quinta-feira, 16 de junho de 2022

Catequeses do Papa João Paulo II sobre o Creio: Introdução 7

O último tema da seção introdutória das Catequeses do Papa São João Paulo II sobre o Creio diz respeito à transmissão da fé cristã. Confira, pois, suas reflexões nn. 13-14.

Para acessar a postagem introdutória ao conjunto das Catequeses, clique aqui.

Catequeses do Papa João Paulo II sobre o Creio
INTRODUÇÃO GERAL

II. A transmissão da fé cristã (nn. 13-20)

13. A transmissão da Revelação divina
João Paulo II - 24 de abril de 1985

1. Onde podemos encontrar o que Deus revelou para aderirmos a Ele com nossa fé convicta e livre? Há um “sagrado depósito”, do qual a Igreja toma, comunicando-nos seus conteúdos. Como diz o Concílio Vaticano II: “A Sagrada Tradição e a Sagrada Escritura de ambos os Testamentos são como um espelho, no qual a Igreja peregrina sobre a terra contempla a Deus, de quem tudo recebe, até que venha a vê-Lo face a face, tal como El é (1Jo 3,2)” (Dei Verbum, n. 7).
Com estas palavras a Constituição conciliar sintetiza o problema da transmissão da Divina Revelação, importante para a fé de todo cristão. O nosso “creio”, que deve preparar o homem sobre a terra para ver a Deus face a face na eternidade, depende, em cada etapa da história, da fiel e inviolável transmissão desta autorrevelação de Deus, que em Jesus Cristo alcançou o seu ápice e a sua plenitude.

Entrega (traditio) do livro da Sagrada Escritura a um leitor

2. O próprio Cristo “ordenou aos Apóstolos que o Evangelho (...) fosse a todos pregado como a fonte de toda a verdade salvadora e da disciplina dos costumes (Mt 28,19-20; Mc 16,15), comunicando-lhes os seus dons divinos” (Dei Verbum, n. 7). Eles executaram a missão que lhes foi confiada antes de tudo mediante a pregação oral, e, ao mesmo tempo, alguns deles “sob a inspiração do Espírito Santo consignaram por escrito a mensagem da salvação” (ibid.). Isto o fizeram também alguns do círculo dos Apóstolos (Marcos, Lucas...).
Assim se formou a transmissão da Divina Revelação na primeira geração dos cristãos. “Para que o Evangelho fosse para sempre preservado íntegro e vivo na Igreja, os Apóstolos deixaram como sucessores os Bispos, ‘transmitindo-lhes seu próprio múnus magisterial’”, segundo a expressão de Santo Irineu (cf. Adversus Haereses III, 3, 1; Dei Verbum, n. 7).

3. Como se vê, segundo o Concílio, na transmissão da Divina Revelação na Igreja se sustentam reciprocamente e se completam a Tradição e a Sagrada Escritura, com as quais as novas gerações dos discípulos e das testemunhas de Jesus Cristo alimentam a sua fé, porque “aquilo que os Apóstolos transmitiram compreende todo o necessário para a vida santa do povo de Deus e para o aumento de sua fé” (Dei Verbum, n. 8).

“Esta Tradição, que remonta aos Apóstolos, se desenvolve na Igreja sob o auxílio do Espírito Santo. De fato, cresce a percepção tanto das realidades quanto das palavras transmitidas, seja pela contemplação e estudo dos fiéis, que a guardam no coração (Lc 2,19.51), seja pela compreensão profunda das realidades espirituais que experimentam, ou ainda pelo anúncio daqueles que, em virtude da sucessão episcopal, receberam o carisma certo da verdade. Pois a Igreja, com o passar dos séculos, tende continuamente para a plenitude da verdade divina, até que nela se cumpram plenamente as palavras de Deus” (ibid.).
Mas nesta tensão rumo à plenitude da verdade divina a Igreja toma constantemente do único “depósito” originário, constituído pela Tradição apostólica e pela Sagrada Escritura, as quais “manando da mesma fonte divina, como que se fundem e tendem para o mesmo fim” (ibid., n. 9).

4. Neste sentido convém precisar e destacar, sempre de acordo com o Concílio, que “a Igreja haure a sua certeza sobre tudo o que é revelado não apenas da Sagrada Escritura” (ibid.). Esta Escritura “é Palavra de Deus enquanto escrita sob a inspiração do Espírito Santo”. Mas [a Sagrada Tradição é] “a Palavra de Deus confiada pelo Cristo Senhor e o Espírito Santo aos Apóstolos e integralmente transmitida aos seus sucessores, a fim de que eles, iluminados pelo Espírito da verdade, guardem, exponham e difundam fielmente a sua mensagem” (ibid.). “É por esta mesma Tradição que à Igreja é dado conhecer o cânon completo dos Livros Sagrados; nela as Sagradas Escrituras são mais profundamente compreendidas e se tornam continuamente operantes” (ibid., n. 8).
“A Sagrada Tradição e a Sagrada Escritura constituem um único depósito sagrado da Palavra de Deus confiado à Igreja. Aderindo a ela, todo o povo santo, unido aos seus Pastores, persevera continuamente na doutrina dos Apóstolos...” (ibid., n. 10). Portanto, ambas, a Tradição e a Sagrada Escritura, devem ser circundadas pela mesma veneração e pelo mesmo respeito religioso.

