O último tema da seção introdutória das Catequeses do Papa São João Paulo II sobre o Creio diz respeito à transmissão da fé cristã. Confira, pois, suas reflexões nn. 13-14.
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Catequeses do Papa João Paulo II sobre o Creio
INTRODUÇÃO GERAL
II. A transmissão da fé cristã (nn. 13-20)
13. A transmissão da Revelação divina
João Paulo II - 24 de abril de 1985
1. Onde podemos encontrar o que Deus
revelou para aderirmos a Ele com nossa fé convicta e livre? Há um “sagrado
depósito”, do qual a Igreja toma, comunicando-nos seus conteúdos. Como diz o
Concílio Vaticano II: “A Sagrada Tradição e a Sagrada Escritura de ambos os
Testamentos são como um espelho, no qual a Igreja peregrina sobre a terra contempla
a Deus, de quem tudo recebe, até que venha a vê-Lo face a face, tal como El é (1Jo
3,2)” (Dei Verbum, n. 7).
Com estas palavras a Constituição
conciliar sintetiza o problema da transmissão da Divina Revelação, importante
para a fé de todo cristão. O nosso “creio”, que deve preparar o homem sobre a terra
para ver a Deus face a face na eternidade, depende, em cada etapa da
história, da fiel e inviolável transmissão desta autorrevelação de Deus, que em
Jesus Cristo alcançou o seu ápice e a sua plenitude.
Entrega (traditio) do livro da Sagrada Escritura a um leitor |
2. O próprio Cristo “ordenou aos Apóstolos
que o Evangelho (...) fosse a todos pregado como a fonte de toda a verdade
salvadora e da disciplina dos costumes (Mt
28,19-20; Mc 16,15), comunicando-lhes
os seus dons divinos” (Dei Verbum, n.
7). Eles executaram a missão que lhes foi confiada antes de tudo
mediante a pregação oral, e, ao mesmo tempo, alguns deles “sob a
inspiração do Espírito Santo consignaram por escrito a mensagem da
salvação” (ibid.). Isto o fizeram também alguns do círculo dos Apóstolos
(Marcos, Lucas...).
Assim se formou a transmissão da
Divina Revelação na primeira geração dos cristãos. “Para que o Evangelho fosse
para sempre preservado íntegro e vivo na Igreja, os Apóstolos deixaram como
sucessores os Bispos, ‘transmitindo-lhes seu próprio múnus magisterial’”, segundo
a expressão de Santo Irineu (cf. Adversus
Haereses III, 3, 1; Dei Verbum, n. 7).
3. Como se vê, segundo o Concílio,
na transmissão da Divina Revelação na Igreja se sustentam reciprocamente e se
completam a Tradição e a Sagrada Escritura, com as quais as novas
gerações dos discípulos e das testemunhas de Jesus Cristo alimentam a sua fé,
porque “aquilo que os Apóstolos transmitiram compreende todo o necessário para a
vida santa do povo de Deus e para o aumento de sua fé” (Dei Verbum, n. 8).
“Esta Tradição, que remonta aos
Apóstolos, se desenvolve na Igreja sob o auxílio do Espírito Santo. De
fato, cresce a percepção tanto das realidades quanto das palavras transmitidas,
seja pela contemplação e estudo dos
fiéis, que a guardam no coração (Lc 2,19.51), seja pela compreensão
profunda das realidades espirituais que experimentam, ou ainda pelo anúncio
daqueles que, em virtude da sucessão episcopal, receberam o carisma certo da
verdade. Pois a Igreja, com o passar dos séculos, tende continuamente para a
plenitude da verdade divina, até que nela se cumpram plenamente as
palavras de Deus” (ibid.).
Mas nesta tensão rumo à plenitude
da verdade divina a Igreja toma constantemente do único “depósito” originário, constituído
pela Tradição apostólica e pela Sagrada Escritura, as quais “manando da mesma fonte
divina, como que se fundem e tendem para o mesmo fim” (ibid., n. 9).
4. Neste sentido convém precisar e
destacar, sempre de acordo com o Concílio, que “a Igreja haure a sua certeza
sobre tudo o que é revelado não apenas da Sagrada Escritura” (ibid.).
Esta Escritura “é Palavra de Deus enquanto escrita sob a inspiração do Espírito
Santo”. Mas [a Sagrada Tradição é] “a Palavra de Deus confiada pelo Cristo
Senhor e o Espírito Santo aos Apóstolos e integralmente transmitida aos seus
sucessores, a fim de que eles, iluminados pelo Espírito da verdade, guardem,
exponham e difundam fielmente a sua mensagem” (ibid.). “É por esta mesma
Tradição que à Igreja é dado conhecer o cânon completo dos Livros Sagrados; nela as Sagradas Escrituras
são mais profundamente compreendidas e se tornam continuamente operantes” (ibid., n. 8).
“A Sagrada Tradição e a Sagrada
Escritura constituem um único depósito
sagrado da Palavra de Deus confiado à Igreja. Aderindo a
ela, todo o povo santo, unido aos seus Pastores, persevera continuamente na doutrina
dos Apóstolos...” (ibid., n.
