A fé como resposta consciente e livre do homem à autorrevelação de Deus é o tema das Catequeses nn. 11-12 do Papa São João Paulo II, dentro da seção introdutória das suas meditações sobre o Creio.
Para acessar a introdução geral a essas Catequeses, clique aqui.
Catequeses do Papa João Paulo II sobre o Creio
INTRODUÇÃO GERAL
11. A fé, resposta consciente do homem à autorrevelação de Deus
João Paulo II - 10 de abril de 1985
1. Dissemos várias vezes nestas
considerações que a fé é uma particular resposta do homem à Palavra de Deus, que
revela a Si mesmo até a Revelação definitiva em Jesus Cristo. Esta resposta tem,
sem dúvida, um caráter cognoscitivo que, efetivamente, dá ao homem a
possibilidade de acolher este conhecimento (autoconhecimento) que Deus “compartilha”
com ele.
A aceitação deste conhecimento de
Deus, que na vida presente é sempre parcial, provisório e imperfeito, dá porém
ao homem a possibilidade de participar desde já na verdade definitiva e total,
que um dia lhe será plenamente revelada na visão imediata de Deus. “Abandonando-se
totalmente a Deus” como resposta à sua autorrevelação, o homem participa desta verdade.
De tal participação tem início uma nova vida sobrenatural, que Jesus chama
“vida eterna” (Jo 17,3) e que, com a Carta aos Hebreus, pode definir-se “vida mediante a fé”: “O meu
justo viverá pela fé” (Hb 10,38).
Alegoria da fé (Hendrick ter Brugghen) |
2. Se, pois, queremos aprofundar a
compreensão do que é a fé, do que quer dizer “crer”, a primeira coisa que se nos apresenta
é a originalidade da fé em relação ao conhecimento racional de
Deus partindo “das coisas criadas”.
A originalidade da fé está antes
de tudo em seu caráter sobrenatural. Se o homem na fé responde à
“autorrevelação de Deus” e aceita o plano divino da salvação, que consiste na
participação na natureza e na vida íntima do próprio Deus, tal resposta deve conduzir
o homem para além de tudo aquilo que o próprio ser humano alcança com
as faculdades e as forças da própria natureza, tanto quanto ao conhecimento
quanto à vontade: trata-se efetivamente do conhecimento de uma verdade
infinita e do cumprimento transcendente das aspirações ao bem e à felicidade,
que estão enraizadas na vontade, no coração: trata- se, precisamente, de “vida
eterna”.
“Pela Revelação Divina - lemos na
Constituição Dei Verbum - quis Deus manifestar e comunicar a Si mesmo,
assim como aos desígnios eternos de sua vontade acerca da salvação dos homens, ‘para
fazê-los participar dos bens divinos, que superam completamente a
compreensão da mente humana’” (Dei Verbum, n. 6). A Constituição cita
aqui as palavras do Concílio Vaticano I (Constituição Dei Filius , n.
12), que destacam o caráter sobrenatural da fé.
Assim, pois, a resposta humana
à autorrevelação de Deus, e em particular à sua definitiva autorrevelação em
Jesus Cristo, se forma interiormente sob a potência luminosa do próprio
Deus, que atua no
profundo das faculdades espirituais do homem, e de algum modo em todo o
conjunto das suas energias e disposições. Essa força divina se chama graça; em
particular, a graça da fé.
3. Lemos também na mesma Constituição
do Vaticano II: “Para se oferecer tal fé, necessita-se do auxílio da
graça divina - preveniente e coadjuvante -, e do Espírito Santo, para que mova
o coração e o converta a Deus, abra os olhos da mente e dê ‘a todos a doçura
para consentirem e crerem na verdade’ [palavras do II Concílio Arausicano
retomadas pelo Vaticano I]. E para que a compreensão da Revelação se torne cada
vez mais profunda, o próprio Espírito Santo aprimora continuamente a fé por
meio dos seus dons” (Dei Verbum, n. 5).
