quinta-feira, 9 de junho de 2022

Catequeses do Papa João Paulo II sobre o Creio: Introdução 6

A fé como resposta consciente e livre do homem à autorrevelação de Deus é o tema das Catequeses nn. 11-12 do Papa São João Paulo II, dentro da seção introdutória das suas meditações sobre o Creio.

Para acessar a introdução geral a essas Catequeses, clique aqui.

Catequeses do Papa João Paulo II sobre o Creio
INTRODUÇÃO GERAL

11. A fé, resposta consciente do homem à autorrevelação de Deus
João Paulo II - 10 de abril de 1985

1. Dissemos várias vezes nestas considerações que a fé é uma particular resposta do homem à Palavra de Deus, que revela a Si mesmo até a Revelação definitiva em Jesus Cristo. Esta resposta tem, sem dúvida, um caráter cognoscitivo que, efetivamente, dá ao homem a possibilidade de acolher este conhecimento (autoconhecimento) que Deus “compartilha” com ele.
A aceitação deste conhecimento de Deus, que na vida presente é sempre parcial, provisório e imperfeito, dá porém ao homem a possibilidade de participar desde já na verdade definitiva e total, que um dia lhe será plenamente revelada na visão imediata de Deus. “Abandonando-se totalmente a Deus” como resposta à sua autorrevelação, o homem participa desta verdade. De tal participação tem início uma nova vida sobrenatural, que Jesus chama “vida eterna” (Jo 17,3) e que, com a Carta aos Hebreus, pode definir-se “vida mediante a fé”: “O meu justo viverá pela fé” (Hb 10,38).

Alegoria da fé (Hendrick ter Brugghen)

2. Se, pois, queremos aprofundar a compreensão do que é a fé, do que quer dizer “crer”, a primeira coisa que se nos apresenta é a originalidade da fé em relação ao conhecimento racional de Deus partindo “das coisas criadas”.
A originalidade da fé está antes de tudo em seu caráter sobrenatural. Se o homem na fé responde à “autorrevelação de Deus” e aceita o plano divino da salvação, que consiste na participação na natureza e na vida íntima do próprio Deus, tal resposta deve conduzir o homem para além de tudo aquilo que o próprio ser humano alcança com as faculdades e as forças da própria natureza, tanto quanto ao conhecimento quanto à vontade: trata-se efetivamente do conhecimento de uma verdade infinita e do cumprimento transcendente das aspirações ao bem e à felicidade, que estão enraizadas na vontade, no coração: trata- se, precisamente, de “vida eterna”.
“Pela Revelação Divina - lemos na Constituição Dei Verbum - quis Deus manifestar e comunicar a Si mesmo, assim como aos desígnios eternos de sua vontade acerca da salvação dos homens, ‘para fazê-los participar dos bens divinos, que superam completamente a compreensão da mente humana’” (Dei Verbum, n. 6). A Constituição cita aqui as palavras do Concílio Vaticano I (Constituição Dei Filius , n. 12), que destacam o caráter sobrenatural da fé.
Assim, pois, a resposta humana à autorrevelação de Deus, e em particular à sua definitiva autorrevelação em Jesus Cristo, se forma interiormente sob a potência luminosa do próprio Deus, que atua no profundo das faculdades espirituais do homem, e de algum modo em todo o conjunto das suas energias e disposições. Essa força divina se chama graça; em particular, a graça da fé.