10). Portanto, ambas, a Tradição e a Sagrada Escritura, devem ser circundadas
pela mesma veneração e pelo mesmo respeito religioso.
5. Aqui nasce o problema
da interpretação autêntica da Palavra de Deus, escrita ou transmitida pela
Tradição. Esta função foi confiada “apenas ao Magistério vivo da Igreja,
que exerce a sua autoridade em nome de Jesus Cristo” (ibid.). Este Magistério
“não está acima da Palavra de Deus, mas a serve, ensinando apenas aquilo que lhe
foi transmitido, ao mesmo tempo em que, por mandato divino e com o auxílio do
Espírito Santo, devotamente a escuta, santamente a guarda e
fielmente a expõe, haurindo tudo aquilo que propõe que se deva crer como
divinamente revelado deste único depósito da fé” (ibid.).
6. Eis, pois, uma nova
característica da fé: crer de modo cristão significa também aceitar
a verdade revelada por Deus assim
como a ensina a Igreja. Mas, ao mesmo tempo, o Concílio
Vaticano II recorda que “a totalidade dos fiéis... não pode enganar-se na fé e manifesta esta sua propriedade peculiar
por meio do senso sobrenatural da fé de todo o povo, quando, ‘desde os Bispos até
os últimos fiéis leigos’ apresenta seu universal consenso em matéria de fé e
costumes. Por este senso da fé (sensus
fidei), despertado e sustentado pelo Espírito da verdade, o povo de Deus,
conduzido pelo sagrado Magistério... adere indefectivelmente à fé uma vez para
sempre transmitida aos santos (Jd 3), e, com reto juízo, penetra-a
mais profundamente e mais plenamente a aplica na vida” (Lumen Gentium, n.
12).
7. A Tradição, a Sagrada
Escritura, o Magistério da Igreja e o senso sobrenatural da fé de todo o povo
de Deus formam esse processo vivificante no qual a Divina Revelação é
transmitida às novas gerações. “Assim, Deus, que falara outrora, dialoga
initerruptamente com a Esposa do seu amado Filho, e o Espírito Santo - pelo qual ressoa a viva voz do Evangelho na
Igreja, e, através dela, no mundo - conduz os fiéis a toda a verdade
e faz a palavra de Cristo habitar neles com abundância (Cl 3,16)” (Dei
Verbum, n. 8). Crer de modo cristão significa aceitar ser introduzido e
conduzido pelo Espírito à plenitude da verdade de modo consciente e voluntário.
14. A inspiração da Escritura e sua interpretação
João Paulo II - 01 de maio de 1985
1. Repitamos hoje mais uma vez as belas
palavras da Constituição conciliar Dei Verbum: “Assim, Deus, que falara
outrora, dialoga initerruptamente
com a Esposa do seu amado Filho (que é a Igreja), e o Espírito Santo -
pelo qual ressoa a viva voz do Evangelho na Igreja, e, através dela, no mundo
- conduz os fiéis a toda a
verdade e faz a palavra de Cristo habitar neles com abundância (Cl 3,16)” (Dei Verbum, 8).
Resumamos de novo o que significa
“crer”. Crer de modo cristão significa
precisamente ser introduzidos pelo Espírito Santo em toda a verdade da Divina
Revelação. Quer dizer: ser uma comunidade de fiéis abertos à palavra do Evangelho
de Cristo. Uma e outra coisa são possíveis em cada geração, porque a viva transmissão da Divina Revelação,
contida na Tradição e na Sagrada Escritura, perdura íntegra na Igreja,
graças ao especial serviço do Magistério, em harmonia com o sentido
sobrenatural da fé do povo de Deus.
2. Para completar esta concepção
do vínculo entre o nosso “creio” católico e a sua fonte, é importante também a doutrina sobre a inspiração divina
da Sagrada Escritura e de sua autêntica interpretação. Ao apresentar esta doutrina, seguimos (como nas
Catequeses anteriores) sobretudo a Constituição Dei Verbum.
Diz o Concílio: “Os livros
inteiros do Antigo e do Novo Testamento, com todas as suas partes, são tidos
por santos e canônicos pela santa Mãe Igreja segundo a fé apostólica, porque, redigidos por inspiração do Espírito Santo (Jo 20,
31; 2Tm 3,16; 2Pd 1,19-21; 3,15-16), têm Deus
por autor, e como tais têm sido transmitidos pela própria Igreja” (Dei
Verbum, n. 11).
Deus - como autor invisível e
transcendente - “escolheu homens e serviu-se deles, os quais faziam uso de suas
faculdades e meios; de modo que... transmitissem por escrito, como verdadeiros
autores, tudo aquilo e somente aquilo que Deus queria” (ibid.). Para
este fim o Espírito Santo atuava neles e por meio deles.
3. Dada este origem, se deve reconhecer
que “a verdade dos livros da Sagrada Escritura - que Deus quis consignar nas
Letras Sagradas para nossa salvação - deve ser ensinada e professada firmemente, fielmente e sem erro” (ibid.).
