quinta-feira, 30 de junho de 2022

Catequeses do Papa João Paulo II sobre o Creio: Introdução 9

O diálogo inter-religioso e o diálogo com aqueles que não creem são os temas das Catequeses nn. 17-18 do Papa São João Paulo II dentro da seção introdutória de suas reflexões sobre o Creio.

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Catequeses do Papa João Paulo II sobre o Creio
INTRODUÇÃO GERAL

17. Fé cristã e religiões não-cristãs
João Paulo II - 05 de junho de 1985

1. A fé cristã se encontra no mundo com várias religiões que se inspiram em outros mestres e em outras tradições, fora da vertente da Revelação. Elas constituem um fato que é preciso ter em conta. Como diz o Concílio, os homens esperam das várias religiões “a resposta aos profundos enigmas da condição humana que, tanto hoje como ontem, afligem intimamente os corações dos homens: o que é o homem; qual o sentido e o fim de nossa vida; o que é bem e o que é pecado; qual a origem e a finalidade da dor; qual o caminho para alcançar a verdadeira felicidade; o que é a morte, o julgamento e a retribuição após a morte; enfim, o que é aquele supremo e inefável mistério que envolve a nossa existência, de onde nos originamos e para o qual tendemos” (Nostra aetate, n. 1).
Deste fato parte o Concílio na Declaração Nostra aetate sobre as relações da Igreja com as religiões não cristãs. É muito significativo que o Concílio tenha se pronunciado sobre este tema. Se crer de modo cristão quer dizer responder à autorrevelação de Deus, cuja plenitude está em Jesus Cristo, esta fé porém não pode evitar, especialmente no mundo contemporâneo, uma relação consciente com as religiões não cristãs, enquanto em cada uma delas se exprime de algum modo “o que é comum aos homens e os leva a viver juntos seu comum destino” (ibid.). A Igreja não foge desta relação, antes, deseja-a e busca-a.

Encontro inter-religioso pela paz em Assis (1986)

Sobre o “pano de fundo” de uma ampla comunhão nos valores positivos de espiritualidade e de moralidade, se delineia antes de tudo a relação da “fé” com a “religião” em geral, que é um componente particular da existência terrena do homem. O homem busca na religião a resposta para as perguntas enumeradas acima e de diversos modos estabelece sua relação com o “mistério que envolve a nossa existência”. Ora, as diversas religiões não cristãs são, antes de tudo, a expressão desta busca por parte do homem, enquanto a fé cristã tem sua base na Revelação por parte de Deus. E nisto consiste - apesar de algumas afinidades com outras religiões - a sua essencial diferença em relação a elas.

2. A Declaração Nostra aetate, todavia, busca destacar as afinidades. Lemos: “Desde a antiguidade até o tempo atual encontramos entre os diversos povos certa percepção daquela misteriosa força que está presente no desenrolar das coisas e dos acontecimentos da vida humana, e, por vezes, até o conhecimento da Suprema Divindade ou também do Pai. Essa percepção e esse conhecimento enchem sua vida de um profundo sentido religioso” (Nostra aetate, n. 2). A este respeito podemos recordar que desde os primeiros séculos do Cristianismo se buscou ver a presença inefável do Verbo nas mentes humanas e nas realizações de cultura e civilização: “Todos os escritores, de fato, mediante a inata semente do Logos enxertada neles, puderam entrever obscuramente a realidade”, destacou São Justino (Apologia II, 13, 3), o qual, com outros Padres, não hesitou em ver na filosofia uma espécie de “revelação menor”.
Porém, aqui é preciso compreender bem. Esse “sentido religioso”, isto é, o conhecimento religioso de Deus por parte dos povos, nos reconduz ao conhecimento racional do qual o homem é capaz com as forças da sua natureza, como vimos nas Catequeses anteriores; ao mesmo tempo, se distingue das especulações puramente racionais dos filósofos e pensadores sobre o tema da existência de Deus. Esse conhecimento religioso envolve o homem todo e chega a ser nele um impulso de vida. Distingue-se, sobretudo, da fé cristã, seja como conhecimento fundado sobre a Revelação, seja como resposta consciente ao dom de Deus presente e operante em Jesus Cristo. Esta necessária distinção não exclui, repito, uma afinidade e uma concordância de valores positivos, assim como não impede reconhecer, com o Concílio, que as diversas religiões não cristãs (entre as quais no Documento conciliar são recordadas especialmente o Hinduísmo e o Budismo, dos quais é traçado um breve perfil) “esforçam-se de diversos modos por superar a inquietação do coração dos homens propondo caminhos, isto é, doutrinas e preceitos de vida, como também ritos sagrados” (Nostra aetate, n. 2).

