“Eu vi a aflição do meu povo e ouvi seu clamor” (Ex 3,7).
Em nossa série de postagens sobre a leitura litúrgica dos livros da Sagrada Escritura, em sintonia com o “Mês da Bíblia” da Igreja no
Brasil, estudamos em setembro de 2020 o Livro do Deuteronômio (Dt).
Agora gostaríamos de retroceder um pouco e analisar um dos
escritos mais importantes do Antigo Testamento (AT), que narra o início da
história de Moisés e da peregrinação do povo de Israel pelo deserto: o Livro do Êxodo (Ex).
1. Breve introdução
ao Livro do Êxodo
O Livro do Êxodo,
o segundo dos rolos da Torá
(Pentateuco), recebe este nome em grego (ἔξοδος), “saída”, devido ao mistério
nele narrado: a libertação de Israel do Egito, seguida da aliança com Deus no
monte Sinai, dois eventos fundamentais que constituem Israel enquanto povo.
Com efeito, enquanto no Gênesis
a aliança é firmada entre Deus e indivíduos (Abraão, Isaac, Jacó...), no Êxodo, apesar da importância de Moisés
como “mediador”, a aliança é entre Deus e seu povo: “Vós sereis o meu povo e Eu
serei vosso Deus” (Ex 6,7).
Em hebraico, por sua vez, o livro é chamado we’elleh shemot (“estes são os nomes”), ou simplesmente shemot (“nomes”), primeira expressão que aparece no texto.
A passagem do Mar Vermelho (Capela Redemptoris Mater, Vaticano) |
Antes de tudo é preciso distinguir “o êxodo”, com letra
minúscula, termo que se refere ao evento da saída de Israel do Egito, e “o Êxodo”, com letra maiúscula, isto é, o
livro que narra esse acontecimento.
O Livro do Êxodo está claramente estruturado em três grandes
partes, conforme o local onde a narrativa se desenrola, cada uma girando em
torno de um grande tema teológico:
a) Ex 1,1–15,21: Israel
no Egito - a libertação;
b) Ex 15,22–18,27:
Israel a caminho pelo deserto - a assistência divina;
c) Ex 19–40:
Israel junto ao monte Sinai (também chamado Horeb) - a aliança.
A terceira parte prossegue ao longo de todo o Livro do Levítico (Lv), até o capítulo 10 do Livro
dos Números (Nm), quando o povo
retoma a caminhada pelo deserto.
A primeira parte do Livro
do Êxodo começa com um resumo da situação de Israel no Egito, intercalado
com o início da história de Moisés (cap. 1–2), que, com efeito, será um dos
personagens centrais da narrativa até o final do Pentateuco. Na sequência os
capítulos 3–4 trazem o relato da vocação de Moisés, através do célebre episódio
da “sarça ardente”, onde Deus “revela seu nome” como o “Deus dos pais” e como
“Aquele que é” (Ex 3,6.13-15).
Para saber mais sobre o tetragrama sagrado YHWH e suas interpretações, confira nossa postagem sobre a devoção ao Santíssimo Nome de Jesus.
Nesta primeira parte predomina o gênero literário narrativo,
que prossegue com os confrontos com o Faraó e as “dez pragas” (cap. 5–11),
culminando na instituição da festa da Páscoa (Ex 12,1–13,16) e na travessia do mar Vermelho (Ex 13,17–15,21).
A segunda parte, mais breve, narra uma série de percalços
durante a caminhada pelo deserto: a falta de água (Ex 15,22-27; 17,1-7) e de alimento (Ex 16) e os combates com outros povos (Ex 17,8-16), temas que serão retomados a partir de Nm 10.
A terceira parte, por sua vez, é marcada por dois “dípticos”:
- a aliança: sua
ruptura, com o episódio do “bezerro de ouro” (cap. 19–24), e sua renovação (cap.
32–34);
- o santuário: seu
projeto (cap. 25–31) e sua construção (cap. 35–40).
Neste terceiro bloco intercalam-se os gêneros literários
narrativo e legislativo. Naturalmente o grande código de leis do Êxodo é o Decálogo, isto é, as “Dez Palavras” (Ex
20,1-17, retomados em Dt 5,1-22),
seguido pelo “Código da Aliança” (Ex
20,22–23,33), que amplia o Decálogo com uma série de prescrições religiosas e
sociais.