A Constituição Dei Verbum se
pronuncia de modo sucinto sobre o tema da graça da fé; todavia, esta formulação
sintética é completa e reflete o ensinamento do próprio Jesus, que disse: “Ninguém
pode vir a mim se o Pai, que me enviou, não o atrair" (Jo 6,44).
A graça da fé é precisamente tal “atração” da parte de Deus, exercida
em relação à essência interior do homem, e indiretamente a toda
a subjetividade humana, para que o homem responda plenamente à “autorrevelação”
de Deus em Jesus Cristo, abandonando-se a Ele. Essa graça prevê o ato de fé, o
suscita, sustenta e guia: seu fruto é que o homem se torne capaz antes
de tudo de “crer a Deus” e crer de fato. Assim, em virtude da graça
preveniente e coadjuvante se instaura uma “comunhão” sobrenatural interpessoal
que é a própria estrutura viva que sustenta a fé, mediante a qual o homem que
crê em Deus participa de sua “vida eterna”: “conhece o Pai e Aquele por Ele
enviado: Jesus Cristo” (cf. Jo 17,3)
e, mediante a caridade, entra em uma relação de amizade com Eles (cf. Jo 14,23; 15,15).
4. Esta graça é a fonte da
iluminação sobrenatural que “abre os olhos da mente”; e, portanto, a graça da
fé abarca particularmente a esfera cognoscitiva do homem e sobre ela se
concentra. Consegue dela a aceitação de todos os conteúdos da Revelação nos
quais se desvelam os mistérios de Deus e os elementos do plano salvífico a
respeito do homem. Mas, ao mesmo tempo, a faculdade cognoscitiva do homem sob a
ação da graça da fé tende à compreensão sempre mais profunda dos
conteúdos revelados, tendendo à verdade total prometida por Jesus (cf. Jo 16,13), à “vida
eterna”. E neste esforço de compreensão crescente encontra sustento nos dons do
Espírito Santo, especialmente naqueles que aperfeiçoam o conhecimento
sobrenatural da fé: ciência, entendimento, sabedoria...
A partir deste breve esboço, a
originalidade da fé se apresenta como uma vida sobrenatural, mediante a qual a
“autorrevelação” de Deus se enraíza no terreno da inteligência humana,
convertendo-se na fonte da luz sobrenatural, pela qual o homem
participa, em medida humana mas a um nível de comunhão divina, desse
conhecimento, com o qual Deus conhece eternamente a Si mesmo e conhece toda outra
realidade em Si mesmo.
12. A fé, resposta livre do homem à autorrevelação de Deus
João Paulo II - 17 de abril de 1985
1. Se a originalidade da fé
consiste no caráter de conhecimento essencialmente sobrenatural,
que lhe provém da graça de Deus e dos dons do Espírito Santo, igualmente se deve
afirmar que a fé possui uma originalidade autenticamente humana. Com
efeito, encontramos nela todas as características da convicção racional
e razoável sobre a verdade contida na Divina Revelação. Tal convicção - ou seja,
certeza - corresponde perfeitamente à dignidade da pessoa como ser racional e
livre.
Sobre este problema é muito
iluminadora, entre os documentos do Concílio Vaticano II, a Declaração sobre a
liberdade religiosa, que começa com as palavras “Dignitatis humanae”. Nela lemos, entre outras coisas:
“Um dos principais ensinamentos da
doutrina católica, contido na Palavra de Deus e constantemente pregado pelos santos
Padres, é o que diz que o ser humano deve responder voluntariamente a Deus e
que, por isso, ninguém deve ser forçado a abraçar a fé contra a vontade. Com
efeito, o ato de fé, por
sua própria natureza, é voluntário, já que o ser humano, remido
pelo Cristo Salvador e chamado à adoção filial por Jesus Cristo (Ef 1,5), não pode aderir a Deus que se
revela a não ser quando, atraído pelo Pai (Jo
6,44), presta a Ele um ato de fé livre e racional. Está, pois, em plena
consonância com a índole da fé que em matéria religiosa se exclua qualquer espécie
de coerção por parte dos seres humanos” (Dignitatis humanae, n. 10).