5. Aqui nasce o problema da interpretação autêntica da Palavra de Deus, escrita ou transmitida pela Tradição. Esta função foi confiada “apenas ao Magistério vivo da Igreja, que exerce a sua autoridade em nome de Jesus Cristo” (ibid.). Este Magistério “não está acima da Palavra de Deus, mas a serve, ensinando apenas aquilo que lhe foi transmitido, ao mesmo tempo em que, por mandato divino e com o auxílio do Espírito Santo, devotamente a escuta santamente a guarda e fielmente a expõe, haurindo tudo aquilo que propõe que se deva crer como divinamente revelado deste único depósito da fé” (ibid.).

6. Eis, pois, uma nova característica da fé: crer de modo cristão significa também aceitar a verdade revelada por Deus assim como a ensina a Igreja. Mas, ao mesmo tempo, o Concílio Vaticano II recorda que “a totalidade dos fiéis... não pode enganar-se na fé e manifesta esta sua propriedade peculiar por meio do senso sobrenatural da fé de todo o povo, quando, ‘desde os Bispos até os últimos fiéis leigos’ apresenta seu universal consenso em matéria de fé e costumes. Por este senso da fé (sensus fidei), despertado e sustentado pelo Espírito da verdade, o povo de Deus, conduzido pelo sagrado Magistério... adere indefectivelmente à fé uma vez para sempre transmitida aos santos (Jd 3), e, com reto juízo, penetra-a mais profundamente e mais plenamente a aplica na vida” (Lumen Gentium, n. 12).

7. A Tradição, a Sagrada Escritura, o Magistério da Igreja e o senso sobrenatural da fé de todo o povo de Deus formam esse processo vivificante no qual a Divina Revelação é transmitida às novas gerações. “Assim, Deus, que falara outrora, dialoga initerruptamente com a Esposa do seu amado Filho, e o Espírito Santo - pelo qual ressoa a viva voz do Evangelho na Igreja, e, através dela, no mundo - conduz os fiéis a toda a verdade e faz a palavra de Cristo habitar neles com abundância (Cl 3,16)” (Dei Verbum, n. 8). Crer de modo cristão significa aceitar ser introduzido e conduzido pelo Espírito à plenitude da verdade de modo consciente e voluntário.

14. A inspiração da Escritura e sua interpretação
João Paulo II - 01 de maio de 1985

1. Repitamos hoje mais uma vez as belas palavras da Constituição conciliar Dei Verbum: “Assim, Deus, que falara outrora, dialoga initerruptamente com a Esposa do seu amado Filho (que é a Igreja), e o Espírito Santo - pelo qual ressoa a viva voz do Evangelho na Igreja, e, através dela, no mundo - conduz os fiéis a toda a verdade e faz a palavra de Cristo habitar neles com abundância (Cl 3,16)” (Dei Verbum, 8).
Resumamos de novo o que significa “crer”. Crer de modo cristão significa precisamente ser introduzidos pelo Espírito Santo em toda a verdade da Divina Revelação. Quer dizer: ser uma comunidade de fiéis abertos à palavra do Evangelho de Cristo. Uma e outra coisa são possíveis em cada geração, porque a viva transmissão da Divina Revelação, contida na Tradição e na Sagrada Escritura, perdura íntegra na Igreja, graças ao especial serviço do Magistério, em harmonia com o sentido sobrenatural da fé do povo de Deus.

2. Para completar esta concepção do vínculo entre o nosso “creio” católico e a sua fonte, é importante também a doutrina sobre a inspiração divina da Sagrada Escritura e de sua autêntica interpretação. Ao apresentar esta doutrina, seguimos (como nas Catequeses anteriores) sobretudo a Constituição Dei Verbum.
Diz o Concílio: “Os livros inteiros do Antigo e do Novo Testamento, com todas as suas partes, são tidos por santos e canônicos pela santa Mãe Igreja segundo a fé apostólica, porque, redigidos por inspiração do Espírito Santo (Jo 20, 31; 2Tm 3,16; 2Pd 1,19-21; 3,15-16), têm Deus por autor, e como tais têm sido transmitidos pela própria Igreja” (Dei Verbum, n. 11).
Deus - como autor invisível e transcendente - “escolheu homens e serviu-se deles, os quais faziam uso de suas faculdades e meios; de modo que... transmitissem por escrito, como verdadeiros autores, tudo aquilo e somente aquilo que Deus queria” (ibid.). Para este fim o Espírito Santo atuava neles e por meio deles.