Para acessar a série de Catequeses do Papa Francisco sobre os Dez Mandamentos, proferidas entre junho e novembro de 2018, clique aqui.
Moisés com as tábuas do Decálogo (Rembrandt) |
Os eventos descritos no Êxodo
teriam ocorrido provavelmente em meados do século XIII a. C. (em torno ao ano
de 1250 a. C.). É preciso ter presente, porém, que o Êxodo não é uma obra histórica no sentido moderno do termo, mas sim
a narrativa de uma “história teológica”, de uma “história de salvação”. Sua redação,
com efeito, foi bastante complexa, estendendo-se ao longo de séculos, na qual
contribuíram distintas escolas teológicas.
Algumas perícopes do livro são tradicionalmente
identificadas entre os escritos mais antigos da Bíblia, como o “cântico do mar”
(Ex 15,1-18.21). Outras partes, por
sua vez, teriam sido redigidas a partir do período da monarquia (pela chamada
tradição javista), recolhendo tradições orais (por exemplo, sobre a vida de
Moisés) e alguns conjuntos de leis, sobretudo de caráter social.
A redação final do livro teria ocorrido após o exílio da
Babilônia (séc. VI-V), quando a tradição sacerdotal sistematizou sobretudo as
leis relativas ao culto: a instituição da Páscoa, a construção do santuário e
da arca da aliança...
Para saber mais, confira a bibliografia indicada no final desta postagem.
2. Leitura litúrgica
do Êxodo: Composição harmônica
Como fizemos com o Deuteronômio
e com os demais escritos estudados nesta série, analisaremos a leitura
litúrgica do Livro do Êxodo a partir
dos critérios propostos no n. 66 do Elenco
das Leituras da Missa: a composição harmônica e a leitura semicontínua [1].
Começamos pela composição harmônica, isto é, pelos textos escolhidos por sua
sintonia com o tempo ou a festa litúrgica.
a) Celebração
Eucarística
Seguindo o ciclo do Ano Litúrgico, começamos nosso percurso
pelo Tempo da Quaresma, no qual nosso
livro está presente em quatro celebrações.
O Êxodo aparece
sempre como 1ª leitura do III Domingo da Quaresma. Nos domingos desse tempo, com
efeito, “as leituras do Antigo Testamento referem-se à história da salvação
(...). Cada ano há uma série de textos que apresentam os principais elementos
desta história” [2].
Assim, no III Domingo
da Quaresma do ano A lemos Ex
17,3-7 [3], no contexto da travessia do deserto, onde surge o problema da falta
de água. Moisés, instruído por Deus, fere com sua vara um rochedo, donde brota
uma fonte, episódio em seguida retomado pelo Sl 94 (95).
O simbolismo da água reaparece também no Evangelho da
celebração: o encontro de Jesus com a mulher samaritana (Jo 4,5-42). Tanto a leitura quanto o Evangelho são aqui interpretados
em chave batismal, uma vez que neste domingo se celebra o I Escrutínio dos catecúmenos em preparação aos sacramentos da
Iniciação Cristã [4].
Além disso, dado o caráter batismal da própria Quaresma, os
textos dos Domingos III a V do ano A são repropostos ad libitum (à escolha) durante a semana. Assim, a leitura de Ex 17,3-7 consta também como leitura à escolha para a III semana da
Quaresma [5].
A água do rochedo (Santuário Nacional de Aparecida) |
Retornando ao ciclo dominical, no III Domingo da Quaresma do ano B lê-se Ex 20,1-17 (forma breve: Ex
20,1-3.7-8.12-17) [6], a proclamação dos Dez Mandamentos, cujo louvor será
entoado em seguida pelo Sl 18 (19): “Os preceitos do Senhor são precisos, alegria
ao coração...” (v. 9).
Por fim, no III
Domingo da Quaresma do ano C proclama-se Ex 3,1-8a.13-15 [7], a teofania da sarça ardente, na qual Moisés
recebe sua missão e Deus revela seu “Nome”.