3. Lemos também na mesma Constituição do Vaticano II: “Para se oferecer tal fé, necessita-se do auxílio da graça divina - preveniente e coadjuvante -, e do Espírito Santo, para que mova o coração e o converta a Deus, abra os olhos da mente e dê ‘a todos a doçura para consentirem e crerem na verdade’ [palavras do II Concílio Arausicano retomadas pelo Vaticano I]. E para que a compreensão da Revelação se torne cada vez mais profunda, o próprio Espírito Santo aprimora continuamente a fé por meio dos seus dons” (Dei Verbum, n. 5).
A Constituição Dei Verbum se pronuncia de modo sucinto sobre o tema da graça da fé; todavia, esta formulação sintética é completa e reflete o ensinamento do próprio Jesus, que disse: “Ninguém pode vir a mim se o Pai, que me enviou, não o atrair" (Jo 6,44). A graça da fé é precisamente tal “atração” da parte de Deus, exercida em relação à essência interior do homem, e indiretamente a toda a subjetividade humana, para que o homem responda plenamente à “autorrevelação” de Deus em Jesus Cristo, abandonando-se a Ele. Essa graça prevê o ato de fé, o suscita, sustenta e guia: seu fruto é que o homem se torne capaz antes de tudo de “crer a Deus” e crer de fato. Assim, em virtude da graça preveniente e coadjuvante se instaura uma “comunhão” sobrenatural interpessoal que é a própria estrutura viva que sustenta a fé, mediante a qual o homem que crê em Deus participa de sua “vida eterna”: “conhece o Pai e Aquele por Ele enviado: Jesus Cristo” (cf. Jo 17,3) e, mediante a caridade, entra em uma relação de amizade com Eles (cf. Jo 14,23; 15,15).

4. Esta graça é a fonte da iluminação sobrenatural que “abre os olhos da mente”; e, portanto, a graça da fé abarca particularmente a esfera cognoscitiva do homem e sobre ela se concentra. Consegue dela a aceitação de todos os conteúdos da Revelação nos quais se desvelam os mistérios de Deus e os elementos do plano salvífico a respeito do homem. Mas, ao mesmo tempo, a faculdade cognoscitiva do homem sob a ação da graça da fé tende à compreensão sempre mais profunda dos conteúdos revelados, tendendo à verdade total prometida por Jesus (cf. Jo 16,13), à “vida eterna”. E neste esforço de compreensão crescente encontra sustento nos dons do Espírito Santo, especialmente naqueles que aperfeiçoam o conhecimento sobrenatural da fé: ciência, entendimento, sabedoria...
A partir deste breve esboço, a originalidade da fé se apresenta como uma vida sobrenatural, mediante a qual a “autorrevelação” de Deus se enraíza no terreno da inteligência humana, convertendo-se na fonte da luz sobrenatural, pela qual o homem participa, em medida humana mas a um nível de comunhão divina, desse conhecimento, com o qual Deus conhece eternamente a Si mesmo e conhece toda outra realidade em Si mesmo.

12. A fé, resposta livre do homem à autorrevelação de Deus
João Paulo II - 17 de abril de 1985

1. Se a originalidade da fé consiste no caráter de conhecimento essencialmente sobrenatural, que lhe provém da graça de Deus e dos dons do Espírito Santo, igualmente se deve afirmar que a fé possui uma originalidade autenticamente humana. Com efeito, encontramos nela todas as características da convicção racional e razoável sobre a verdade contida na Divina Revelação. Tal convicção - ou seja, certeza - corresponde perfeitamente à dignidade da pessoa como ser racional e livre.
Sobre este problema é muito iluminadora, entre os documentos do Concílio Vaticano II, a Declaração sobre a liberdade religiosa, que começa com as palavras “Dignitatis humanae”. Nela lemos, entre outras coisas:
“Um dos principais ensinamentos da doutrina católica, contido na Palavra de Deus e constantemente pregado pelos santos Padres, é o que diz que o ser humano deve responder voluntariamente a Deus e que, por isso, ninguém deve ser forçado a abraçar a fé contra a vontade. Com efeito, o ato de fé, por sua própria natureza, é voluntário, já que o ser humano, remido pelo Cristo Salvador e chamado à adoção filial por Jesus Cristo (Ef 1,5), não pode aderir a Deus que se revela a não ser quando, atraído pelo Pai (Jo 6,44), presta a Ele um ato de fé livre e racional. Está, pois, em plena consonância com a índole da fé que em matéria religiosa se exclua qualquer espécie de coerção por parte dos seres humanos” (Dignitatis humanae, n. 10).
“De fato, Deus chama os seres humanos a servi-Lo em espírito e em verdade. Esse apelo os obriga em consciência, porém não os força. Com efeito, Deus tem em conta a dignidade da pessoa humana, por Ele mesmo criada. Esta deve se guiar segundo seu próprio juízo e agir em liberdade. Com efeito, Cristo, que é nosso Mestre e Senhor...” (ibid., n. 11).