“De fato, Deus chama os seres
humanos a servi-Lo em espírito e em verdade. Esse apelo os obriga em consciência, porém não os força. Com efeito, Deus
tem em conta a dignidade da pessoa humana, por Ele mesmo criada. Esta deve se
guiar segundo seu próprio juízo e agir em liberdade. Com efeito, Cristo, que é
nosso Mestre e Senhor...” (ibid., n. 11).
2. E aqui o documento conciliar
explica de que modo Cristo buscou “suscitar e fortificar a fé de seus ouvintes”, excluindo
toda coerção. Ele, com efeito, deu um testemunho definitivo da verdade do seu
Evangelho mediante a Cruz e a Ressurreição (cf.
Jo 18,37). “Não quis, porém, impô-la pela força aos que o contestavam”. “O
seu reino... se estabelece pelo testemunho e na escuta da verdade, e cresce pelo
amor por meio do qual o Cristo, elevado na cruz, atrai todos a Si (Jo 12,32)” (Dignitatis humanae,
11). Cristo transmitiu depois aos Apóstolos o mesmo modo de convencer sobre a
verdade do Evangelho.
Precisamente graças a esta
liberdade, a fé - aquilo que expressamos com a palavra “creio” - possui a sua
autenticidade e originalidade humana, além da divina. Com efeito, ela exprime a
convicção e a certeza sobre a verdade da Revelação, em virtude
de um ato de livre vontade. Esta voluntariedade estrutural da fé não significa de
modo algum que o crer seja “facultativo”, e que, portanto, seja justificável uma
atitude de fundamental indiferentismo; significa apenas que ao convite e ao dom
de Deus o homem é chamado a responder com a adesão livre e total de si mesmo.
3. O mesmo documento conciliar
dedicado ao problema da liberdade religiosa destaca muito claramente que
a fé é uma questão de consciência.
“Em virtude de sua dignidade,
todos os seres humanos, que são pessoas dotadas de razão e de vontade livre, e,
por isso mesmo, com responsabilidade pessoal, são impelidos pela própria natureza
- e também moralmente - a procurar
a verdade, antes de tudo a que diz respeito à religião. São também obrigados
a aderir à verdade conhecida e a regular toda a sua vida de acordo com as exigências
desta verdade” (ibid., n. 2).
Se este é o argumento essencial a favor do direito à liberdade religiosa, é
também o motivo fundamental pelo qual esta mesma liberdade deve ser corretamente
compreendida e observada na vida social.
4. Quanto às decisões pessoais, “cada
um tem o dever e, por consequência, o direito de procurar a verdade em matéria religiosa,
de modo a formar prudentemente um julgamento de consciência reto e verdadeiro,
usando os meios apropriados” (ibid., n. 3).
“Mas a verdade deve ser
buscada segundo a maneira apropriada à [dignidade da] pessoa humana e à
sua natureza social, a saber, por meio de uma pesquisa livre, por
meio do magistério ou do ensino, da comunicação e do diálogo. Através desses
meios, as pessoas podem comunicar umas às outras a verdade que elas encontraram
ou que julgam ter encontrado, a fim de se ajudarem mutuamente na procura da
verdade. E, uma vez conhecida, deve-se aderir firmemente a ela por um assentimento
pessoal” (ibid., n. 3).
Nestas palavras encontramos uma
característica muito acentuada de nosso “creio” como ato profundamente humano, correspondente
à dignidade do homem enquanto pessoa. Esta correspondência se exprime na relação
com a verdade mediante a liberdade interior e a
responsabilidade de consciência do sujeito crente.
Esta doutrina, tomada da
Declaração conciliar sobre a liberdade religiosa, serve também para fazer-nos
compreender quanto é importante uma catequese sistemática,
seja porque torna possível o conhecimento da verdade sobre o projeto de Deus
contido na Divina Revelação, seja porque ajuda a aderir sempre mais à verdade
já conhecida e aceita mediante a fé.
Um peregrino (David Teniers o Jovem): Imagem do homem que busca a Deus de modo livre e consciente |
Tradução nossa a partir do texto italiano divulgado no site da Santa Sé (10 de abril e 17 de abril de 1985).
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