Note-se que a cada ano lemos uma das partes do livro: “o
deserto” no ano A, “o Sinai” no ano B e “o Egito” no ano C.
Ainda no Tempo da Quaresma, encontramos um texto do Êxodo nos dias de semana, nos quais “as
leituras do Evangelho e do Antigo Testamento foram escolhidas de modo que
tivessem uma relação mútua”, apresentando “diversos temas próprios da catequese
quaresmal” [8].
Assim, na quinta-feira
da IV semana da Quaresma lemos Ex
32,7-14 [9], no contexto da “quebra da aliança”, diante da qual Moisés
intercede em favor do povo junto a Deus. No Evangelho desse dia, por sua vez, Jesus
toma Moisés como testemunha de acusação contra aqueles que não creem n’Ele (Jo 5,31-47): “Se acreditásseis em Moisés, também acreditaríeis em mim, pois foi a
respeito de mim que ele escreveu” (v. 46).
No coração do Ano Litúrgico, isto é, no Tríduo Pascal do Senhor Crucificado, Sepultado e Ressuscitado, a
Igreja nos propõe duas leituras do Êxodo.
Primeiramente, como 1ª leitura da Missa
da Ceia do Senhor, proclama-se Ex
12,1-8.11-14 [10], a narrativa da instituição da Páscoa judaica.
A festa da Páscoa, celebrada na primeira lua cheia da
primavera no hemisfério norte (dia 14 do mês de Nisã no calendário judaico),
recolhe na verdade duas tradições: uma de origem agrícola, a “festa dos pães
ázimos”, e outra de origem pastoril, com a imolação do cordeiro. A perícope
recorda como as duas tradições se uniram, dando um novo sentido à festa: o memorial
da libertação do Egito.
Vale recordar que antes da reforma litúrgica do Concílio
Vaticano II a perícope de Ex 12 era
lida na Sexta-feira Santa, durante a Celebração da Paixão do Senhor, traçando o
paralelo entre o sacrifício de Cristo na cruz e a imolação do cordeiro pascal.
Na Vigília Pascal na Noite Santa, por sua vez, o texto de Ex 14,15–15,1 é indicado como 3ª leitura [11], seguido pelo “cântico do mar” (Ex 15,1-18). A leitura dos capítulos 14 e 15 do Êxodo, com efeito, é atestada entre as leituras para esta noite santa ao menos desde o século VII.
Quando, por razões pastorais, se reduzem as leituras, este texto nunca pode ser omitido, dado ser caráter pascal e batismal [12], como exprime a oração após a leitura:
“Ó Deus, (...) como manifestastes outrora o vosso poder libertando um só povo da perseguição do Faraó, realizais agora a salvação de todas as nações, fazendo-as renascer nas águas do Batismo...” [13].
Passagem do Mar Vermelho (Ivan Aivazovsky) |
Do início do Tempo Pascal passamos à sua conclusão, com a Vigília de Pentecostes, na qual a perícope de Ex 19,3-8a.16-20b [14] é a 2ª leitura quando se celebra a forma longa, ou a 1ª leitura à escolha na forma breve. O texto narra a promessa da aliança feita por Deus, que antecede a entrega dos Dez Mandamentos a Moisés.
Assim como a Páscoa, a festa de Pentecostes (palavra grega para “50º dia”) ou “Festa das Semanas” (por ser celebrada sete semanas depois da Páscoa) era originalmente uma celebração agrícola de ação de graças pela colheita. Posteriormente foi reinterpretada como um memorial da entrega do Decálogo e da aliança do Sinai.
A oração após a leitura na forma longa da Vigília, com efeito, estabelece a relação entre a aliança do Sinai e o Pentecostes do Novo Testamento através do simbolismo do fogo:
“Ó Deus, entre clarões de fogo destes na montanha do Sinai a antiga lei a Moisés, e hoje manifestastes a nova aliança no fogo do Espírito Santo...” [15].
Logo após o Pentecostes, já no Tempo Comum, a Igreja celebra algumas Solenidades do Senhor que de certa forma são um “eco “do Tempo Pascal, nas quais identificamos outras duas leituras do nosso livro em composição harmônica.