2. E aqui o documento conciliar explica de que modo Cristo buscou “suscitar e fortificar a fé de seus ouvintes”, excluindo toda coerção. Ele, com efeito, deu um testemunho definitivo da verdade do seu Evangelho mediante a Cruz e a Ressurreição (cf. Jo 18,37). “Não quis, porém, impô-la pela força aos que o contestavam”. “O seu reino... se estabelece pelo testemunho e na escuta da verdade, e cresce pelo amor por meio do qual o Cristo, elevado na cruz, atrai todos a Si (Jo 12,32)” (Dignitatis humanae, 11). Cristo transmitiu depois aos Apóstolos o mesmo modo de convencer sobre a verdade do Evangelho.
Precisamente graças a esta liberdade, a fé - aquilo que expressamos com a palavra “creio” - possui a sua autenticidade e originalidade humana, além da divina. Com efeito, ela exprime a convicção e a certeza sobre a verdade da Revelação, em virtude de um ato de livre vontade. Esta voluntariedade estrutural da fé não significa de modo algum que o crer seja “facultativo”, e que, portanto, seja justificável uma atitude de fundamental indiferentismo; significa apenas que ao convite e ao dom de Deus o homem é chamado a responder com a adesão livre e total de si mesmo.

3. O mesmo documento conciliar dedicado ao problema da liberdade religiosa destaca muito claramente que a fé é uma questão de consciência.
“Em virtude de sua dignidade, todos os seres humanos, que são pessoas dotadas de razão e de vontade livre, e, por isso mesmo, com responsabilidade pessoal, são impelidos pela própria natureza - e também moralmentea procurar a verdade, antes de tudo a que diz respeito à religião. São também obrigados a aderir à verdade conhecida e a regular toda a sua vida de acordo com as exigências desta verdade” (ibid., n. 2). Se este é o argumento essencial a favor do direito à liberdade religiosa, é também o motivo fundamental pelo qual esta mesma liberdade deve ser corretamente compreendida e observada na vida social.

4. Quanto às decisões pessoais, “cada um tem o dever e, por consequência, o direito de procurar a verdade em matéria religiosa, de modo a formar prudentemente um julgamento de consciência reto e verdadeiro, usando os meios apropriados” (ibid., n. 3).
“Mas a verdade deve ser buscada segundo a maneira apropriada à [dignidade da] pessoa humana e à sua natureza social, a saber, por meio de uma pesquisa livre, por meio do magistério ou do ensino, da comunicação e do diálogo. Através desses meios, as pessoas podem comunicar umas às outras a verdade que elas encontraram ou que julgam ter encontrado, a fim de se ajudarem mutuamente na procura da verdade. E, uma vez conhecida, deve-se aderir firmemente a ela por um assentimento pessoal” (ibid., n. 3).
Nestas palavras encontramos uma característica muito acentuada de nosso “creio” como ato profundamente humano, correspondente à dignidade do homem enquanto pessoa. Esta correspondência se exprime na relação com a verdade mediante a liberdade interior e a responsabilidade de consciência do sujeito crente.
Esta doutrina, tomada da Declaração conciliar sobre a liberdade religiosa, serve também para fazer-nos compreender quanto é importante uma catequese sistemática, seja porque torna possível o conhecimento da verdade sobre o projeto de Deus contido na Divina Revelação, seja porque ajuda a aderir sempre mais à verdade já conhecida e aceita mediante a fé.

Um peregrino (David Teniers o Jovem):
Imagem do homem que busca a Deus de modo livre e consciente

Tradução nossa a partir do texto italiano divulgado no site da Santa Sé (10 de abril e 17 de abril de 1985).

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