Confirmam-no as palavras de São Paulo na Segunda
Carta a Timóteo: “Toda Escritura é inspirada
por Deus e útil para ensinar, para argumentar, para corrigir, para
educar conforme a justiça. Assim, a pessoa que é de Deus estará capacitada e
bem preparada para toda boa obra” (2Tm 3,16-17).
A Constituição sobre a Divina
Revelação, seguindo São João Crisóstomo, manifesta admiração pela particular “condescendência”,
quase como um “inclinar-se”, da eterna Sabedoria. “As palavras de Deus, expressas em linguagem humana, assumiram a
semelhança do discurso dos homens, da mesma forma como outrora o Verbo do Eterno
Pai, tendo assumido a fraqueza da carne humana, fez-se semelhante aos homens” (Dei
Verbum, n. 13).
4. Da verdade sobre a inspiração
divina da Sagrada Escritura derivam logicamente algumas normas sobre a sua interpretação. A
Constituição Dei Verbum as resume brevemente: o primeiro princípio
é que “tendo Deus falado na Sagrada Escritura através de homens, à maneira
humana, aquele que interpreta a Sagrada Escritura deve investigar atentamente
aquilo que os hagiógrafos [autores sagrados] verdadeiramente queriam dizer e
que Deus queria manifestar através das suas palavras, a fim de verem claramente
aquilo que o próprio Deus nos quis comunicar” (ibid., n. 12).
Neste sentido - e este é o segundo ponto - é necessário ter em conta,
entre outras coisas, “os gêneros
literários”. “Pois a verdade é apresentada e expressa de distintas
maneiras nos textos históricos, proféticos, poéticos ou ainda pertencentes a outros
gêneros” (ibid.). O
sentido daquilo que o autor expressa depende precisamente destes gêneros literários,
que se devem, pois, considerar sobre o “pano de fundo” de todas as circunstâncias
de uma época precisa e de una determinada cultura.
E, portanto, eis o terceiro princípio para uma reta
interpretação da Sagrada Escritura: “Para se compreender retamente aquilo que o
autor sagrado queria afirmar ao escrever, deve-se prestar a devida atenção tanto às formas nativas de sentir,
dizer ou narrar vigentes no tempo do hagiógrafo, quanto às que os homens
costumavam utilizar então nas relações entre si” (ibid.).
5. Estas indicações bastante
detalhadas, dadas para a interpretação de caráter histórico-literário, exigem uma
profunda relação com as premissas da
doutrina sobre a inspiração divina da Sagrada Escritura. “A Sagrada Escritura deve ser lida e interpretada
no mesmo Espírito com o qual foi escrita” (ibid.). Portanto, “deve-se
ter não menor atenção ao conteúdo
e unidade de toda a Escritura, tendo-se a devida consideração pela Tradição
viva de toda a Igreja e pela analogia da fé” (ibid.). Por “analogia
da fé” entendemos a coesão de cada uma das verdades de fé entre si e com o plano
total da Revelação e a plenitude da divina economia nela encerrada.
6. A missão dos exegetas, isto é,
dos pesquisadores que estudam com métodos idôneos a Sagrada Escritura, é
contribuir, segundo os princípios acima mencionados, “para mais profundamente compreenderem e exporem o sentido da Sagrada
Escritura, a fim de que, por seus estudos como que preparatórios, o
juízo da Igreja amadureça” (ibid.).
Dado que a Igreja “exerce o mandato
e o ministério divinos de guardar e interpretar a Palavra de Deus”, tudo o que
se refere “ao modo de interpretar a Escritura está submetido, em última instância, ao juízo da Igreja” (ibid.).
Esta norma é importante e decisiva para precisar a relação recíproca entre a
exegese (a teologia) e o Magistério da Igreja. É uma norma que permanece na
mais estreita relação com o que dissemos anteriormente a propósito da transmissão
da Divina Revelação.
É preciso salientar mais uma vez
que o Magistério utiliza o trabalho dos teólogos e exegetas e, ao mesmo tempo, vigia oportunamente
sobre os resultados dos seus estudos. O Magistério, com efeito, está chamado a guardar
a verdade plena contida na Divina Revelação.
7. Crer de modo
cristão significa, pois, aderir a esta verdade usufruindo da
garantia de verdade que, por instituição do próprio Cristo, provém da Igreja. Isto
vale para todos os crentes: e, portanto - em seu justo nível e em grau adequado
-, também para os teólogos e os exegetas. Para todos se revela neste campo a
misericordiosa Providência de Deus, que quis conceder-nos não apenas o dom da
sua autorrevelação, mas também a garantia da sua fiel conservação,
interpretação e explicação, confiando-a a Igreja.
O Espírito Santo, inspirador da Escritura e da Tradição, e os quatro Evangelhos (Detalhe da "Disputa do Sacramento" de Rafael Sanzio) |
Tradução nossa a partir do texto italiano divulgado no site da Santa Sé (24 de abril e 01 de maio de 1985).
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