3. “A Igreja Católica - continua o Documento - considera com sincero respeito seus modos de agir e de viver, seus preceitos e suas doutrinas que, embora em muitos aspectos estejam em desacordo com os que ela crê e propõe, não raro refletem, todavia, raios daquela verdade que ilumina todos os homens” (ibid.). Meu predecessor Paulo VI, de veneranda memória, destacou de modo sugestivo esta posição da Igreja na Exortação Apostólica Evangelii nuntiandi. Eis as suas palavras, que retomam textos dos antigos Padres: “Elas [as religiões não cristãs] comportam em si mesmas o eco de milênios de procura de Deus, procura incompleta, mas muitas vezes efetuada com sinceridade e retidão de coração. Elas possuem um patrimônio impressionante de textos profundamente religiosos; ensinaram gerações de pessoas a orar; e, ainda, acham-se permeadas de inumeráveis «sementes da Palavra» e podem constituir uma autêntica «preparação evangélica»” (Evangelii nuntiandi, n. 53).
Portanto, também a Igreja exorta os cristãos e os católicos a que “através do diálogo e da colaboração com os seguidores de outras religiões, testemunhando a fé e a vida cristã, reconheçam, mantenham e promovam os bens espirituais e morais, como também os valores socioculturais que entre eles se encontram” (Nostra aetate, n. 2).

4. Poderíamos dizer, pois, que crer de modo cristão significa aceitar, professar e anunciar Cristo que é “o caminho, a verdade e a vida” (Jo 14,6), tanto mais plenamente quanto mais se põem em relevo nos valores das outras religiões os sinais, os reflexos e como que os presságios d’Ele.

5. Entre as religiões não cristãs merece uma particular atenção a religião dos seguidores de Maomé [Islamismo], por causa do seu caráter monoteísta e seu vínculo com a fé de Abraão, que São Paulo definiu “pai... da nossa fé (cristã)” (cf. Rm 4,16).
Os muçulmanos “adoram o único Deus, vivo e subsistente, misericordioso e onipotente, Criador do céu e da terra, que falou aos homens e, com toda a alma, procuram submeter-se a seus ocultos decretos, como a Deus se submeteu Abraão, a quem a fé muçulmana se refere com agrado” (Nostra aetate, n. 3). Ainda mais: os seguidores de Maomé honram também a Jesus: “Eles não reconhecem Jesus como Deus, mas o veneram como profeta, honram Mariasua mãe virginal, e, por vezes, também a invocam com devoção. Além disso, aguardam o dia do juízo, quando Deus retribuirá a todos os homens ressuscitados. Consequentemente, valorizam a vida moral e honram a Deus sobretudo pela oração, pelas esmolas e pelo jejum” (ibid.).

6. Uma relação particular - entre as religiões não cristãs - é a que a Igreja mantém com os que professam a fé da Antiga Aliança, os herdeiros dos Patriarcas e dos Profetas de Israel. O Concílio recorda, com efeito, “o vínculo pelo qual o povo do Novo Testamento está espiritualmente ligado à estirpe de Abraão” (ibid., n. 4).
Este vínculo, ao qual já aludimos na Catequese dedicada ao Antigo Testamento, e que nos aproxima dos judeus, é posto mais uma vez em relevo pela Declaração Nostra aetate ao referir-se aos comuns inícios da fé, que se encontram nos Patriarcas, em Moisés e nos Profetas. A Igreja “confessa que todos os fiéis cristãos, filhos de Abraão segundo a fé (Gl 3,7), estão incluídos na vocação do mesmo Patriarca... A Igreja não pode esquecer que recebeu a revelação do Antigo Testamento por meio do povo com o qual, em sua inefável misericórdia, Deus se dignou estabelecer a Antiga Aliança” (ibid.). Deste mesmo povo provém “Cristo segundo a carne” (Rm 9,5), Filho da Virgem Maria, assim como os seus Apóstolos.
Toda esta herança espiritual, comum aos cristãos e aos judeus, constitui como que um fundamento orgânico para uma relação recíproca, ainda que grande parte dos filhos de Israel “não aceitou o Evangelho”. A Igreja, todavia (juntamente com os Profetas e com o Apóstolo Paulo), “espera pelo dia só por Deus conhecido em que todos os povos a uma só voz aclamarão e servirão ‘ao Senhor, todos juntos’ (Sf 3,9)” (ibid.).

