu, Zacarias 1–8 e Malaquias (XXVIII semana) e antes do Livro da Sabedoria (XXX semana).

Os últimos dois dias dessa semana são completados pela leitura do Livro de Baruc, que também traz o tema da súplica, como nas adições de Ester.

Banquete de Ester: as “sortes” se invertem e Amã é acusado
(Jan Victors)

As cinco perícopes selecionadas do livro, que sintetizam bem a narrativa, são:
Ofício das Leituras: XXIX semana do Tempo Comum
Domingo: Est 1,1-3.9-13.15-16.19; 2,5-10.16-17 - Repúdio de Vasti e escolha de Ester;
Segunda-feira: Est 3,1-15 - Os judeus em perigo de vida;
Terça-feira: Est 4,1-8.8a.9-17 - Amã pede o aniquilamento de todos os judeus;
Quarta-feira: Est 4,17m-17kk - Oração da rainha Ester;
Quinta-feira: Est 5,1-5; 7,1-10 - O rei e Amã no banquete de Ester. Amã é enforcado [14].

A 2ª leitura do Ofício ao longo dessa semana (de domingo a sexta-feira) está em composição harmônica com Ester: trata-se da Carta 130 de Santo Agostinho, endereçada a Proba, uma viúva romana, e dedicada justamente à oração, tema importante nas adições gregas ao nosso livro.

No ciclo bienal do Ofício das Leituras, ainda sem tradução para o Brasil, o Livro de Ester também é lido por cinco dias, do domingo à quinta-feira da XXIV semana do Tempo Comum nos anos pares, após a leitura da Segunda Carta de Pedro e da Carta de Judas.

A leitura de Ester é igualmente complementada aqui por Baruc e pela Carta a Proba. Nas semanas seguintes leem-se outras duas “novelas bíblicas”: Tobias (XXV semana) e Judite (XXVI semana).

Por fim, além das leituras longas do Ofício, temos ainda uma leitura breve do nosso escrito na Hora Média (15h) da quinta-feira da III semana do Saltério: Est 10,3f [15]. Este é um texto que até então não havia aparecido na Liturgia: a interpretação de Mardoqueu do seu sonho, que sintetiza a trama do livro, atestando que Deus salvou seu povo.

Cabe recordar, porém, que essa leitura é proferida apenas no Tempo Comum, uma vez que os Tempos do Advento, Natal, Quaresma e Páscoa possuem leituras próprias.

Concluímos assim o nosso estudo sobre a leitura litúrgica das primeiras duas “novelas bíblicas”: Rute e Ester. Na próxima postagem completaremos a “tríade” de mulheres protagonistas desse bloco com o Livro de Judite.

Ester (Catedral de Peoria, EUA)

Breve bibliografia sobre o Livro de Ester:

DUMM, Demetrius. Ester. in: BROWN, Raymond E.; FITZMYER, Joseph A.; MURPHY, Roland E. [org.]. Novo Comentário Bíblico São Jerônimo: Antigo Testamento. São Paulo: Academia Cristã; Paulus, 2007, pp. 1131-1138.

MACCHI, Jean-Daniel. Ester; Ester grego. in: RÖMER, Thomas; MACCHI, Jean-Daniel; NIHAN, Christophe [org.]. Antigo Testamento: História, Escritura e Teologia. 2ª ed. São Paulo: Loyola, 2015, pp. 680-687.735-739.

MELERO, Enrique Cabezudo. Ester. in: OPORTO, Santiago Guijarro; GARCÍA, Miguel Salvador [org.]. Comentário ao Antigo Testamento I. São Paulo: Ave Maria, 2002, pp. 661-672.

PUERTO, Mercedes Navarro. O Livro de Ester. in: LAMADRID, Antonio González et al. História, narrativa, apocalíptica. São Paulo: Ave-Maria, 2004, pp. 389-410. Coleção: Introdução ao estudo da Bíblia, v. 3B.

Sobre a Festa dos Purim:
DI SANTE, Carmine. Liturgia judaica: fontes, estrutura, orações e festas. São Paulo: Paulus, 2004, pp. 244-246.

Notas:
[1] ALDAZÁBAL, José. A Mesa da Palavra I: Elenco das Leituras da Missa - Texto e Comentário. São Paulo: Paulinas, 2007, p. 76.
[2] MISSAL ROMANO. Tradução portuguesa da 2ª edição típica para o Brasil. São Paulo: Paulus, 1991, pp. 176-177.
[3] LECIONÁRIO II: Semanal. Tradução portuguesa da 2ª edição típica para o Brasil. São Paulo: Paulus, 1995.
[4] ALDAZÁBAL, op. cit., p. 97.
[5] MISSAL ROMANO, p. 371.
[6] LECIONÁRIO I: Dominical A-B-C. Tradução portuguesa da 2ª edição típica para o Brasil. São Paulo: Paulus, 1994.
[7] LECIONÁRIO III: Para as Missas dos Santos, dos Comuns, para Diversas Necessidades e Votivas. Tradução portuguesa da 2ª edição típica para o Brasil. São Paulo: Paulus, 1997.
[8] ibid.
[9] ibid.
[10] LECIONÁRIO para Missas de Nossa Senhora. Brasília: Edições CNBB, 2016, p. 122.
[11] ibid., p. 160.
[12] cf. ALDAZÁBAL, op. cit., p. 76.
[13] ibid., p. 106.
[14] OFÍCIO DIVINO. Liturgia das Horas segundo o Rito Romano. Tradução para o Brasil da segunda edição típica. São Paulo: Paulus, 1999, v. IV, pp. 351.355.358.362.366.
[15] ibid., v. III, p. 987; v. IV, p. 941.

Imagens: Wikimedia Commons.

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