Primeiramente, na Solenidade da Santíssima Trindade, celebrada no domingo seguinte ao Pentecostes, proclama-se no ano A Ex 34,4b-6.8-9 [16], quando Deus se revela a Moisés através de um “credo de adjetivos” após a ruptura da aliança: “Deus misericordioso e clemente, paciente, rico em bondade e fiel” (v. 6).
Na Solenidade do Santíssimo Corpo e Sangue de Cristo (Corpus Christi), celebrada na quinta-feira após o domingo da Trindade, lê-se no ano B Ex 24,3-8 [17], a conclusão da aliança do Sinai, com o sacrifício de novilhos e a aspersão do sangue sobre o povo: “Este é o sangue da aliança que o Senhor fez convosco” (v. 8).
Tal expressão faz um paralelo com a narrativa da instituição da Eucaristia no Evangelho (Mc 14,12-16.22-26): “Isto é o meu sangue, o sangue da aliança, que é derramado em favor de muitos” (v. 24).
A imolação do cordeiro pascal (Santuário Nacional de Aparecida) |
Concluímos aqui a primeira parte do nosso estudo sobre a
leitura litúrgica do Livro do Êxodo.
Na próxima postagem continuaremos analisando sua leitura em composição
harmônica na Celebração Eucarística, nos demais sacramentos, nos sacramentais e na Liturgia
das Horas.
Atualização: Para acessar a 2ª parte da pesquisa, publicada no dia 18 de maio, clique aqui; para acessar a 3ª parte, publicada no dia 25 de maio, clique aqui.
Breve bibliografia
sobre o Livro do Êxodo usada para
esta postagem:
CLIFFORD, Richard J. Êxodo.
in: BROWN, Raymond E.; FITZMYER,
Joseph A.; MURPHY, Roland E. [org.]. Novo
Comentário Bíblico São Jerônimo: Antigo Testamento. São Paulo: Academia
Cristã; Paulus, 2007, pp. 129-159.
LÓPEZ, Félix Gárcia. O
Livro do Êxodo. - in: O Pentateuco: Introdução à leitura dos cinco
primeiros livros da Bíblia. São Paulo: Ave-Maria, 2004, pp. 109-177. Coleção:
Introdução ao Estudo da Bíblia, v. 3A.
MACCHI, Jean-Daniel. Êxodo.
- in: RÖMER, Thomas; MACCHI,
Jean-Daniel; NIHAN, Christophe [org.]. Antigo
Testamento: História, Escritura e Teologia. 2ª ed. São Paulo: Loyola, 2015,
pp. 215-230.
TORRALBA, Juán Guillén. Êxodo.
in: OPORTO, Santiago Guijarro;
GARCÍA, Miguel Salvador [org.]. Comentário
ao Antigo Testamento I. São Paulo: Ave Maria, 2002, pp. 113-177.
Notas:
[1] ALDAZÁBAL, José. A
Mesa da Palavra I: Elenco das Leituras da Missa - Texto e Comentário. São
Paulo: Paulinas, 2007, p. 76.
[2] ibid., p. 97.
[3] LECIONÁRIO I: Dominical A-B-C. Tradução portuguesa da 2ª
edição típica para o Brasil. São Paulo: Paulus, 1994, p. x.
[4] RITUAL DA INICIAÇÃO CRISTÃ DE ADULTOS. Tradução portuguesa para o Brasil da edição
típica. São Paulo: Paulus, 2001, p. 192.
[5] LECIONÁRIO II: Semanal. Tradução portuguesa da 2ª edição
típica para o Brasil. São Paulo: Paulus, 1995, p. x.
[6] LECIONÁRIO I, p. x.
[7] ibid., p. x.
[8] ALDAZÁBAL, op.
cit., p. 97.
[9] LECIONÁRIO II, p. x.
[10] LECIONÁRIO I, p. x.
[11] ibid., p. x.
[12] cf. MISSAL
ROMANO, Tradução portuguesa da 2ª edição
típica para o Brasil. São Paulo: Paulus, 1991, p. 279.
[13] ibid., p.
280.
[14] LECIONÁRIO I, p. x.
[15] MISSAL ROMANO, p. 998.
[16] ibid., p. x.
[17] ibid., p. x.
Imagens: Wikimedia Commons e Centro Aletti.
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