7. Como sabeis, depois do Concílio Vaticano II foi constituído um Secretariado para as relações com as religiões não cristãs [1]. Paulo VI viu nestas relações um dos caminhos do “diálogo da salvação” que a Igreja deve levar adiante com todos os homens no mundo de hoje (cf. Encíclica Ecclesiam suam). Todos nós somos chamados a rezar e a cooperar para que a rede destas relações se fortaleça e se amplie, suscitando em uma medida cada vez mais ampla a vontade de mútuo conhecimento, de colaboração e de busca da plenitude da verdade na caridade e na paz. A isto nos impulsiona precisamente nossa fé.

18. O problema da incredulidade e do ateísmo
João Paulo II - 12 de junho de 1985

1. Crer de modo cristão significa “aceitar o convite ao diálogo com Deus”, abandonando-se ao próprio Criador. Tal fé consciente nos predispõe também àquele “diálogo da salvação” que a Igreja quer levar avante com todos os homens do mundo de hoje (cf. Paulo VI, Encíclica Ecclesiam suam), inclusive com os não crentes. “Muitos de nossos contemporâneos de modo algum percebem essa íntima e vital união com Deus, ou explicitamente a rejeitam” (Gaudium et Spes, n. 19), união essa constituída pela fé. Portanto, na Constituição pastoral Gaudium et Spes o Concílio se posicionou também sobre o tema da incredulidade e do ateísmo. Diz-nos ademais quão consciente e madura deveria ser nossa fé, da qual com frequência temos de dar testemunho diante dos incrédulos e dos ateus. Precisamente na época atual a fé deve ser educada «de modo que, de forma lúcida, possa perceber as dificuldades e superá-las» (ibid., 21). Esta é a condição essencial do diálogo da salvação.

2. A Constituição conciliar faz una análise breve, mas completa, do ateísmo. Observa, antes de tudo, que com este termo “designam-se fenômenos muito diferentes entre si. Com efeito, enquanto Deus é expressamente negado por alguns (ateísmo), outros pensam que o homem não pode afirmar absolutamente nada sobre Ele (agnosticismo); outros ainda submetem a exame o problema de Deus com tal método que esse parece carecer de sentido (positivismo, cientificismo). Muitos, ultrapassando indevidamente os limites das ciências positivas, ou pretendem que somente por este processo científico se explicam todas as coisas, ou, ao contrario, simplesmente já não admitem uma verdade absoluta. Alguns exaltam de tal modo o homem, que a fé em Deus se torna como que enfraquecida, e parecem mais inclinados a afirmar o homem do que negar a Deus. Outros representam para si um Deus de tal maneira que a fantasia que eles repudiam de modo algum é o Deus do Evangelho. Outros sequer abordam o problema de Deus, sendo que parecem não sentir nenhuma inquietação religiosa... Com frequência o ateísmo se origina ou por um violento protesto contra o mal no mundo, ou pelo próprio caráter de absoluto que indevidamente se atribui a alguns bens humanos, que passam a tomar o lugar de Deus. A própria civilização moderna, não por si mesma, mas pelo fato de estar demasiadamente comprometida com as realidades terrestres (secularismo), pode muitas vezes tornar mais difícil o acesso a Deus” (ibid., n. 19).

3. O texto conciliar indica, como se vê, a variedade e a multiplicidade do que se esconde sob o termo “ateísmo”.
Muitas vezes, sem dúvida, esse é uma atitude pragmática  resultante da negligência ou da falta de “inquietação religiosa”. Em muitos casos, todavia, tal atitude tem suas raízes em todo um modo de pensar o mundo, especialmente do pensar científico. Se, efetivamente, se aceita como única fonte de certeza cognoscitiva a experiência sensível, então fica excluído o acesso a toda realidade suprassensível, transcendente. Tal atitude cognoscitiva se encontra também na base daquela concepção que em nossa época tomou o nome de “teologia da morte de Deus”.
Assim, pois, os motivos do ateísmo e, mais frequentemente ainda, do agnosticismo de hoje são também de natureza teórico-cognoscitiva, não só pragmática.