3. Dada este origem, se deve reconhecer que “a verdade dos livros da Sagrada Escritura - que Deus quis consignar nas Letras Sagradas para nossa salvação - deve ser ensinada e professada firmemente, fielmente e sem erro” (ibid.). Confirmam-no as palavras de São Paulo na Segunda Carta a Timóteo: “Toda Escritura é inspirada por Deus e útil para ensinar, para argumentar, para corrigir, para educar conforme a justiça. Assim, a pessoa que é de Deus estará capacitada e bem preparada para toda boa obra” (2Tm 3,16-17).
A Constituição sobre a Divina Revelação, seguindo São João Crisóstomo, manifesta admiração pela particular “condescendência”, quase como um “inclinar-se”, da eterna Sabedoria. “As palavras de Deus, expressas em linguagem humana, assumiram a semelhança do discurso dos homens, da mesma forma como outrora o Verbo do Eterno Pai, tendo assumido a fraqueza da carne humana, fez-se semelhante aos homens” (Dei Verbum, n. 13).

4. Da verdade sobre a inspiração divina da Sagrada Escritura derivam logicamente algumas normas sobre a sua interpretação. A Constituição Dei Verbum as resume brevemente: o primeiro princípio é que “tendo Deus falado na Sagrada Escritura através de homens, à maneira humana, aquele que interpreta a Sagrada Escritura deve investigar atentamente aquilo que os hagiógrafos [autores sagrados] verdadeiramente queriam dizer e que Deus queria manifestar através das suas palavras, a fim de verem claramente aquilo que o próprio Deus nos quis comunicar” (ibid., n. 12).
Neste sentido - e este é o segundo ponto - é necessário ter em conta, entre outras coisas, “os gêneros literários”. “Pois a verdade é apresentada e expressa de distintas maneiras nos textos históricos, proféticos, poéticos ou ainda pertencentes a outros gêneros” (ibid.). O sentido daquilo que o autor expressa depende precisamente destes gêneros literários, que se devem, pois, considerar sobre o “pano de fundo” de todas as circunstâncias de uma época precisa e de una determinada cultura.
E, portanto, eis o terceiro princípio para uma reta interpretação da Sagrada Escritura: “Para se compreender retamente aquilo que o autor sagrado queria afirmar ao escrever, deve-se prestar a devida atenção tanto às formas nativas de sentir, dizer ou narrar vigentes no tempo do hagiógrafo, quanto às que os homens costumavam utilizar então nas relações entre si” (ibid.).

5. Estas indicações bastante detalhadas, dadas para a interpretação de caráter histórico-literário, exigem uma profunda relação com as premissas da doutrina sobre a inspiração divina da Sagrada Escritura. “A Sagrada Escritura deve ser lida e interpretada no mesmo Espírito com o qual foi escrita” (ibid.). Portanto, “deve-se ter não menor atenção ao conteúdo e unidade de toda a Escritura, tendo-se a devida consideração pela Tradição viva de toda a Igreja e pela analogia da fé” (ibid.). Por “analogia da fé” entendemos a coesão de cada uma das verdades de fé entre si e com o plano total da Revelação e a plenitude da divina economia nela encerrada.

6. A missão dos exegetas, isto é, dos pesquisadores que estudam com métodos idôneos a Sagrada Escritura, é contribuir, segundo os princípios acima mencionados, “para mais profundamente compreenderem e exporem o sentido da Sagrada Escritura, a fim de que, por seus estudos como que preparatórios, o juízo da Igreja amadureça” (ibid.).
Dado que a Igreja “exerce o mandato e o ministério divinos de guardar e interpretar a Palavra de Deus”, tudo o que se refere “ao modo de interpretar a Escritura está submetido, em última instância, ao juízo da Igreja” (ibid.). Esta norma é importante e decisiva para precisar a relação recíproca entre a exegese (a teologia) e o Magistério da Igreja. É uma norma que permanece na mais estreita relação com o que dissemos anteriormente a propósito da transmissão da Divina Revelação.
É preciso salientar mais uma vez que o Magistério utiliza o trabalho dos teólogos e exegetas e, ao mesmo tempo, vigia oportunamente sobre os resultados dos seus estudos. O Magistério, com efeito, está chamado a guardar a verdade plena contida na Divina Revelação.

7. Crer de modo cristão significa, pois, aderir a esta verdade usufruindo da garantia de verdade que, por instituição do próprio Cristo, provém da Igreja. Isto vale para todos os crentes: e, portanto - em seu justo nível e em grau adequado -, também para os teólogos e os exegetas. Para todos se revela neste campo a misericordiosa Providência de Deus, que quis conceder-nos não apenas o dom da sua autorrevelação, mas também a garantia da sua fiel conservação, interpretação e explicação, confiando-a a Igreja.

O Espírito Santo, inspirador da Escritura e da Tradição, e os quatro Evangelhos
(Detalhe da "Disputa do Sacramento" de Rafael Sanzio)

Tradução nossa a partir do texto italiano divulgado no site da Santa Sé (24 de abril e 01 de maio de 1985).

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