4. O segundo grupo de motivos destacados pelo Concílio está ligado àquela exagerada exaltação do homem, que leva não poucos a esquecer de uma verdade tão óbvia, como a de que o homem é um ser contingente e limitado na existência. A realidade da vida e da história se encarrega de fazer-nos constatar de modo sempre novo que, se existem motivos para reconhecer a grande dignidade e o primado do homem no mundo visível, todavia não há fundamento para ver nele o absoluto, rejeitando a Deus.
Lemos na Gaudium et Spes que no ateísmo moderno “o desejo de autonomia do homem leva a tal ponto que desperta uma dificuldade contra qualquer dependência de Deus. Os que professam tal ateísmo sustentam que a liberdade consiste em ser o homem o seu próprio fim, o único artífice e demiurgo de sua própria história; e pensam que isso não pode harmonizar-se com o reconhecimento do Senhor, autor e fim de todas as coisas ou, ao menos, tornam tal afirmação completamente supérflua. O sentido de poder que o progresso técnico atual dá ao homem pode favorecer essa doutrina” (ibid., n. 20).
Hoje, de fato, o ateísmo sistemático espera “a libertação do homem, principalmente sua libertação econômica e social”. Esse ateísmo combate a religião de modo programático, afirmando que ela se opõe a tal libertação, porque “estimulando a esperança do homem em uma futura e enganosa vida, o afastá-lo-ia da construção da cidade terrestre”. Quando os defensores deste ateísmo chegam ao governo de um Estado - acrescenta o texto conciliar - “perseguem a religião com violência, difundindo o ateísmo, inclusive usando os meios de pressão de que o poder dispõe, sobretudo na educação da juventude” (ibid.).
Este último problema exige que se explique de modo claro e firme o princípio da liberdade religiosa, reafirmado pelo Concílio em uma Declaração específica, a Dignitatis humanae.

5. Se queremos agora dizer qual é a atitude fundamental da Igreja frente ao ateísmo, está claro que ela o reprova “com toda a firmeza” (Gaudium et Spes, n. 21), porque está em contradição com a própria essência da fé cristã, a qual inclui a convicção de que a existência de Deus pode ser alcançada pela razão. “Contudo, embora rejeite absolutamente o ateísmo, a Igreja sinceramente proclama que todos os homens, crentes e não crentes, devem dar sua contribuição para a reta construção deste mundo no qual vivem comunitariamente; isso certamente não pode ser feito sem um sincero e prudente diálogo” (ibid.).
Cabe acrescentar que a Igreja permanece particularmente sensível à atitude daqueles homens que não conseguem conciliar a existência de Deus com a múltipla experiência do mal e do sofrimento.
Ao mesmo tempo, a Igreja é consciente de que o que ela anuncia - isto é, o Evangelho e a fé cristã - “concorda com as mais secretas aspirações do coração humano, quando reivindica a dignidade da vocação humana, restituindo a esperança àqueles que já desesperaram de seu mais alto destino” (ibid.).
Ensina ainda a Igreja que “a importância das tarefas terrestres não é diminuída pela esperança escatológica, mas antes reforça seu cumprimento com novos motivos. Pelo contrário, faltando o fundamento divino e a esperança da vida eterna, a dignidade do homem é prejudicada de modo gravíssimo... e os enigmas da vida e da morte, da culpa e da dor, continuam sem solução, de forma que, não raro, os homens são levados ao desespero” (ibid.).
Por outro lado, embora rejeite o ateísmo, a Igreja “tenta descobrir na mente dos ateus as latentes causas da negação de Deus e, consciente da gravidade dos problemas que o ateísmo levanta e movida pelo amor a todos os homens, julga que elas [as causas do ateísmo] devem ser submetidas a um sério e mais aprofundado exame” (ibid.). Em particular, a Igreja se preocupa em progredir “renovando-se e purificando-se incessantemente, sob a direção do Espírito Santo” (ibid.), para remover da própria vida tudo aquilo que possa justamente chocar quem não crê.

6. Com tal impostação a Igreja vem mais uma vez em nosso auxílio para responder a perguntar: “O que é a fé? O que significa crer?”, precisamente sobre o “pano de fundo” da incredulidade e do ateísmo, o qual às vezes assume formas de luta programada contra a religião, e especialmente contra o Cristianismo. Precisamente tendo em conta tal hostilidade, a fé deve crescer de maneira particularmente consciente, penetrante e madura, caracterizada por um profundo senso de responsabilidade e de amor para com todos os homens. A consciência das dificuldades, das objeções e das perseguições deve despertar uma disponibilidade ainda mais plena a dar testemunho “da nossa esperança” (1Pd 3,15).

Colina das Cruzes (Lituânia):
Protesto pacífico contra o regime comunista ateu que perseguia a liberdade religiosa

Notas:
[1] Inicialmente instituído pelo Papa Paulo VI em 1964 como “Secretariado para os não cristãos”, em 1988 foi renomeado por João Paulo II como Pontifício Conselho para o Diálogo Inter-Religioso.

Tradução nossa a partir do texto italiano divulgado no site da Santa Sé (05 de junho e 12 de junho de 1985).

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